ABC - quinta-feira , 2 de maio de 2024

Dois anos da maior tragédia ambiental do Brasil

(Foto: Fred Loureiro/Fotos Públicas)

A maior tragédia ambiental do Brasil – que completa dois anos neste domingo, 5 – deixou, no rastro do mar de lama que se espalhou por 650 quilômetros entre Minas Gerais e Espírito Santo, 19 mortos, a localidade de Bento Rodrigues (em Mariana) submersa, as de Paracatu de Baixo (também em Mariana) e Gesteira (em Barra Longa) destruídas e perdas imateriais que continuam doendo em seus moradores. Desde então, as festas religiosas, as partidas de futebol descomprometidas, o bate-papo com os vizinhos e o trabalho na roça se esvaíram.

As cerca de 300 famílias desalojadas pela lama que se alastrou com o rompimento da barragem do Fundão, da mineradora Samarco, vivem agora na área urbana da Mariana, apartadas umas das outras, e enfrentam a hostilidade de muitos moradores da cidade (que ganharam novos vizinhos de uma hora para outra) e seus próprios demônios. A cena mais marcante é o distrito de Bento Rodrigues: uma localidade fantasma, com escombros e lama. Dos 19 mortos, 14 eram trabalhadores e 5, moradores locais.

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Durante uma semana, a reportagem percorreu locais centrais da tragédia em Minas e no Espírito Santo e conversou com pessoas que foram diretamente atingidas pelo rompimento. Apesar do risco de desmoronamento, ex-moradores voltam periodicamente ao local.

“Eu venho quando quero e ninguém me impede. Eles (Defesa Civil) sabem que, se eu achar algo que era meu, vou pegar”, conta a agricultora Marinalva dos Santos Salgado, de 45 anos, que teve a casa soterrada e continua à procura de uma agenda que o marido deixou. “Ele viajava muito a trabalho. Estava doente, mas não me contava pelo telefone, só escrevia. Ele me deu a agenda e morreu três dias depois.”

O rompimento da barragem do Fundão em 5 de novembro de 2015 atingiu muito mais gente que os mortos e suas famílias: um total de 500 mil pessoas. Estima-se que, com o rompimento da barragem, 39,2 milhões de m³ de rejeitos de minério tenham percorrido os Rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce até desembocar no Oceano Atlântico. O tsunami de lama afetou diversas comunidades ribeirinhas mineiras e capixabas pelo caminho. Contaminou a água, tirou o trabalho de pescadores que dependiam dos rios para sobreviver, matou animais e plantas.

Após o rompimento da barragem, um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) assinado entre a Samarco e suas controladoras, Vale e BHP, com a União e diversas autarquias federais e estaduais, criou a Fundação Renova, responsável pela reparação dos danos decorrentes. As ações passaram a ser definidas pelo Comitê Interfederativo, que reúne também órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a Agência Nacional de Água (ANA) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do governo federal.

À espera

Até agora, poucos foram indenizados. Boa parte dos pagamentos – 70% a pescadores – ainda está em negociação. A Fundação entregou pouco mais de 8 mil cartões de auxílio financeiro, que é pago mensalmente, a cerca de 20 mil pessoas. O reassentamento das vilas está marcado para 2019, mas as obras nem começaram.
Dos R$ 11,1 bilhões previstos até 2030 no orçamento da Fundação, R$ 2,5 bilhões foram gastos. Além de um processo criminal contra 22 pessoas, que está paralisado por ordem judicial, há ao menos outros 74 mil em andamento, além de uma ação civil pública que reúne os atingidos em Bento Rodrigues.

A previsão de recuperação total dos estragos ambientais é 2032. Ainda não há laudos definitivos sobre todos os impactos, e os órgãos monitoram a área afetada para verificar se os peixes estão ou não aptos para o consumo humano e como a quantidade de espécies foi impactada. Os estudos, de acordo com a Renova, devem ser finalizados até o início do ano que vem e compartilhados com os órgãos ambientais.

A Renova cercou 511 nascentes na Bacia do Rio Doce e promete recuperar em dez anos, conforme prazo fixado pelo TTAC, 5 mil nascentes. Ainda há o debate sobre o que será feito com os rejeitos. Na barragem, esse material tinha areia e argila. Depois do rompimento, isso se juntou a solo, sedimento, árvores e o que mais estava no fundo do rio – o que dificulta a destinação dessa mistura.

Após dois anos, ainda há muitas perguntas sem respostas, dúvidas e muito por fazer. Enquanto isso, a mineradora Samarco quer retomar suas operações. Com atividades paralisadas, a empresa tenta provar às autoridades que é capaz de atuar em segurança. Hoje, sobrevive de aportes de suas controladoras, que já destinaram à empresa US$ 430 milhões (cerca de R$ 1,41 bilhão). Antes da tragédia, a Samarco empregava cerca de 6 mil funcionários. Hoje, são 1,8 mil, sendo que 800 estão com o contrato suspenso.

Surgem primeiros indícios de recuperação ambiental em Mariana

Dois anos depois da tragédia de Mariana, começam a surgir os primeiros indícios do retorno de animais silvestres às margens do Rio Doce e de seus afluentes. Segundo a presidente do Ibama, Suely Mara Vaz de Araújo, de 55 anos, dada a extensão e a gravidade da tragédia, esta é uma boa notícia. Também é comemorado o fato de que a água destinada ao abastecimento voltou a ser potável.

“Os efeitos ambientais de um desastre desse porte são complexos e de grande magnitude. No que diz respeito ao meio ambiente, passamos de uma fase de emergência para a de recuperação ambiental.”

Construções em Bento Rodrigues garantiram a contenção da lama e impediram que uma nova tragédia acontecesse. Começa a ser aplicado agora um plano de manejo dos rejeitos, com soluções para cada trecho afetado.

Ao longo do Rio Doce foram instalados mais de 50 estações de controle, o que faz dele o rio mais bem monitorado do País. “Já no que diz respeito à recuperação florestal, temos décadas de trabalho pela frente. É uma tragédia muito grande e seus efeitos são dramáticos.”

O desafio da compensação necessária em Mariana

Roberto Waack, de 57 anos, tem uma missão nada fácil. Presidente da Renova, fundação criada com a missão de implementar e gerir os programas de reparação dos impactadas do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, ele lida com indenizações, reassentamentos, recuperação da água e reflorestamento. O auxílio emergencial é pago a 8 mil pessoas. Só 180 mil foram ressarcidas pela falta de água – de um total de 450 mil afetados. Outros estão em fase final de negociação.

A parte das indenizações é considerada a mais complexa, mas a Renova diz que já iniciou os processos de pagamento. “É difícil estimar todas as atividades econômicas de cada um, pesca, pousada, agronegócio, fora danos morais.”

Waack admite lentidão. “Demorou sim. Mas não é um processo trivial”, afirma. “Por exemplo: 80% dos pescadores (que viviam da pesca no Rio Doce e afluentes) são informais, não têm como comprovar as perdas. Tivemos de buscar outras formas de comprovar isso.” A indignação de grupos afetados é “justificável”, segundo ele. “Elas (as vítimas) querem receber o dinheiro e têm razão.”

Sobre a recuperação ambiental, garante não haver vazamento de rejeitos e destaca que a água voltou a ser potável. Muitos moradores, porém, continuam bebendo água mineral.

Tragédia de Mariana ainda afeta economia da cidade

Desde o rompimento da barragem, o município de Mariana viu o desemprego, que nunca havia ultrapassado os 6%, atingir 23,5% da população. A arrecadação, por sua vez, caiu de R$ 27 milhões por mês para R$ 17, 5 milhões. O motivo: a inatividade da mineradora Samarco. As contas da prefeitura simplesmente não fecham.

“Desde o rompimento, vivemos uma tragédia continuada”, diz o prefeito Duarte Eustáquio Gonçalves Junior (PPS), de 37 anos. O promotor de Justiça do Ministério Público de Minas, Guilherme de Sá Meneghin, de 34 anos, faz coro: “Há uma perpetuação diária da violação dos direitos das vítimas, sobretudo na forma como a empresa as trata”.

Para o prefeito, a empresa falhou e os responsáveis devem responder por isso. “Não havia sirenes, ninguém foi avisado. Se fosse noite, teria exterminado a população.” Mas ele destaca que a Samarco não abrigava só os responsáveis pela tragédia, mas também funcionários técnicos, da limpeza, motoristas – e eles também estão sem trabalho.

“Vivemos entre a cruz e a espada: os responsáveis precisam ser punidos, mas, sem o retorno da mineração, há uma segunda tragédia”, diz Gonçalves.

Tragédia em Mariana: personagens sem passado

A agricultora Marinalva dos Santos Salgado, de 45 anos, teve a casa completamente soterrada pela lama que atingiu Bento Rodrigues. Ao fugir da inundação, levou apenas a roupa que tinha no corpo. Dois anos depois da tragédia, ela não conseguiu recuperar nenhum objeto pessoal. Ainda tem esperança de achar uma agenda deixada por seu marido três dias antes de morrer.

Nalva nos guia em silêncio pelas ruas do antigo vilarejo de Bento Rodrigues. Na localidade fantasma, monocromática, o único barulho que se ouve é o dos passos. “Aqui era o bar do meu pai”, ela aponta para as ruínas de uma construção de esquina. “Esta casa do lado também era do meu pai, pra aluguel. Atrás desse tapume é a igreja onde fui batizada, onde batizei meus filhos e netos.”

Assim como Nalva, o casal Luzia Queiroz, de 52 anos, Caetano da Silva, de 33, volta a Paracatu de Baixo sempre que possível. O local, onde moravam, também foi destruído pela lama. “A gente continua vindo aqui, mesmo sem água, luz, esgoto, sem nada”, conta Luzia. “Porque isso aqui é nosso. A terra é nossa.”

Resgate da história

A lama que soterrou vilarejos, envenenou o Rio Doce e chegou até o Oceano Atlântico também destruiu parte da história de Minas Gerais. Três igrejas construídas nos séculos 18 e 19 em Mariana e Barra Longa foram invadidas pelo tsunami de rejeitos. Muitas imagens sacras se perderam.

Para tentar recuperar parte desse patrimônio foi criada uma reserva técnica em Mariana, que já recebeu 2.134 peças ou fragmentos de peças dos acervos das igrejas, encontrados nos vilarejos e também ao longo do curso do Rio Doce.

As peças estão sendo limpas e recuperadas e serão devolvidas no futuro às comunidades. Mas o mais difícil, conta a restauraora responsável pelo projeto, Mara Fantini, de 58 anos, é recuperar o patrimônio imaterial das localidades atingidas. “Tudo o que encontramos dentro das igrejas trazemos para cá. Não temos como julgar o que é importante para eles.”

Uma garrafa pet cheia de água foi um dos itens levados pelos especialistas para a reserva técnica. “Quando os moradores viram, se emocionaram muito. Era a água benta que o padre tinha deixado com a comunidade dias antes da tragédia.”

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