Piscinões já nascem com capacidade comprometida para evitar enchentes

Alagamento na Vila Bastos flagrada pelo morador Eurico de Marcos. (Foto: Arquivo Pessoal)

Os piscinões que custam milhões e que necessitam de áreas enormes para serem construídos, não são mais a solução para as enchentes e alagamentos. Especialistas ouvidos pelo RD destacam que a impermeabilização do solo, a canalização de rios e a retificação de seus leitos foram fatores responsáveis pelas constantes enchentes e, como os fenômenos climáticos extremos ficam cada vez mais constantes as obras gigantescas já nascem com sua eficácia comprometida. Os especialistas apontam que a solução é retomar o conceito de permeabilização das águas em substituição do conceito de escoamento.

O ABC tem 35 piscinões, 20 deles sob gestão do estado e os demais são municipais. Está em construção aquele que é considerado o maior piscinão da América Latina, o Piscinão Jaboticabal, que é feito na divisa entre os municípios de São Paulo, São Caetano e São Bernardo, bem no encontro do Ribeirão dos Couros e o Córrego dos Meninos. O investimento é de R$ 323 milhões. Quando estiver pronto, o Piscinão Jaboticabal vai somar mais 900 mil litros a essa conta. A previsão é que ele seja entregue em julho. Mesmo com tantas e caras obras as enchentes continuam. De novembro para cá pelo menos duas pessoas morreram no ABC, uma em Mauá e outra em São Bernardo, por conta de enchentes.

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Para a especialista em hidráulica e drenagem urbana, a professora da UFABC (Universidade Federal do ABC) Melissa Cristina Pereira Graciosa, os piscinões, apesar de necessitarem de um planejamento criterioso, dependerem de grandes áreas e levarem anos para serem construídos, não devem ser considerados uma alternativa perene, mas uma solução de emergência. “É como uma ponte de safena em um paciente infartado, dá uma sobrevida, mas não é solução definitiva. Os fenômenos climáticos extremos estão cada vez mais frequentes e as cidades cada vez mais impermeabilizadas e ocupando as várzeas dos rios, por isso quando um piscinão está pronto a sua capacidade de armazenar já está defasada. É preciso olhar o modelo de urbanização que não pode continuar como está, ocupando áreas de várzea sem planejamento, não se pode atuar só na remediação. Eu vejo essa urgência de se mudar os modelos mas a movimentação não acontece na mesma velocidade;  o tempo está contra nós”.

Os estudos hidráulicos levaram anos para mudar o conceito de prevenção de enchentes. Segundo Melissa primeiro se pensava que canalizar e retificar os rios resolveria o problema, quando na verdade só agravou. Quando se pensou em fazer piscinões estes já chegaram tarde diante do aumento do volume de chuvas e a impermeabilização do solo. “Se levou 40 anos para a mudança do conceito de escoamento para o de reservação, e agora pode-se levar outros vários anos para uma nova mudança de pensamento. Ainda há uma visão higienista de grande parte da população que se incomoda em viver à margem de um rio poluído e defende sua canalização, quando é o contrário, o rio deveria ser limpo e respeitados os seus meandros. Quando se retifica e canaliza, se acaba com a mata ciliar, as curvas e as áreas de espraiamento e toda vez que a chuva vem forte a água vai exceder a capacidade do sistema trazendo enchente”, diz a professora da UFABC.

Melissa considera ainda outro problema urbano dos enormes reservatórios de contenção das águas das enchentes; eles não se integram às cidades. “Não possibilitam usos diferentes, ocupam grandes áreas e são caros para construir e para manter. Ao final das temporadas de chuvas restam no fundo destes reservatórios tudo que é reflexo das falhas do sistema de saneamento, lodo contaminado com esgoto e lixo de todo o tipo. Ou seja, não dá para ser usado como parque, nem outra coisa, é um equipamento que não tem interação com a sociedade”, aponta.

O conceito de reservação deve ser revertido para o de infiltração, na opinião da especialista. “Temos que trazer de volta a infiltração, fazer jardins de chuva, biovaletas e não dá para apostar tudo apenas em uma solução – os piscinões. A solução passa também por sanear os rios e não canalizá-los. As áreas que enchem hoje são ocupadas por ruas e avenidas, que foram feitas nestes locais porque são terrenos planos e a construção é mais barata. Esse modelo não respeitou o espaço das águas e a mudança de modelo não pode demorar tanto para acontecer, eu tenho essa inquietação”, completa.

A canalização é apontada como o problema que causa alagamentos nas ruas Laura e Silva Dutra, na Vila Bastos, em Santo André. “A canalização trouxe um benefício urbano, mas as consequências são inundações devido ao processo crescente de impermeabilização”, aponta o matemático Eurico de Marcos Jardim, morador da rua Laura, que participou do RDTv ao lado do professor de urbanismo da USCS (Universidade Municipal de São Caetano do Sul), Enio Moro Júnior e Priscila Bolcchi, engenheira ambiental e sanitarista. Assista: https://www.youtube.com/watch?v=igbfc26hdYk.

A rotina de Jardim principalmente nos meses de outubro a março é acompanhar a previsão do tempo. “A primeira coisa que a gente faz no dia é olhar para o céu para ver se há nuvens carregadas e acompanho todas as previsões do tempo porque nós moradores da rua Laura estamos sofrendo com enchentes desde 1986 quando foi gerado o maior problema para nós que foi a canalização do córrego. Quando ele corria a céu aberto ele tinha uma calha bastante ampla e com a canalização houve uma restrição das águas somada a impermeabilização da bacia da Vila Bastos, entre a avenida Portugal, avenida Lino Jardim e a rua Gonçalo Fernandes. Essa inundação começa a invadir os lares porque é uma área plana”, comenta.

“Já perdemos o controle dos danos, basta chover e nós precisamos colocar as coisas nas partes mais altas”, diz o morador da Vila Bastos. Ele próprio aponta soluções que a população poderia adotar, como aumentar as áreas permeáveis nos seus imóveis, tais como jardins e calçadas gramadas.

O professor coordenador do curso de urbanismo da USCS, também aponta que não há programas públicos neste sentido de aumentar a permeabilidade. Ele cita os jardins de chuva que poderiam ser implantados nas esquinas. “Essa água infiltra e vai para o lençol freático, usamos a solução da natureza. As calçadas de grama também ajudariam, garantir pelo menos 20% de área permeável em cada lote também é muito importante”. Ele também não aprova os piscinões. “Eles deixam a cidade urbanisticamente pior e funcionam quatro dias por ano e tem uma área enorme degradada”.

Priscila Bolcchi considera que o piscinão é caro, afeta o urbanismo, mas é a solução emergencial para o problema. “Apesar disso ele é uma solução para as situações de alagamento. Para algumas situações a retificação e canalização dos córregos podem funcionar, quando se tem uma estrutura urbana que dê suporte, como áreas permeáveis. Hoje está tudo impermeabilizado”.

Praticamente vizinha ao Piscinão Jaboticabal, Neide Capella, moradora há 22 anos do bairro São José, em São Caetano, conta que já perdeu muitos objetos de sua casa por conta de enchentes no passado. A situação havia melhorado até a grande enchente de 2019. “Já tinha uns 14 anos que não acontecia, acho que mexeram em alguma coisa e a situação melhorou. Mas não sei o que houve naquela ocasião, em 2019, que foi demais”, recorda-se a moradora.

Apesar do episódio sério ocorrido há pouco mais de 3 anos a moradora de São Caetano diz que se sente mais segura, tem menos medo das enchentes, mesmo assim mantém as proteções na frente de casa, por precaução. Nas mais de duas décadas em que vive no bairro ela chegou a pensar em vender a casa. “Eu tentei, mas nessa hora aparece muita gente que tenta se aproveitar, as chuvas acontecem mais durante três ou quatro meses do ano, o restante a gente fica tranquilo, mas quando quer vender derrubam o preço por se tratar de área de risco. Se sua casa vale R$ 1 milhão querem pagar R$ 400 mil, nunca se consegue o valor de mercado”, disse a moradora que desistiu da venda.

Apesar de menos ocorrências de cheias no bairro e a sensação maior de segurança quando às enchentes, Neide diz, no entanto, que não se pode garantir que as enchentes não voltem. “Área de risco vai ser sempre área de risco”, completa.

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