“Recebi mais de 80 histórias de abuso sexual na infância, enviadas por mulheres de todo o Brasil”, conta Claudia Jordão, escritora, dramaturga e diretora teatral de Santo André. O relato, que poderia ser apenas um número, se transforma em voz, escuta e literatura. É desse processo que nasce Elas, meninas, livro que reúne memórias de dor, silêncio e resistência. Em entrevista ao RDtv, a autora conta que parte dessas histórias foram utilizadas anteriormente no capítulo “Elas”, do livro Eu Tu Elas, também da autora. Agora, esses relatos ganham novo corpo literário e sensível nesta nova publicação.
A trajetória de Claudia com o tema vem de longe. Tudo começou em 2018, quando a autora ouviu pela primeira vez a história de sua bisavó. “Identifiquei ali uma violência doméstica sistemática sobre os corpos das mulheres da minha família. Ao conversar com minha mãe e outras mulheres, descobri que minha bisavó foi vítima de feminicídio. Minha avó só não teve o mesmo destino porque minha mãe, aos 12 anos, aprendeu a desarmar a arma do meu avô. Eu mesma protegi minha mãe aos 12 anos, mas aos 18 não consegui me proteger”, conta.
Essas memórias originaram o livro Mulheres que me habitam, mas a experiência pessoal de abuso na infância também ganhou espaço. “Passei por três fases: me reconhecer como vítima, reelaborar esse lugar e buscar força para falar sobre isso. Só fui conseguir falar com 45 anos. Meu parceiro me perguntou por que nunca contei antes. E eu respondi: porque sentia medo, culpa e vergonha. Eu tinha apenas nove anos”, fala.
Claudia chegou a esboçar uma peça de teatro para alertar crianças sobre esse tipo de violência, mas percebeu que suas palavras se conectavam mais diretamente com mulheres adultas que, como ela, viveram em silêncio. “O texto voltava sempre para essas mulheres que carregaram traumas a vida inteira, e que ainda hoje se veem nesse lugar de vulnerabilidade”, explica.
Claudia também reflete sobre o processo doloroso de romper o silêncio: “Uma criança não tem estrutura para elaborar o que está acontecendo. Sair desse silêncio imposto torna o processo de reelaboração do trauma ainda mais intenso. É uma ferida que não cicatriza. A gente reelabora, mas não tira”, conta Claudia.
Transformar a dor em literatura
Foi nesse contexto que surgiu Elas, meninas. Claudia buscou na literatura uma forma de tratar do horror sem reproduzi-lo. “Queria escrever um diálogo sobre violência que não fosse violento. A literatura oferece esse espaço: de chamar atenção para a vulnerabilidade das nossas crianças sem espetacularizar a dor.”
A professora Claudia Chigres, da PUC-Rio, que assina a orelha do livro, define Elas, meninas como um projeto que se transforma em livro, com o objetivo de realizar a difícil tarefa de recontar o que desejamos esquecer. Já a leitura crítica foi feita por Jarid Arraes, autora de Corpo Desfeito e Redemoinho em dia quente, que destaca o“equilíbrio cuidadoso de força, impacto, dor e sutileza, com carinho e respeito às personagens.
Com projeto gráfico assinado por Isabela A. Teles Veras, do Estúdio Fabricando Ideias, a publicação foi viabilizada por meio da Lei Paulo Gustavo de São Bernardo. O livro está disponível no site da editora Alpharrabio: www.alpharrabio.com.br.
Instagram: @claudia.jordao | @alpharrabiolivrariaeditora

Violência sexual infantil: dados de um problema estrutural
Os temas abordados por Claudia Jordão dialogam com uma realidade alarmante no Brasil. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 foram registrados mais de 74 mil casos de estupro no país. Desses, cerca de 60% tiveram como vítimas meninas com até 13 anos de idade.
Outros levantamentos revelam que em 8 a cada 10 casos, o agressor é alguém próximo da vítima: pais, padrastos, tios ou conhecidos da família. Em geral, os crimes ocorrem dentro de casa — o que dificulta a denúncia e torna ainda mais urgente o debate sobre o tema.
Segundo o Disque 100, canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos, foram registradas mais de 119 mil denúncias de violência contra crianças e adolescentes em 2023. Grande parte delas se refere a abuso sexual, negligência e violência física.
Em casos de violência doméstica ou violência sexual infantil, é fundamental agir com rapidez e responsabilidade. Em situações de emergência, ligue imediatamente para o 190 (Polícia Militar). Para denúncias, utilize canais oficiais como o Disque 100 (Direitos Humanos), que atende casos de abuso contra crianças, mulheres e outros grupos vulneráveis de forma anônima e gratuita, ou o Ligue 180, específico para violência contra a mulher.
Sempre que possível, leve a vítima a um serviço de saúde especializado, onde poderá receber atendimento médico, psicológico e coleta de provas em até 72 horas após o abuso. O boletim de ocorrência pode ser registrado em delegacias físicas ou online, preferencialmente nas Delegacias da Mulher ou Delegacias de Proteção à Criança e ao Adolescente.
É essencial oferecer acolhimento emocional e buscar apoio psicológico em serviços públicos como CRAS, CREAS ou CAPS. O silêncio protege o agressor; a denúncia protege a vítima.