
O número de estupros registrados no ABC em agosto foi o maior do ano, foram 62 casos, média exata de dois casos de violência sexual por dia. Os números oficiais da Secretaria de Segurança Pública apontam que os registros de casos não param de crescer desde o ano passado. Em 2021, a média mensal de casos era de 42,7 casos, neste ano saltou para 51,8. Especialistas no assunto ouvidas pelo RD sustentam que a alta está muito ligada à redução da sub-notificação destes crimes.
Para a delegada Renata Cruppi, titular da DDM (Delegacia de Defesa da Mulher) de Diadema, a sub-notificação tem diminuído e isso pode ter influenciado as estatísticas deste tipo de crime. “No caso dos adolescentes acima de 14 anos e das mulheres acima de 18, a sub-notificação tem diminuído muito. A legitimação da fala, a escuta ativa, a diminuição daquele cancelamento da fala da mulher, potencializaram a coragem delas de denunciar. Então houve aquilo que antigamente não víamos com muita frequência e que acaba contribuindo com as estatísticas. Temos que estudar estratégias, tanto para evitar novos casos, como para dar auxílio para essa mulher que está em sofrimento”, analisa.
Também para a docente do curso de Direito da USCS (Universidade Municipal de São Caetano do Sul) e ex-delegada de polícia, Estela Bonjardim, o contingente de casos está relacionado a uma demanda represada de casos, de um período em que a vítima ficou mais em casa junto com o agressor, o período da pandemia. “Temos que considerar que estamos saindo de uma pandemia que durou mais de dois anos e que já há pesquisas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que evidenciam uma grande dificuldade que as vítimas tinham, no decorrer da pandemia, para fazer denúncias. Se a gente considerar que essas vítimas foram obrigadas a permanecer fechadas, em casa, muitas das vezes com seus próprios agressores e que as delegacias de polícia, no auge da pandemia, também tiveram seus horários restringidos é natural que nós encaremos aí uma dificuldade muito grande das vítimas em fazerem denúncias”.
Estela diz considera que o controle da pandemia e o surgimento de mais meios de denúncia fez a estatística oficial crescer. “Agora com o controle da pandemia esses números tendem a subir mesmo, como têm subido todos os números de violência doméstica, contra mulheres, contra crianças, adolescentes e idosos. Então não acredito no aumento do número de casos, mas no aumento das notificações em função do término da pandemia. Se pesquisarmos sobre lesões corporais, violência moral, financeira e psicológica, nos últimos meses vemos que isso explodiu de modo bastante evidente porque agora as pessoas têm mais condição de denunciar. Por outro lado a mulher se sente cada vez mais encorajada a denunciar e isso também é um aspecto positivo. Existem mais denúncias porque existe um aparato maior de recebimento e de tratamento dessas denúncias”.
Vulneráveis
Nos casos em que as vítimas são menores de idade os autores são, em geral, pessoas muito próximas e que exercem algum tipo de poder sobre ela ou parentesco. “No estupro de vulnerável o agressor continua sendo a pessoa próxima da vítima, que tem a confiança dela. Muitas vezes há parentesco, como padrasto, tio ou mesmo amigos da família, esses são os principais autores da violência”, diz a delegada. Nestes casos a família deve ficar atenta a alguns fatores que podem indicar que algo não está bem. “Tem que ficar muito atento com as mudanças de comportamento. Não colocar em dúvida o que a criança ou adolescente está expondo, enfim, evitar colocar palavras na boca da adolescente, mas ouvir atentamente, analisar para ver se há algum elemento indicativo de violência sexual”, orienta a delegada Renata Cruppi.
A chefe da DDM de Diadema diz que desde criança a mulher tem que aprender a ter controle sobre seu corpo. “Se ela tinha hábitos de frequentar um local e de repente diz que não quer mais, tem que verificar a motivação sem briga, sem forçar, ouvir atentamente e tentar perceber se é fala de violência sexual ou não. Há situações em que a vítima não consegue externar o que passou porque não entende que aquilo é uma violência e, em outros casos, ela já externa de forma muito rápida, muito direta. Quando a criança diz que não quer abraçar, ou beijar, precisa respeitar porque se obriga vai demonstrar que a criança não tem autonomia do próprio corpo, que ela não pode negar o pedido de um adulto. Depois, quando há essas investidas de agressores sexuais, ela não consegue falar não, ela não consegue se defender. Nós precisamos fortalecer as crianças e os adolescentes para que possam entender o que pode e o que não pode, que a vontade dela tem que ser respeitada, principalmente quando o assunto é seu próprio corpo”.
A docente de direito da USCS aponta novas legislações, em âmbito de municípios e também do Estado, que estimulam a denúncia. “Esses crimes são o que chamamos de ação penal pública incondicionada em que qualquer pessoa, que tenha notícia de um crime de violência sexual contra vulnerável ou de violência doméstica, pode e deve denunciar independentemente de ser próximo ou familiar da vítima. Muitas vezes quem faz a denúncia é um professor ou professora, uma pessoa em que a vítima acaba confiando ou que percebe que alguma coisa está errada. Recentemente foram criadas leis estaduais e municipais, não há ainda lei federal, que obrigam as pessoas que têm conhecimento de violência doméstica em condomínio ou núcleos residenciais a fazerem a denúncia e não se omitirem. Então chega daquela história de que em briga de marido e mulher ninguém mete a colher. Quem quer que tenha conhecimento precisa denunciar, chamar a polícia ou comunicar ao síndico ou a pessoa responsável, pois não se aceita mais a omissão de vizinhos”.
Estela Bonjardim elogiou a criação das Patrulhas Maria da Penha, pelas guardas civis. “Outra medida bastante saudável é a criação da Patrulha Maria da Penha em vários municípios, inclusive aqui na região, criada por lei, ela aumenta em muito a possibilidade de denúncia mais rápida e atendimento um pouco mais rápido também”, aponta.