A exigência do Cartão São Caetano no serviço público de saúde da cidade pode ser equiparada à situação do Restaurante Nosso Prato onde a Justiça considerou inconstitucional a prefeitura condicionar a apresentação do documento para ingresso no restaurante público. A avaliação é de especialista em direito público ouvido pelo RD e reforçada pela posição da vereadora Bruna Biondi (PSol).
A medida teve início com a aprovação de lei na Câmara, com voto da maioria governista, em 2019. No mesmo ano aconteceu a licitação para a escolha da empresa que implantaria o sistema, procedimento este que também foi alvo de irregularidades apontadas pelo TCESP (Tribunal de Contas do Estado de São Paulo) e que valeu multa de 300 Ufesps (Unidades Fiscais do Estado de São Paulo), que equivalem a R$ 10.608,00, ao prefeito José Auricchio Júnior (PSDB) e ao seu secretário de Fazenda, Jefferson Cirne da Costa. A corte de contas encaminhou o relatório para o Ministério Público.
A prefeitura inaugurou em dezembro o Restaurante Nosso Prato, uma iniciativa do poder público que fornece refeições a R$ 1 para pessoas de baixa renda, porém condicionou o atendimento a apresentação do Cartão Cidadão. Em fevereiro a Justiça determinou que a exigência era inconstitucional. Para o promotor de Justiça Alessandro Augustus Aliberti, tais condições para acesso à política pública “não encontra amparo em qualquer norma legal vigente, sequer havendo lei municipal autorizativa da regra discriminatória”, configurando flagrante violação ao ordenamento jurídico. A juíza Daniela Anhoeto Valbao Pinheiro Lima, da 6ª Vara Civil de São Caetano determinou a inconstitucionalidade e em seu despacho determina que o atendimento seja universalizado no equipamento público e ainda que a prefeitura fizesse ampla divulgação de que todos podem ter direito às refeições.
O mesmo critério deve servir para o acesso à saúde, segundo a vereadora Bruna Biondi. “O Cartão São Caetano foi criado com essa intenção de impedir que pessoas de outras cidades procurassem atendimento aqui, por isso a gente entende que a exigência deste cartão é irregular desde o início. O SUS (Sistema Único de Saúde) é universal e não faz sentido uma pessoa de Santo André, que passa ou trabalha em São Caetano, não poder acessar o serviço, essa é uma lógica elitista e higienista. Nós até votamos um projeto que mudou uma palavra na lei, trocando a expressão ‘que o cartão deverá ser apresentado’ para ‘poderá ser apresentado’, mesmo assim a prefeitura continua exigindo”, diz a parlamentar.
A vereadora diz que há discriminação até na entrada para o atendimento no Hospital Albert Sabin. “Lá são duas entradas de emergência, quem é morador de São Caetano entra pela porta do Pronto Socorro e quem não é acaba sendo encaminhado para a entrada da UPA (Unidade de Pronto Atendimento) que é anexa. Nós cobramos há dois meses a secretária de Saúde (Regina Maura Zetone), durante a audiência pública de Saúde e ela nos disse que enquanto não tiver uma ordem judicial, vão continuar exigindo o Cartão São Caetano”, reproduz Bruna. “Nós vamos continuar cobrando porque esse cartão segrega e além disso quem quer tirar tem que esperar seis meses”, completa.
Para o advogado mestre em direito público pela USP (Universidade de São Paulo), Antonio Carlos de Freitas Júnior, a exigência do cartão para acessar serviços públicos de saúde fere a Constituição e a própria lei específica que criou o SUS. “Muito embora a gente tenha notícia de prefeituras que impõem esse cadastro municipal com restrições a Constituição Federal é muito clara no seu artigo 194 parágrafo único, inciso primeiro, e também no artigo 196, que tratam do acesso universal à saúde. Essa exigência fere ainda a própria lei 8080 de 1.990 que rege o SUS, ou seja, não há qualquer elemento legal que permita qualquer tipo de restrição ao atendimento da saúde. Criar algum tipo de bloqueio ou restrição ou qualquer elemento impeditivo para o acesso à saúde, não somente é ilegal como inconstitucional. O acesso deve ser para todas as cores de pele e todas as origens. A Constituição diz que os três entes, União, estados e municípios devem atuar de maneira colaborativa para atender a população, não importa onde é seu domicílio, nem se tem ou não tem casa. Esses elementos não podem ter qualquer relevância no atendimento”, aponta.
Para o especialista em direito público, se o paciente não for atendido, pode ocorrer o enquadramento por prevaricação, que é quando um funcionário público não cumpre seu dever e podem ocorrer mobilizações jurídicas contra os gestores. “Pode ser proposta uma ação civil pública por improbidade administrativa e ações populares contra este ato, além disso o Ministério Público pode atuar. Se houver uma omissão sistemática do prefeito, eu vejo isso como um crime de responsabilidade porque vai contra a Constituição, invalida a lei em detrimento das garantias fundamentais”, completa Freitas Júnior.
A prefeitura de São Caetano foi questionada sobre o número de cartões emitidos e também sobre quantos atendimentos foram realizados de pacientes de fora da cidade antes e depois da lei que criou o Cartão São Caetano, mas até o fechamento desta reportagem não houve resposta.
Sobre a licitação considerada irregular e que gerou multas de 300 Ufesps (Unidades Fiscais do Estado de São Paulo), que equivalem a R$ 10.608,00 para o prefeito José Auricchio Júnior (PSDB) e também para o secretário da Fazenda, Jefferson Cirne da Costa, o Ministério Público de São Paulo, que recebeu o relatório do Tribunal de Contas, não se manifestou.