Nos últimos anos a migração dos jogos de azar para o ambiente virtual, os sites de apostas, têm feito muitos dependentes, a maioria deles jovens abaixo dos 30 anos, pela familiaridade com o uso de ferramentas digitais. Esse é novo boom dos jogos; o país já viu grande número de pessoas viciadas em jogo do bicho, em bingos, depois os bingos clandestinos, em máquinas caça-níqueis e agora a epidemia é dos jogos eletrônicos, como o popular Jogo do Tigrinho ou as chamadas BETs que são sites de apostas em jogos esportivos. Esse crescimento do vício em jogo pelos jovens tem feito aumentar o número de pessoas em busca de ajuda. O problema não é apenas de saúde, é econômico e político também.
No ABC há dois núcleos do JA (Jogadores Anônimos), um em Mauá e outro em São Bernardo. Esses grupos, conhecidos como irmandades, são compostos por voluntários que ajudam quem está querendo abandonar o vício do jogo e o fazem através de reuniões regulares e a apresentação de 12 passos que o viciado em jogo deve seguir para abandonar o vício, tal qual como também acontece em grupos que tratam de dependentes de álcool e drogas.
Para a psicóloga Vânia Araújo Diniz, como outros vícios, o jogo provoca uma sensação de prazer imediato e causa uma reação química no cérebro que libera a dopamina. “Quem busca o jogo quer satisfação imediata e nas primeiras jogadas quando ganha, ele quer repetir e com isso o jogador ativa o sistema de recompensa, liberando a dopamina. O problema é que isso vira um ciclo vicioso e como consequência aparecem as perdas, como falta de dinheiro, o não cumprimento de compromissos de trabalho e sociais, começa a deixar para depois coisas básicas, até tomar banho. O resultado é uma pessoa com a saúde mental e física prejudicada”, explica.
Com a ilusão de que pode controlar o seu uso dos jogos, o jogador viciado não tem como sair desse ciclo sem ajuda. Para Vânia os jogos eletrônicos exercem uma dependência ainda mais forte que os demais, mas há também as atitudes mais inocentes que podem demonstrar que o jogador está preso ao vício. “Até mesmo um jogo de loteria vicia, se o jogador não consegue passar sem fazer a sua aposta, se essa impossibilidade gera nele um incômodo muito grande a ponto de ficar perturbado, isso é um vício. Já vi casos de pessoas que deixaram de por comida dentro de casa para apostar em loteria”, relata.
A diferença dos jogos online é que estão disponíveis a todos, principalmente os mais jovens. “Tem adolescentes jogando, eles chegam a agredir as mães para conseguirem dinheiro para apostar. Na minha opinião deveria se proibir a propaganda destes jogos, que está em todas as redes sociais, isso evitaria o primeiro acesso principalmente dos mais jovens”, diz a psicóloga.
Da mesma opinião é a psicóloga Milene Cristina Farias Kail Soares, de que as propagandas devem ser proibidas e substituídas por avisos das consequências do vício, como acontece na embalagem do cigarro. Ela defende também campanhas de conscientização. “Sabemos que houve um aumento dos jogos de azar com a vinda da pandemia, trazendo sérios impactos para quem joga e os co-dependentes pois acarreta problemas mentais, nos relacionamentos familiares e pode levar à criminalidade. O que nós preocupa é o fato de sabermos que há uma tendência dos apostadores compulsivos em aumentar suas apostas e com isso a possibilidade de endividamento. Proibir acredito que sairia do controle dos órgãos competentes devido ao grande número de máquinas e opções online, assim sugiro campanhas de conscientização e maior acessibilidade aos profissionais de psicologia”, sustenta.
O serviço público tem um tipo de atendimento psicológico que é oferecido nos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) que atende dependentes de álcool, drogas e também pode tratar os dependentes de jogo. O Hospital das Clínicas também tem um ambulatório específico o Amjo (Ambulatório do Jogo Patológico), mas são só 40 vagas e o atendimento dura um ano (interessados devem agendar avaliação pelo telefone (11) 3083-7816). Mas por todo o país e com dois núcleos na região há o Jogadores Anônimos.
Os integrantes da irmandade JA, mesmo os que atuam coordenando os trabalhos, preferem não revelar seus nomes. O RD conversou com um deles, que vamos identificar por Antônio (nome fictício) que tem 61 anos e há 33 parou de jogar. Hoje ele atua como voluntário na plataforma de atendimento. “A gente faz o que fizeram por nós lá atrás, sem cobrar nada, é o que trata o 12° passo do Programa de Recuperação de Jogadores Anônimos. Eu parei em 1991, de lá para cá passei pelos bingos e pelos caça-níqueis sem voltar ao jogo. Naquela época não tinha o JA ainda, eu fui parar no Neuróticos Anônimos que me ajudou. Em 1993 o JA chegou ao Brasil”, explica.
Antônio diz que o JA recebe telefonemas de todas as partes do país, e um fenômeno novo, é que os pedidos de ajuda vem de pessoas que moram em cidades pequenas, bem simples, mas que têm acesso à internet. Antes para jogar era preciso ir a uma casa de jogo, um bingo, mais recentemente a um bar que tenha máquinas caça-níqueis, mas os jogos pela internet mudaram isso. “Também mudou o perfil do viciado em jogo, agora são pessoas cada vez mais jovens, em geral homens, basta ter acesso ao jogo e ao dinheiro seu ou da família. São muitos atendimentos e eu vejo que esse é o maior crescimento do número de grupos do JA da sua história no Brasil, só nós últimos seis meses abrimos pelo menos seis novos grupos em capitais e cidades menores”, conta.
Nos grupos o dependente é aconselhado a frequentar o maior número de reuniões possível, presencial ou virtual além de substituir rotinas e contatos com outros jogadores. Além das reuniões há também apadrinhamento em que o viciado em jogo pode ter contato com outros membros e trocar experiências. “Ele tem que se envolver com o grupo para o jogo sair da mente dele, mudar os relacionamentos e evitar a primeira aposta. Se essa pessoa praticar os 12 passos a possibilidade de voltar a jogar se anula, mas se a pessoa não está protegida, ela volta”, conta.
Endividados, abandonados pela família, pelos amigos , com sentimento de derrota e pensamentos suicidas, esse é o perfil de quem chega ao JA em busca de ajuda. “Tem muita gente que precisa chegar até o fundo do poço para admitir que precisa de ajuda. O suicídio é algo que passa pela cabeça de quem chega aqui, até porque essa pessoa já passou por todo tipo de humilhação, já se endividou com bancos e com agiotas. Às vezes, quando ainda tem um apoio da família é ela que o traz, mas muitos vem sozinhos. Temos um serviço que atende às famílias em separado, é o Joganon. Ali o atendimento visa fazer com que a família não alimente financeiramente o vício do jogador. Não tendo quem o ajude ele acaba aceitando melhor o programa de recuperação”, explica Antônio.
Um dos momentos mais difíceis para o jogador contumaz deixar as finanças nas mãos de um familiar. “Tem muita gente que vai passar anos pagando dívidas de jogo, então passar o controle financeiro para outra pessoa é difícil, mas é o ideal”, diz Antônio.
Segundo relata o integrante da irmandade Jogadores Anônimos em geral, quem chega no grupo está em tal situação que já quer falar logo nos primeiros encontros, mas tem aqueles que primeiro observam e depois, ao ouvir o relato dos demais, se coloca na mesma situação e se sente mais confortável em falar nas rodas de conversas dos grupos. “Falar é muito bom é o início do processo”, diz.
O JA tem dois escritórios regionais, um na Capital Paulista e outro na Capital Carioca. Os grupos estão por vários bairros da Capital e em cidades da região metropolitana; no ABC o de Mauá fica na Praça Monsenhor Alexandre Venâncio Arminas nº 01, no bairro Matriz. As reuniões acontecem toda terça-feira às 19:30. O grupo de São Bernardo fica na Estrada Dos Casa, 3230, bairro dos Casa, e se reúne nas quintas-feiras, também no mesmo horário. Não é preciso inscrição ou triagem é só chegar e participar.
Economia
Para o economista e professor da Strong Business School, Sandro Renato Maskio, os gastos com o jogo implica na saúde financeira das famílias. “Essas pessoas começam apostando R$ 10 depois sobe, e no fim do mês apostou lá R$ 150 ou R$ 200. Pode parecer pouco mas, para uma população que tem uma renda média, segundo a pesquisa PNAD (Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios) falamos algo em torno de 7,5% da renda mental do trabalhador, então faz diferença. O jogo foge à questão da razão, trabalha com a emoção, a pessoa que quase ganhou, pensa que da próxima vez vai ganhar. Nas apostas online tem ainda a paixão do torcedor, mas sem dúvida pode impactar nas finanças da família e, em alguns casos, de forma mais agressiva”, analisa.
O professor de economia considera difícil o governo proibir o jogo e que tendência seria mais de regulamentar a atividade. “No caso brasileiro único jogo de azar permitido é aquele operado pelo governo, como a Loto, a MegaSena e outros. Esses são jogos de azar também também, mas operacionalizados pelo governo e também fornecem renda para algumas ações realizadas pelo governo. Atrás do volante apostas tem a descrição para onde vai esse dinheiro, para habitação, saneamento, não estou justificando mas para entender a lógica do governo que já olha para isso como uma forma de arrecadação tributária. Desse modo acho muito difícil o governo proibir. O proibir não sei como tecnicamente proibir as apostas de empresas que são de fora do país”, reflete Maskio. A proibição de propaganda, para o economista é fundamental para frear o avanço dos jogos online. “Para mim é fundamental se regulamentar essa propaganda”, completa.