É nos primeiros anos de vida que a criança começa a desenvolver habilidades e construir aprendizagens que seguirão por toda a vida. Nesse contexto, se faz necessária a prática docente da educação básica (em sua primeira etapa) e ações formativas e capacitivas realizadas com educadores. Acontece que no ABC isso ainda é uma realidade distante, uma vez que falta capacitação e profissionais suficientes para dar conta da demanda nas escolas de educação infantil.
Em São Caetano, a reclamação é sobre a escassez crítica de auxiliares da primeira infância na Escola Municipal de Educação Infantil EMI Antônia Capovilla Tortorello. Um auxiliar da unidade, que não será identificado, conta que em razão da falta de profissionais, uma criança acabou acidentada na escola. “Testemunhamos um incidente chocante em que um bebê com menos de um ano foi mordido duas vezes no rosto, porque faltou supervisão adequada, decorrente da falta de auxiliares em sala”, conta.
Ainda de acordo com o profissional, essa não é uma situação isolada. A falta de funcionários afeta a escola há meses, e se cria um ambiente de aprendizagem precário e inseguro. “Há poucos meses, uma criança encontrou um estilete e, brincando, cortou os próprios dedos da mão, ressaltando ainda mais a urgência de resolver a situação”, diz o auxiliar ao comentar, ainda, que os poucos funcionários que atuam no local precisam também assumir outras tarefas quando necessário. “Até ficar no lugar de porteiro nós ficamos, mesmo sem receber hora extra para isso”, reclama.
Deficiências
A falta de capacitação profissional também bate à porta da EMI Antônia Capovilla. O auxiliar conta que, em muitas salas, existem alunos “desafiadores”, com deficiências ocultas, mas que os profissionais sequer recebem algum tipo de formação para lidar com essas crianças. “E quando vamos recorrer à Secretaria da Educação é por sorte, por vezes ajudam a resolver o problema, outras vezes dizem apenas que é ‘um problema interno’ e devolvem a questão para nós”, diz.
Outro problema na unidade de ensino, e destacado pelo reclamante, é o processo discriminatório de seleção dos profissionais. “Na última chamada de profissionais que teve só 20% eram homens, e percebemos que também é um problema com muitas famílias que colocam o gênero como restrição para troca de fraldas ou até mesmo para levar a criança ao banheiro”, comenta.
Em nota, a Prefeitura de São Caetano diz que as informações não procedem e que 48 auxiliares atuam nesta escola, especificamente. A administração diz ainda que a atuação de APIs por sala leva em consideração a idade das crianças e, portanto, o grupo ao qual pertencem, conforme classificação: G1 – seis auxiliares; G2 – quatro auxiliares; G3, G4 e G5 com dois auxiliares cada.
“Idade de ouro” não é aproveitada em Ribeirão Pires
Os alunos que estão na chamada “idade de ouro” de aprendizagem também não conseguem ter o ensino totalmente aproveitado na rede municipal de Ribeirão Pires. Uma professora credenciada à rede, e que prefere não ser identificada, comenta que são poucos os auxiliares da primeira infância que atuam nas escolas, e os que têm, muitas vezes não recebem capacitação. “Parece que selecionam alguém para ‘cobrir o cargo’ e sanar a vontade política sem exigir uma qualidade do profissional”, reclama.
A professora conta que crianças com qualquer tipo de deficiência também sequer recebem atendimento especializado. “Sabemos que uma parcela de alunos sofre com algum tipo de deficiência, como o autismo, mas a forma que nós, professores, lidamos, é com atividades mais básicas, que é o que ‘achamos’ ser proveitoso nesse tipo de situação, mas não há quem identifique ou auxilie nesse quesito”, acrescenta.
Questionada, a Prefeitura de Ribeirão Pires esclarece não possuir ADI (Auxiliar de Desenvolvimento Infantil), já que não há previsão em lei para manter esse tipo de profissional em aula. Entretanto, esclarece que profissionais formados em pedagogia ou magistério atendem alunos de zero a três anos. “Estes profissionais têm título de (PDI) Professor de Desenvolvimento Infantil”, diz.
Cuidar e educar
Professora do curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da USCS (Universidade Municipal de São Caetano do Sul), Marta Regina Paulo da Silva esclarece que, em primeiro momento, é importante reconhecer que os(as) auxiliares da primeira infância são educadores, com função não só de cuidar, mas educar as crianças. “Por isso, faz-se fundamental que as instituições em que os auxiliares atuam invistam em sua formação continuada, visto que eles participam diretamente na formação de bebês e crianças pequenas em um momento vital do desenvolvimento e aprendizagem”, afirma.
As tarefas que competem a estes(as) profissionais dependem do que as redes públicas e instituições privadas estabelecem enquanto atribuições. Mas, na visão da docente, infelizmente, há uma compreensão equivocada de que cabe aos auxiliares o cuidar e educar, como se fosse possível dicotomizar estas duas dimensões. “A própria legislação da Educação Infantil assevera o caráter indissociável do cuidar e educar. Outro equívoco é compreender o cuidar tão somente no que se refere aos cuidados com o corpo físico”, diz.
A proporção adulto/criança também deve considerar alguns fatores: número que permita ao docente dar atenção e interagir com todas as crianças e suas famílias; as características dos bebês e das crianças pequenas e o espaço físico. “Sendo assim, recomenda-se a proporção de 6 a 8 crianças por docente no caso de crianças de zero a um ano; 15 no caso de crianças de dois a três anos e 20 no caso de crianças de quatro e cinco anos”, recomenda.
Já em relação ao gênero, Marta comenta que essa é uma situação que se repete em vários locais, o que mostra uma sociedade marcada pelo patriarcado e machismo. “Algumas instituições, para não enfrentar esta discussão, terminam por transferir os docentes homens para outros segmentos educacionais ou para turmas da pré-escola”, diz. Segundo ela, há também aquelas instituições que mantém o profissional, mas este é impedido de, por exemplo, trocar as crianças, o que termina por sobrecarregar a outra educadora (mulher), além de reproduzir a divisão sexual do trabalho.
Do ponto de vista da docente, o critério que deve ser analisado ao classificar ou selecionar um profissional como este é que tenha um olhar sensível e escuta atenta às crianças, como respeitá-las, reconhecer a potência dos pequenos, ser alguém que goste de aprender, estudar etc.
Mais auxiliares
De 2022 para 2023, as prefeituras do ABC mostram ter ampliado o número de auxiliares na primeira infância entre as cidades, mas a demanda segue extensa. Em Rio Grande da Serra eram 96 profissionais, hoje são 102. E está em andamento o chamamento de mais profissionais, por meio do concurso público promovido em janeiro deste ano. Em Mauá eram 764, hoje são 819, mas do total de 44 escolas, são 39 ADIs no quadro, número ainda baixo se comparado ao que é ideal, sugerido pela professora.
Em São Bernardo são 840 auxiliares, número 45,3% superior a 2022. Segundo a administração, todas as 153 unidades escolares possuem este profissional, sendo o número por unidade “variável”, conforme distribuição de turmas. Além dos auxiliares, as escolas de São Bernardo também contam com quadro de apoio complementar, na ordem de 50% de profissionais a mais, sendo um apoio complementar a cada duas turmas. São 2.162 cuidadores que atuam no apoio às crianças com deficiência tanto nas turmas da primeira infância quanto em turmas do ensino fundamental.
Já Santo André dispõe de 874 agentes de desenvolvimento infantil e 343 estagiários de pedagogia entre as 44 creches da cidade. Em 2022, o quadro era composto por 842 agentes e 317 estagiários. Assim como São Bernardo, não há um número fechado de profissionais em cada unidade, é levado em conta o número de salas e quantidade de crianças matriculadas por unidade. Assim como em Rio Grande da Serra, a Secretaria de Educação aguarda autorização para a chamada de novos funcionários advindos do concurso público, edital 01/2023 e novos estagiários de pedagogia.
Em São Caetano um concurso público está em andamento, com previsão de início de contratação em janeiro de 2024. Atualmente são 1.019 auxiliares, acréscimo de 69 profissionais, na comparação com o ano passado. Já em Diadema são 1.303 professores em creches e escolas de educação infantil da rede direta. Nas unidades conveniadas, são 320 professores e 204 auxiliares ou estagiários. Não há previsão de ampliação.