Desde que o Congresso passou a apreciar o projeto de lei 2401/2019, que as discussões sobre como se dará o ensino domiciliar não param, seja por grupos que defendem o direito familiar de escolher com os filhos serão educados, seja por grupos contrários. A propositura foi aprovada em maio na Câmara dos Deputados e agora terá que passar pelo crivo dos senadores para seguir para a sanção presidencial e tornar-se lei. A psicóloga e professora titular do Programa de pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista, Clarissa de Franco, falou ao RDTv, sobre os desafios que esse tipo de ensino traz e de eventuais prejuízos à educação que poderá trazer.
A discussão em torno do tema se intensificou no governo Bolsonaro e outras iniciativas que reforçam essa tese também foram reforçadas no atual governo. “Essa discussão tem se intensificado, tanto é que o projeto que está sendo apresentado agora é de 2019 e outras iniciativas que acompanham esse debate também são recentes e foram reforçadas numa perspectiva do nosso momento político”, destaca a professora.
Crenças
“O que a gente sente como pesquisadores? Há na perspectiva da educação domiciliar a questão da moralidade e da exposição dessas crianças e adolescentes ao convívio com valores que não correspondem aos valores dos pais e das mães então esse é um dos princípios que acaba norteando esse debate, que acaba sendo fundamental para pais e mães quererem aderir. A escola tem muitas vezes posicionamentos que muitas vezes não correspondem aos valores dos pais e nesse sentido seria algo contrário ao que a família pensa. A educação domiciliar acaba sendo justificada nesta base”, analisa Clarissa. “A nossa ex-ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos, Damaris Alves, propôs isso e disse que iria levar essa questão da educação familiar adiante, ela justificou essa questão de ser direito de pais e mães educarem seus filhos de acordo com seus valores, convicções e crenças”, explica.
Conteúdo
Sobre o conteúdo pedagógico a ser apresentado ao aluno, este seria organizado pelos próprios pais, mas a legislação não determina como ele vai estar em consonância com o conteúdo programático de sala de aula, uma vez que no fim do ano, o único momento em que o estudante iria para a escola, ele faria uma prova feita com base no conteúdo de sala de aula. Para a especialista nesse ponto a lei não é clara. Ela também diz que é um tempo muito grande fora da escola o que pode trazer outros problemas ao aluno.
“A gente entende que a sociabilidade, embora ela aconteça em outros ambientes, a sociabilidade escolar tem uma função formativa, para a formação do ser humano que é um ser social e não um ser que tem o seu caminho individual, ele se constrói em sociedade. Ele precisa desse convívio com a diferença, com aquilo que o frustra muitas vezes, com aquilo que não é de acordo com a sua convicção justamente para que essa formação como ser social seja exaltada”, diz a psicóloga.
“Em relação à questão pedagógica nós entendemos que existe um prejuízo uma vez que a lei está indicando que os pais devem apresentar no momento da matrícula um projeto pedagógico que eles mesmos vão acompanhar. Aí a gente coloca algumas questões, primeiro que há na escola uma série de informações desses professores para cada área específica. São anos de formação; formar um professor não é uma coisa do dia para a noite. Então esses pais e mães provavelmente não terão essa formação de todas as áreas, muito difícil que eles consigam ter uma formação profunda e completa que seja para todas as áreas. Esse é um problema da questão pedagógica bastante sério”, aponta Clarissa.
A professora da Metodista diz ainda que são raros os pais que conseguirão tempo suficiente todos os dias por horas seguidas ministrar aulas para os filhos. “Essa ideia parece ser de um grupo muito elitista, porque quem é que tem tempo para ficar ali acompanhando quatro ou cinco horas de aulas? E se tem dois filhos, três ou mais, como é que faz? Porque aí muitas vezes estão em períodos diferentes, têm matérias diferentes, o conteúdo é todo diferente, de matemática, de português, de história, de geografia, de ciências… Essa relação fica muito prejudicada porque, ou os pais e mães vão ter que abdicar do seu trabalho, mesmo os que trabalham em casa, pois é uma adaptação que é para poucos. A maior parte da sociedade brasileira já tem uma dificuldade enorme de conciliar as situações que envolvem a criação dos filhos e o trabalho. que dirá ficando a cargo deles a educação escolar”, destaca.
Violência
A professora chama a atenção para outro ponto importante que a educação domiciliar pode agravar além das questões pedagógica e social. Dentro de casa as crianças estão mais sujeitas a serem vítimas de violências. “Esse fechamento no entorno só da família gera uma série de questões. A gente não entrou numa questão importante aqui que eu acho que é significativa nesse debate e é delicada também. Temos dados do ministério que mostram que os abusos sexuais ocorrem em grande maioria, cerca de 70%, em casa ou na casa de parentes próximos, envolvendo tios, pais, primos, pais e padrastos. Essa criança que está exposta ao ciclo da violência, quanto mais ela ficar no espaço da família ela tem menos chance de fazer a denúncia, porque ela está silenciada por esse grupo familiar”, aponta. “Vamos pensar como sociedade se os valores do mundo privado devem estar acima do que a gente vem construindo como Democracia e como pluralidade”, finaliza.