ABC tem 1,2 mil pacientes acamados com atendimento domiciliar pelo SUS

Atendimento domiciliar por profissionais do SUS. (Foto: Divulgação PMETRP)

É direito do paciente acamado ter atendimento multiprofissional em casa, seja  usuário de convênio médico ou paciente do SUS (Sistema Único de Saúde). Só no serviço público mais de mil pessoas se encontram nesta situação no ABC. Em Santo André, São Bernardo, São Caetano e Diadema são 1.178 pacientes atendidos em casa (Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra não informaram). Quem cuida de familiar em casa passa por muitas dificuldades para custear o tratamento e exigir os direitos do paciente. Segundo as prefeituras, pelo menos um paciente recebe atendimento domiciliar por força de ação judicial.

São Caetano atualmente atende 442 acamados e 1.209 não acamados, porém estão restritos ao domicílio. Há seis meses eram 203 e 651, respectivamente, mais que dobrou. A Prefeitura diz que todos recebem visitas que variam de uma a três vezes por semana, dependendo do caso. Do total. 974 usam fralda, 132 fazem uso de dieta enteral, 148 possuem cama hospitalar, 110 fazem uso de oxigênio domiciliar. A Prefeitura considera que o atendimento domiciliar é mais barato. “O SAD (Serviço de Atenção Domiciliar) é parcialmente custeado pelo Ministério da Saúde e o valor é de R$ 137.800,00 mensais. Os valores direcionados para a atenção hospitalar (pertencentes ao bloco de média e alta complexidade) giram em torno de R$ 3.500.000,00 mensais”, diz a Prefeitura, em nota.

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São Bernardo também considera o tratamento em casa mais barato. “O custo do tratamento em casa é significativamente inferior ao tratamento hospitalar, uma vez que o paciente possua perfil clínico e social para ser submetido ao tratamento domiciliar. A Prefeitura atende atualmente a 228 acamados por meio do SAD. Até dezembro de 2023, eram 258, uma diminuição de 11,6%. Dos pacientes assistidos, 35 necessitam de cilindro de oxigênio , outros 25 de concentrador de oxigênio, 186 com dieta enteral e 283 necessitam de fraldas”, informa a Prefeitura.

Diadema tem 80 acamados e acompanhados pelas equipes do SAD. Em 2023, foram acompanhados 185 acamados. A Prefeitura fornece cilindros de oxigênio, mas outros equipamentos ainda não. “A Prefeitura atende hoje 182 pacientes no Programa de Oxigenoterapia Domiciliar, entretanto, nem todos precisam de atendimento em casa, pois estudam e trabalham normalmente. Aqueles que necessitam de atendimento domiciliar somam, em média, 10% dos atendidos. Os equipamentos para oxigenoterapia são fornecidos pela Prefeitura, de acordo com a necessidade do munícipe. Os outros equipamentos ainda estão em processo de avaliação para dispensação”, diz a Prefeitura. Em Diadema um paciente é atendido por força de ordem judicial.

Santo André atende hoje 463 acamados. No decorrer do ano passado, 121 tiveram alta clínica e 276 evoluíram a óbito. O atendimento tem alta rotatividade segundo a Prefeitura. “Estamos com quatro pacientes em uso de antiboticoterapia, que recebem diariamente visitas, destes dois ficarão com a visita diária por seis meses, e dois apenas por 10 dias. Estamos ainda com dois pacientes com lesões complexas que demandam visitas diárias para curativo e um paciente em processo de fim de vida com visita médica e enfermagem diariamente para controle de sintomas refratários, este paciente terá essa programação até seu óbito”, informa.

Ainda em Santo André, 82 pacientes usam alimentação enteral, 345 em uso de equipamentos de Oxigenoterapia Domiciliar Prolongada, sendo 64 acompanhados pelo SAD. A Prefeitura informa que todos os 463 recebem, conforme prescrição, os medicamentos de uso contínuo disponíveis na Remume (Relação Municipal de Medicamentos Essenciais), com exceção dos psicotrópicos que os familiares recebem as receitas para retirada nas unidades dispensadoras. Santo André não fornece camas hospitalares. “319 pacientes são acamados e 144 impossibilitados de se locomover. As camas hospitalares não são cedidas por nosso serviço, porém auxiliamos a doação e empréstimo entre as famílias”, completa a prefeitura.

Paciente esperou dois anos por atendimento de fisioterapia

O alfaiate Hamilton Pereira, de Mauá, faleceu em novembro de 2023 depois de um longo processo de internações e período acamado em casa ocasionado por diabetes, insuficiência renal crônica, agravados pela covid-19. Em 2021, sofreu uma sepse bacteriana por conta da hemodiálise e foi internado. Na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) pegou covid-19. Após 53 dias de internação o paciente, que tinha uma vida ativa e normal, perdeu os movimentos do pescoço para baixo.

Apesar de sua condição exigir fisioterapia em casa, o convênio negou o atendimento ao alegar que Hamilton tinha alguns movimentos. Por dois anos a família pagou fisioterapia particular, serviço que o convênio só forneceu após dois anos. “Meu pai usufruiu muito pouco, depois de dois meses ele foi internado e faleceu”, lamenta a filha Katia Maleski Pereira.

Katia conta que a dor de ver os direitos do pai sendo negados só não era maior que a dor vê-lo sofrendo com vários problemas de saúde. “Somente depois eu soube que o convênio tem um centro de reabilitação indicado para pacientes que ficaram muito tempo internados, mas não indicaram isso para o meu pai, tivemos de pagar a fisioterapia por dois anos. Meu pai e minha mãe só tinham a aposentadoria deles, então tivemos que dividir o custo do tratamento entre os três irmãos. E não era só fisioterapia, tinha de pagar o convênio, fraldas eles nunca forneceram, meu pai tomava muitos remédios e alguns eu conseguia no Hospital Mário Covas, outros no posto de saúde, mas não era tudo. Ele tinha uma alimentação restrita que a gente não conseguia, então tinha de comprar. Graças a Deus conseguimos dar tudo que ele precisava”, conta Katia.

Convênios relutam em atender ordem judicial

Para a advogada Renata Valera, especialista em Direito Médico e em Saúde, as causas relacionadas ao direito do paciente acamado são muito comuns, tanto relacionadas ao atendimento por convênio como pelo SUS. A diferença entre os dois é que nas demandas judiciais contra convênio médico se aplica também o Código de Defesa do Consumidor, além dos direitos já assegurados do paciente ao tratamento médico.

Renata conta que são direitos do paciente os cuidados médicos adequados, como medicações, tratamentos prescritos, assistência domiciliar e, neste caso, o ‘home care’, se necessário, além de dispositivos médicos e equipamentos de auxílio, como cadeiras de rodas, camas hospitalares, dentre outros.

Os problemas surgem tanto na rede pública como na saúde privada. Renata Valera diz que dos clientes que ela atende, a proporção entre público e privada é quase igual. “Na verdade é bem equivalente, eu diria que tenho 50% de cada, mas se eu for contabilizar certinho, vai dar um pouco a mais no privado. Hoje se fala muito em judicialização da saúde. São muitos problemas com convênios e com SUS, também porque os serviços estão deficitários em ambos. Vi no site do Tribunal de Justiça de São Paulo estudos sobre o aumento de demandas envolvendo a saúde; cresceram ao ponto de se falar mais nas áreas do Direito da Saúde, Direito Médico e até Direito dos Autistas. São áreas que não existiam há 20 anos e cresceram muito. As pessoas agora têm acesso à internet e conseguem ficar mais conscientizadas de direitos e creio que isso, aliado à falta de qualidade dos serviços de saúde, tem gerado maior judicialização na área”, analisa.

Negligência

A advogada conta como o paciente acamado fica em uma situação de maior vulnerabilidade do que outras pessoas em atendimento médico. Renata diz que é muito difícil para os acamados, pois dependem de outros, para correr atrás de tudo. Além dos acamados, tem os que ficam na dependência de outros, como autistas ou pessoas com deficiências graves. Em geral, quando dependem de cuidadores ou de sistemas de suporte para acessar tratamentos, serviços e recursos adequados, ficam abaixo da condição de vulnerabilidade ou hipossuficiência e o Direito chega a trazer o termo “hipervulnerabilidade”, aplicável aos que têm vulnerabilidade agravada por uma condição particular. “Para os acamados ou em estado grave de saúde, a luta para obter os tratamentos, medicamentos e terapias é mais difícil, e isso ocorre não apenas pela dependência dos cuidadores, mas pela maior complexidade dos cuidados que necessitam, dos maiores custos financeiros, da maior dependência a medicamentos e equipamentos específicos e há muita negligência ou falta de atendimento adequado para esses pacientes, seja por falta de recursos ou falhas na prestação de serviços”, diz.

Os problemas relacionados ao SUS são mais difíceis de resolver do que as dificuldades dos pacientes de convênios, segundo a advogada. Explica que ambas as situações exigem atenção especializada e são bem complexas, principalmente do SUS, em que os problemas geralmente estão relacionados à falta de acessibilidade e de qualidade dos serviços de saúde, como longas filas de espera por consultas, exames e procedimentos; pessoas com casos urgentes e risco de morrer que são colocadas em filas eternas por procedimentos; escassez de recursos e equipamentos médicos ou burocracia demasiada e que o cidadão não consegue compreender. “Por outro lado, os pacientes de convênios médicos possuem problemas relacionados à falta de cobertura e de qualidade dos serviços. Geralmente o plano de saúde nega coberturas, reajusta mensalidades acima do permitido legalmente, recusam autorizar procedimentos e discutem muito sobre a adequação dos tratamentos prescritos pelos médicos. Além disso, as cláusulas contratuais complexas e as mudanças rotineiras de normas da ANS dificultam ainda mais. Em geral, os planos de saúde acabam tendo mais estrutura que o poder público”, afirma

Há casos que nem com o ingresso de ação judicial o paciente é totalmente atendido. Renata Valera diz que são inúmeros casos em que, mesmo com a determinação judicial, há recusa no atendimento. “Infelizmente, é algo que temos que lutar todos os dias nessa área. Existem muitos pacientes que tiveram ganho de um processo judicial, mas o plano de saúde ou o SUS simplesmente não cumprem. Geralmente, o poder público tende a cumprir mais. Os planos de saúde possuem jurídicos imensos e especializados em criar embaraços e óbices para o cumprimento das determinações, criam um argumento para não cumprir e vão enrolando o processo até onde der, deixando o paciente a ver navios. Por vezes, o tratamento é contínuo e o paciente até perde o tratamento, porque a clínica particular não está recebendo, sendo que a decisão do juiz já mandou pagar”, continua.

‘É pertubador ver como a vida humana é tratada’

A advogada conta que o serviço de home care é a maior razão de queixas dos pacientes, além da falta medicamentos, fraldas, cadeiras de rodas e de banho, camas especiais, alimentação parenteral ou enteral. “Isso tudo o SUS tem de dar e o plano de saúde também”, diz a especialista em Direito em Saúde, que já teve clientes que faleceram enquanto aguardavam cumprimento de ordem judicial. “Eu tive uma paciente que tinha um problema cardíaco grave e precisava de cirurgia. Era um caso do SUS. Fiz o processo o mais rápido possível e consegui a liminar, porém, o hospital não cumpriu e houve demora do Judiciário ao conferir uma penalidade; então a senhora faleceu. Quando peticionei no processo, informando o óbito, minha vontade era escrever muitas palavras bem ofensivas a todos que não se importaram com o caso e causaram essa demora e descumprimento da decisão judicial, mas só juntei a certidão e o processo foi extinto. A vida do Ministério Público continuou a mesma, do juiz também, dos escreventes, do pessoal do hospital; é como se ninguém tivesse se importado. É perturbador ver que a vida humana é tratada dessa forma”, completa.

 

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