Eliane Ferreira Santiago, de 37 anos, convive desde criança com dores fortes em todo o corpo e uma fadiga crônica. Foi em diversos médicos e conta que fez, em diferentes faixas etárias, vários exames. Os médicos de planos de saúde brasileiros já pedem mais exames de tomografia e ressonância do que profissionais de países desenvolvidos, segundo dados inéditos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
O número desses procedimentos por pacientes de convênios médicos no País cresceu 22% em apenas dois anos, o que, segundo a ANS e especialistas, indica que muitas solicitações podem estar sendo feitas indevidamente. Entre as principais razões para a realização excessiva dos procedimentos estão falhas na formação médica, interesses financeiros de hospitais e laboratórios e má remuneração por parte das operadoras aos prestadores de serviço. O fenômeno, além de aumentar o desperdício de recursos no sistema privado, ainda traz riscos aos pacientes, como a exposição frequente a radiações comuns em exames de imagem.
A tomografia computadorizada e a ressonância magnética são usadas como referência pelos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para avaliar o acesso aos recursos de saúde na área de tecnologia médica. Enquanto nessas 35 nações – incluindo algumas das mais desenvolvidas do mundo, como Alemanha, França e Estados Unidos -, a média anual de ressonâncias é de 52 por 1 mil habitantes, no sistema suplementar brasileiro o índice foi de 149 por 1 mil beneficiários em 2016, segundo o mais recente Mapa Assistencial da Saúde Suplementar da ANS, que será publicado nesta semana.
A média de tomografias realizadas também é superior nos planos de saúde do Brasil em 2016 em comparação com países ricos: 120 exames por 1 mil habitantes nas nações da OCDE ante 149 por 1 mil beneficiários dos convênios médicos brasileiros.
Considerando os números absolutos, o número de ressonâncias feitas por pacientes de convênios passou de 5,7 milhões em 2014 para 7 milhões em 2016, alta de 22%. Já o de tomografias passou de 5,9 milhões para 7 milhões no mesmo período, crescimento de 18%. Mesmo se avaliados todos os tipos de exames feitos por beneficiários de planos, houve aumento de 12% no número de procedimentos entre 2014 e 2016.
Desperdício
Para Karla Coelho, diretora de normas e habilitação de produtos da ANS, a diferença entre os índices do Brasil e de outros países traz um alerta. “É um desperdício de recursos. Enquanto os prestadores de serviço, como hospitais e laboratórios, forem pagos por procedimento e não por qualidade, o número de exames será infinito”, diz ela.
Já o professor da Faculdade de Medicina da USP Mario Scheffer destaca que “os convênios não trabalham tanto com prevenção e promoção de saúde, ficam focados na atenção especializada e, muitas vezes, ainda pressionam os médicos a fazerem atendimentos rápidos para que seja possível atender mais pacientes no mesmo dia”. “Assim, o tempo que deveria ser gasto com anamnese e conversa com o paciente é substituído pela indicação de exame.”
Presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), Mauro Aranha ressalta que, além da questão da baixa remuneração pelos planos de saúde, as falhas na formação médica podem estar contribuindo para esse cenário de dependência do uso de tecnologia nos diagnósticos. “O médico que não tem competência suficiente para uma avaliação clínica vai tentar compensar com pedidos de exames.”
Exemplo
Eliane foi diagnosticada com reumatismo, mas as dores nunca passavam. “Há uns dez anos, comecei a pesquisar por conta própria e vi que tinha todos os sintomas de fibromialgia. Procurei um médico e depois disso é que ele conseguiu me diagnosticar”, diz. Hoje, criou até um grupo sobre a doença nas redes sociais. “Quase todo mundo com a síndrome demorou anos para descobrir porque os médicos não prestam atenção aos sintomas que o paciente descreve. É uma negligência que traz sofrimento.”
30% de resultados de exames nunca são consultados
Diretor da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), Pedro Ramos afirma que são os hospitais, laboratórios e até mesmo alguns médicos os responsáveis pelo excesso de exames realizados. “Os tomógrafos no Brasil viraram máquinas de fazer dinheiro. Os prestadores de serviço lucram e há profissionais que chegam a ganhar comissão por prescrever mais procedimentos. Saúde não é isso. Não somos contra a tecnologia, mas ela tem de ser usada quando necessária”, comenta.
Ele relata que 30% dos exames de imagem realizados por pacientes de convênios médicos nem sequer têm os resultados retirados (já considerando os que são acessados pela internet). “Isso aumenta gastos das operadoras e, por consequência, as mensalidades dos planos.”
Segundo a diretora da ANS Karla Coelho, a agência tem apostado, como principal estratégia para minimizar o problema, na discussão de novos modelos de contrato entre prestadores de serviço e operadoras. O ideal, diz ela, é que o pagamento fosse feito por resolutividade e não por procedimento feito. No formato almejado, os planos deveriam remunerar melhor também os prestadores que investissem em ações de prevenção de doenças. “Há algumas iniciativas de algumas empresas e um grupo de trabalho interno na ANS.”
Problemas respiratórios lideram lista de internação
Foi uma pneumonia que manteve Giovanna, de 9 anos, internada por um mês na UTI de um hospital infantil particular de São Paulo. “Ela estava com espasmos na respiração e nitidamente muito mal”, diz a mãe, a professora Rosana Bignami, de 55 anos.
Rosana conseguiu que a menina, que tem síndrome de down, fosse internada, depois de muita discussão com a médica. Segundo ela, a criança foi levada direto para a UTI, entubada e diagnosticada com pneumonia. “Minha filha só saiu do hospital um mês depois e continuou em tratamento, com fisioterapia pulmonar, por mais 4 meses. Até hoje a voz dela ainda é um pouquinho rouca”, conta.
Outros dados do mais recente Mapa Assistencial da Saúde Suplementar da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) mostram que, embora os problemas cardiovasculares sejam a principal causa de mortalidade no País, são as doenças respiratórias as que levam o maior número de pacientes de planos de saúde à internação.
Segundo o levantamento da agência, 472.824 beneficiários de convênios médicos foram hospitalizados somente no ano passado com esses problemas, ante 446.956 por doenças do aparelho circulatório.
Bariátrica e parto
Em cirurgias, a ANS destaca o aumento de 20% no índice de bariátricas realizadas pelos planos de saúde. O índice desses procedimentos por 1 mil beneficiários passou de 1,36 em 2014 para 1,63 em 2016, quando foram realizadas 50.443 operações. “Era um aumento esperado tendo em vista que a obesidade e o sobrepeso estão crescendo na população brasileira. Estamos incentivando as operadoras a adotar programas de prevenção de doenças e promoção de uma vida mais saudável para diminuir o problema”, diz Karla Coelho, diretora de normas e habilitação de produtos da ANS.
Já o “destaque positivo” do Mapa Assistencial foi a redução, ainda que pequena, da taxa de partos cesáreas na rede suplementar. Entre 2014 e 2016, o índice caiu de 85,6% para 84,1%. Segundo recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas 15% dos partos deveriam ocorrer por meio de cesariana. “Esse decréscimo se deve a uma série de ações que a ANS vem desenvolvendo há anos”, diz Karla, referindo-se à iniciativa que envolveu cerca de 40 hospitais brasileiros no desenvolvimento de novas diretrizes para evitar cesáreas desnecessárias e melhorar a assistência a gestantes e bebês. “Estamos entrando na segunda fase do projeto, no qual 150 hospitais vão participar”, detalha Karla.