As estatísticas mostram que uma mulher vítima de violência doméstica demora de três a cinco anos para fazer a primeira denúncia contra o seu agressor. A estatística também mostra que em 76% dos casos o agressor é conhecido e nos outros casos em que não é conhedido, a vítima é agredida apenas por ser mulher. Para a delegada Renata Cruppi, titular da DDM (Delegacia de Defesa da Mulher) de Diadema, as mulheres que são agredidas física ou verbalmente precisam ter a iniciativa para denunciar e colegas, amigos e familiares podem ajudá-la a denunciar e também a protegê-la quando há medida protetiva em favor dela.
A delegada participou do RDTv desta sexta-feira (24/06) e falou ao jornalista Leandro Amaral sobre sua experiência no trato de situações de violência que chegam à delegacia e sobre o trabalho em entidades da qual faz parte. “Em todos os casos que envolvem violência contra a mulher precisamos ter muita sensibilidade no momento da avaliação, como aconteceu da procuradora”, disse ao lembrar do caso em que a procuradora Gabriela Samadello Monteiro de Barros, de 39 anos, foi espancada pelo colega de trabalho Demétrius Oliveira Macedo, de 34, na Prefeitura de Registro, no interior de São Paulo. Ele foi preso. “Como este vários outros casos acontecem diariamente. Nem todos os casos serão de lesão corporal qualificada, nem todos serão de menor potencial ofensivo, nem sempre é ambiente doméstico e familiar, precisamos ter essa sensibilidade e nunca deixar de denunciar, levar provas, testemunhas, o maior número de informações possível para esse primeiro contato com a autoridade policial para que nós possamos fazer todo o desenrolar da situação, as estratégias investigativas e chegar o momento em que teremos a materialidade e os indícios da autoria, se não for caso de flagrante”.
Renata também falou da violência contra crianças e adolescentes, e comentou o caso da criança de 11 anos, de Santa Catarina que acabou conseguindo o direto ao aborto legal depois de ter sido estuprada. “Ainda é muito alto o número de crianças passando por essa violência e precisamos ter um olhar para isso, pois durante a pandemia elas ficaram bem expostas, porque muitos dos autores são pessoas conhecidas, que são próximas a ela. Às vezes a família acha que é uma pessoa que jamais faria mal para essa criança. Só que se começa a notar mudança de comportamento, a criança fica mais resistente a ter contato, não quer cumprimentar determinada pessoa, essas situações precisam ser levadas em consideração. Se ela verbaliza alguma conduta que ela se sentiu constrangida, por exemplo, quando o companheiro da mãe lhe toca no momento do banho, há necessidade de entender, se foi um mal entendido, se a criança só não se sentiu confortável ou se aconteceu algo. Precisamos sempre ter um olhar aberto, sem julgamento do que essa criança fala, para que a partir daí nós possamos evitar essa violência contra meninas e meninos, que durante a pandemia houve uma potencialização”.
Conscientização
O maior desafio na situação de violência contra a mulher é conscientizá-la de que é preciso denunciar para parar com o ciclo de violência. “O desafio ainda é a questão cultural, da mulher se sentir legitimada a reclamar de algo, de identificar o ciclo da violência. Muitas mulheres ainda não sabem que o desprezo, a ofensa moral, tudo isso já é a primeira fase do ciclo da violência. Entregar a senha de rede social, não ter privacidade alguma, ter tudo demonstrado para o seu companheiro, isso mostra já o ciclo da violência”, explica a delegada que conta que os primeiros sinais acontecem ainda enquanto o casal namora. “Durante a união fica mais difícil para que ela consiga perceber. Elas se sentem responsáveis pelo lar e acabam não denunciando, muitas sofrem e elas só conseguem dizer o que está acontecendo muitos anos depois. E algumas só denunciam porque alguém da família percebeu e estendeu as mãos para ela”.
“A grande dificuldade é a mulher conseguir força emocional para denunciar esse agressor. Ao chegar à delegacia ou nos serviços de apoio, que são vários, ela recebe informação e lá ajudam essa mulher a denunciar. A denúncia pode ser pela delegacia eletrônica ou presencialmente, só que ela precisa ter força para denunciar e tem que tomar a decisão de denunciar e se sentir segura em não voltar atrás. Mas existe a situação em que ela faz o boletim de ocorrência, mas por conta de toda a pressão emocional, de toda aquela carga que ela carrega, acaba voltando atrás. Não porque ele mudou o comportamento, mas porque ela acredita que pode ser ainda mais perigoso para ela, mas nós temos mecanismos de dar esse respaldo, se ela nos permitir. Temos a medida protetiva de urgência”, continua a delegada.
A medida protetiva pode pedir o afastamento do agressor do lar. A testemunha também pode ser beneficiada. “Se tiver algum familiar envolvido nesse risco é possível que a medida protetiva seja estendida para ela e para as testemunhas. O descumprimento da medida protetiva pode levar a prisão em flagrante deste agressor”, explica Renata.
Segundo a delegada a medida protetiva é um instrumento, mas a polícia não tem como monitorar todas as mulheres sob ela 24 horas por dia, por isso a mulher precisa se precaver e informar para o maior número de pessoas possível que ela tem uma medida de proteção contra um agressor. Isso pode ajudar a flagrar qualquer transgressão da medida e pode salvar a vida da mulher. “Ela precisa falar para o maior número de pessoas possível que ela tem essa medida definida. Precisa também ter um aplicativo, tem o SOS Mulher, tem o Todas Juntas, temos vários aplicativos em que você pode acionar os seus contatos. O SOS Mulher é com a Polícia Militar, e por ele a mulher aciona o botão e aí a viatura mais próxima se aproxima. Tem que falar onde trabalha, para os vizinhos porque ela nem sempre vai conseguir perceber a presença dele, mas as pessoas podem ver e acionar a Polícia Militar ou a Patrulha Maria da Penha, a Polícia Civil, alguma coisa vai ser feita. Dessa forma nós vamos reduzir o número considerável de homicídios. Quantos casos a gente sabe que a mulher tinha a medida protetiva e ainda assim sofreu o feminicídio. Quando a gente conversa com as pessoas próximas a vítima, percebemos a maioria não sabia da medida protetiva”, comenta.
As pessoas próximas a mulher se tornam então um aliado importante para evitar a violência e mortes. “Se você sabe que uma pessoa próxima a você tem medida protetiva e o agressor está próximo não hesite, ligue 190 e informe que tal pessoa está perto da mulher que tem medida protetiva e que ele está indo na direção dela. Não digo ir de peito aberto, não se expor ao risco, mas tem diversas formas em que não se põe em risco, mas ajuda a proteger essa mulher”, diz Renata Cruppi.
A delegada integra o programa Homem Sim, Consciente Também que é para orientação e conscientização de homens. O programa tem uma página no Instagram (@homem_sim_consciente_tambem). “Muitos casos de violência doméstica acontecem porque o agressor não teve oportunidade de aprender a lidar com aquela frustração que ele está sentindo. Apresentamos mecanismos de auto-cuidado, de economia financeira para que ele consiga respeitar o papel da mulher em sociedade”, explica.
Renata diz que é comum no programa a pergunta sobre a mulher que faz uma denúncia inverídica de violência. “A legislação existe para todos os gêneros. Se ela vai na delegacia e falta com a verdade, ela pode ser responsabilizada, quem era autor se torna vítima. Pode responder por denunciação caluniosa ou falsa comunicação de crime. Mulher tem feminicídio, mas se for um homem vai ser homicídio qualificado. Esse destaque que damos a legislação para a mulher é para que possamos chamar a atenção para essas mulheres que estão sendo agredidas e ofendidas. Há necessidade de dar um destaque porque muitas mulheres morrem por pessoas conhecidas. O autor é pessoa conhecida em mais de 76% dos casos, segundo as estatísticas, e há aquelas em que o autor não é pessoa conhecida, mas ela morre pelo simples fato de ser mulher”.
O papel do amigo, colega ou familiar pode ser decisivo. “Tem que ouvir e ver o que ela precisa. Temos casas abrigos, tem trabalhos também da iniciativa privada para dar acolhimento a essas mulheres. Precisamos saber onde estão os órgãos do município e ter a empatia de orientá-la e ajudá-la a sair desse risco. A gente sozinha é muito difícil. A mulher demora em média de três a cinco anos para fazer a primeira denúncia contra o seu agressor”, aponta Renata que estima que o número de casos denunciados aumente nos próximos meses. “Eu acredito que, por estarmos caminhando para uma abertura mais significativa do livre trânsito das pessoas, que venham mais casos sendo revelados para que possamos atuar” finaliza.