
Com a determinação do STF (Supremo Tribunal Federal) para que o Governo Federal prepare uma política de atendimento à população de rua, especialistas dizem que, mesmo com a integração entre União, estados e municípios, sem dinheiro para as cidades a situação não vai mudar. No ABC, segundo as prefeituras há cerca de 1,4 mil pessoas vivendo nas ruas, mas esse número é só uma estimativa. A situação dessas pessoas fica ainda pior no inverno. Os meteorologistas preveem temperaturas muito baixas neste fim de semana.
O Consórcio Intermunicipal do ABC considera que é preciso fazer um mapeamento regional da população de rua para estabelecer políticas públicas mais assertivas. “O GT (Grupo de Trabalho) Assistência Social atua com a demanda da população em situação de rua. Devido à complexidade da temática, criou o Grupo Temático População em situação de rua, que vem desenvolvendo ações regionais, especialmente, no âmbito do atendimento humanizado. Para isso, está estudando a construção de um protocolo regional de atendimento e promovendo iniciativas relativas ao cuidado e à qualificação das equipes técnicas. O consórcio está buscando recurso, por meio de emenda parlamentar, para realizar um mapeamento regional acerca da população em situação de rua, com o objetivo de trazer mais subsídios para o desenvolvimento de políticas públicas em relação a essa temática”, informou, em nota, a entidade regional.
Para o professor Enrique Staschower, coordenador do Curso de Arquitetura da FSA (Fundação Santo André), elaborar uma política pública considerando todas as características de cada cidade do país vai ser um desafio em quatro meses. “A Constituição de 88 já diz que o objetivo da sociedade é ser justa e solidária para erradicar a fome e preconceito, deve ser inclusiva. Claro que a questão é complexa e que em 120 dias não vai dar para ter o melhor plano, nós vamos errar em alguma coisa, porém é o início de algo. Estamos falando de grupos heterogêneos e que precisam de atenção e com uma coisa só não se resolve tudo”, analisa.

Staschower cita o aumento considerável da população em situação de rua, principalmente durante a pandemia, os números reais são difíceis de serem obtidos, mas só na Capital, estima-se que sejam 50 mil pessoas vivendo nas ruas. “Cresceu o número de imóveis, mas há cada vez mais pessoas nas ruas, o que nos leva a crer que os investimentos estão sendo feitos em alguns lugares e em outros não. E boa parte destes imóveis não são acessíveis a essa população que precisa se integrada e acolhida. Fazer uma barba e cortar o cabelo já é algo que ajuda muito a auto estima essa população, mas é preciso cuidar da saúde deles, porém a maioria não tem documentos e sem endereço não conseguem se cadastrar na unidade de saúde. Também temos que tratar as cidades para que a arquitetura seja menos hostil. Para todas essas questões é preciso uma articulação entre União, estados e municípios, sendo que as cidades ficam com a parte mais difícil e precisam de recursos para atender essa população”.
O professor da FSA diz que o ABC tem uma situação muito peculiar que favorece o crescimento da população que vive nas ruas, que é a desindustrialização. Para ele não apenas o emprego industrial sustenta menos pessoas, como se desmontou todo um sistema social em torno das empresas . “Com as empresas também foram embora os empregos e as relações sociais do entorno, o bar para o happy hour, os espaços para jogos de futebol depois do trabalho e ficaram grandes vazios. O ABC também tem enchentes, que por vezes levam as coisas dessas pessoas que estão na rua, o pouco que têm como um cobertor e um carrinho de sucata vai embora e eles não recebem ajuda nenhuma. Nem o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) consegue quantificar quantos eles são, pois são nômades urbanos, hoje estão em uma cidade, amanhã podem estar em outra”, diz Staschower, que completa que além do recurso para as cidades, as ONGs também podem ser parte importante deste processo.
Pastoral
O padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo da Rua e uma das mais importantes lideranças do país nesta área, diz que já há um decreto federal que trata da política de atendimento aos moradores de rua. “Esse decreto foi assinado pelo presidente Lula em sua outra gestão, precisa ser atualizado. Essa determinação do ministro Alexandre de Morais, foi construída à partir dos movimentos, de audiências públicas, então há possibilidade dessa construção dentro desse período (120 dias). Há proposta de atualização, mas o governo tem que fazer o básico, que é consultar os movimentos e não fazer uma proposta de gabinete. É preciso recurso para os municípios que são os que irão executar essa política de atendimento”, diz o padre.

Para o líder da Pastoral do Povo da Rua, não há sentido de ter uma política de atendimento em cada cidade, o trabalho deve ser realizado por regiões. “Tem que ter uma ação metropolitana, não adianta São Paulo fazer uma coisa, São Bernardo ou Santo André fazerem outra. Eu avalio que o rumo, agora, vai ser melhor quebrando resistências políticas, mas mesmo assim hoje o prefeito Ricardo Nunes (MDB) tirou coisas dos moradores de rua, o que não pode, e ele diz que não sabia. Todo mundo está falando desse assunto, só ele não sabia”, aponta Lancelotti.
Continuidade
A doutora em arquitetura e urbanismo e professora da Universidade São Judas Tadeu, Andréa de Oliveira Tourinho, também considera que a abordagem deve ser multidisciplinar e integrada entre as cidades, os estados e o Governo Federal. Com uma legislação abrangente da União e estratégias definidas entre estados e municípios se cria uma solução com continuidade. “O grande problema é que cada gestão tem um enfrentamento distinto da situação”, diz. Além das ações inclusivas e de saúde, qualificar os espaços públicos é outro desafio segundo a professora da FSA. “Essas pessoas têm também o direito à cidade, e parte de quem está vivendo assim não quer sair das ruas, porque a rua é parte da sua identidade, nem todos são dependentes químicos e por isso, para que a estratégia funcione, são necessários muitos profissionais, não apenas o arquiteto e o médico, mas também uma série de especialistas”, avalia Andréa.
A professora diz que as universidades já preparam os futuros profissionais dentro do conceito de inclusão, muito diferente da política higienista de afastar os moradores de rua dos centros urbanos. “O recém formado tem que sair preparado e mais sensível sobre esse tema que é complexo. Discutimos isso nas disciplinas de projeto urbanístico e urbanismo contemporâneo, deixando claro o conceito de que todas as pessoas têm direito à cidade. Os donos de prédios, por exemplo, não querem mais marquises, para evitar que elas abriguem moradores de rua, mas é papel do arquiteto enfrentar essa questão, que é uma questão humana”, completa Andréa Tourinho.