Jards Macalé, o “maldito” na visão de muitos, só fala de amor em seu mais recente álbum, Coração Bifurcado, o 13º de inéditas em sua discografia, lançado pela gravadora Biscoito Fino. Claro que o compositor e músico carioca não falaria apenas do amor romântico ou daqueles que triunfam para além dos reveses da vida.
A própria faixa que dá nome ao álbum, com letra de Kiko Dinucci, traz os batuques das religiões africanas e um ponto de Pombagira, entidade do candomblé e da umbanda que protege aqueles que sofrem em um relacionamento amoroso. No coro, Analimar Ventapane, Maíra Freitas, Dandara Ventapane, respectivamente filhas e neta de Martinho da Vila.
Assim como Macalé, a Pombagira também é, de forma preconceituosa, vista como uma marginal pela sociedade. “Eu fiquei nesse purgatório durante muitos anos. Era difícil gravar, mas eu insistia. Mostrei que minha música é acessível a todos”, diz Macalé, em entrevista por telefone.
Falar de amor, então, para quem recebeu tanta bordoada na vida – e a agressão é ainda mais dolorosa quando atinge a criação de um artista – nada mais é do que um ato de resistência. Sim, com Coração Bifurcado, Macalé quer rechaçar os tempos sombrios pelos quais o País passou e apontar que o amor é o sentimento que pode levar à redenção. O caminho para isso é apontado na canção A Arte de Não Morrer, parceria de Macalé com o amigo José Carlos Capinan – juntos, eles já produziram clássicos como Movimentos dos Barcos e Farinha do Desprezo. A letra diz “A arte de não morrer/ No tempo de todas as dores/ A arte de ainda ver/Na escuridão das cores”.
Outra com letra de Capinam, Amor In Natura, abre o disco. “O amor é lindo, o amor é louco, o amor é laico”, reforça a mensagem, para, no final, alertar que o amor “não pode nada”.
A sonoridade de Coração Bifurcado, que tem direção musical de Macalé e artística de Romulo Fróes, com quem o compositor trabalhou em seu álbum anterior, Besta Fera (2019), tem rock, jazz, samba, bolero e samba-canção.
Macalé não crê em nada disso. “Existe a música. E só isso.” Ele e seus parceiros – estão na banda-base os músicos Pedro Dantas, Rodrigo Campos e Thomas Harres – fizeram apenas o que cada canção pediu. Para Macalé, chamar a música de bossa nova ou de tropicalismo, por exemplo, é tudo rótulo. “Isso é para Coca-Cola”, reforça.
O compositor exemplifica o que diz com uma frase daquele que é considerado um dos inventores de um desses movimentos. “Um dia o João Gilberto me ligou e disse: Macalas (era como ele me chamava), a bossa nova não existe. É só o samba!”, conta.
AS CANTORAS
O canto “sujo” e envolvente de Macalé é invadido em algumas faixas por vozes femininas, como uma declaração de amor dele para elas, estendida a todas as mulheres.
“A mulher é o símbolo do amor. Ela tem o poder de dar a vida a alguém, mesmo para aqueles que nem pediram para nascer, mas que terão a chance de conhecer a vida”, explica.
Para cantar o samba-canção Mistérios do Nosso Amor, assinado com Ronaldo Bastos, amigo antigo, mas parceiro novo, Macalé chamou Maria Bethânia. A canção – de deixar Dolores Duran, Antônio Maria, Ary Barroso, Lupicínio Rodrigues ou qualquer outro talento do gênero orgulhoso – é cantada apenas uma vez por Bethânia, sem repetição de nenhuma estrofe.
“Foi assim que ela gravou. E está ótimo. Diz tudo. Quem quiser que vá lá no repeat e ouça de novo, e de novo, e de novo”, afirma Macalé.
A Ná Ozzetti coube Simples Assim, parceria com Fróes que estava reservada a Gal Costa, a quem Macalé dedica o álbum. Gal, sua principal intérprete, havia conhecido a música e tinha aceitado gravá-la, mas morreu, em novembro de 2022, aos 77 anos.
Outra ponta que une o laço amoroso com o qual Macalé se envolve em Coração Bifurcado é Nara Leão. A cantora foi a primeira a gravar o compositor, em 1966, no disco Nara Pede Passagem. É justamente a canção Amo Tanto, tal como Nara a registrou, que aparece em meio às faixas inéditas de Coração Bifurcado. E, por essa magia que parece sempre envolver as canções, ela se ajeitou com perfeição entre as mais novas.
Aos 80 anos recém-completados, Macalé diz que agora quer dar uma de Tim Maia. “Quero sossego”, brinca. Que nada! Para esta quinta, 18, ele tem apresentação agendada na Casa Natura Musical, em São Paulo, ao lado do amigo e parceiro João Donato, de 88 anos, com o projeto Síntese do Lance.
Para o show de Coração Bifurcado, ainda sem data de estreia, Macalé deseja levar ao palco uma banda formada apenas por mulheres. Ele já tem o nome para a formação: As Macaleias. O título é inspirado em um penetrável que o artista plástico Hélio Oiticica (1937-1980) projetou em 1978 em homenagem ao compositor.
Entre o desejo do sossego e do compromisso que assumiu com a arte há mais de 50 anos, Macalé se encanta com o poder que sua música – alheia às listas das mais ouvidas ou dos assuntos mais comentados nas redes sociais – tem de alcançar o público mais jovem.
Outro dia, conta, foi abordado por um menino de 14 anos que conhecia suas composições. “Isso é maravilhoso!”, diz, esperançoso.
Parceria entre Macalé e Donato celebra carreira de 60 anos de ambos
Antes de sair em turnê com o álbum Coração Bifurcado, Jards Macalé tem um encontro com um colega compositor, que não ganhou a alcunha de “maldito” – a ele, coube, igualmente inapropriado, algo como “irreverente” -, mas tem um universo tão particular quanto o seu: João Donato.
Nesta quinta, 18, na Casa Natura Musical, Macalé e Donato apresentam o show do álbum Síntese do Lance, lançado em 2021. O disco trouxe a união dos dois compositores, depois de 60 anos de carreira de ambos. Em entrevista ao Estadão, Macalé contou como o álbum foi feito. “Na pandemia, a primeira coisa que comecei a fazer foi compor. A combinação foi o João fazer uma parte, eu completar e fazer outras.”
PARCERIAS
Juntos, eles assinaram apenas uma das 10 composições, Côco Táxi. A música faz uma analogia entre o balanço do triciclo usado como táxi na cidade de Havana, Cuba, e o universo musical de Donato.
As demais faixas foram feitas em parceria com outros compositores, entre eles, Ronaldo Bastos, Joyce Moreno e Sylvio Fraga. A música que dá nome ao trabalho foi composta por Donato e o músico Marlon Sette, em cima de um tema popular, ligado ao universo das religiões afro-brasileiras.
Na época do lançamento de Síntese do Lance, os dois compositores trocaram elogios. Macalé declarou que Donato foi um dos músicos que ele mais ouvia, ao lado de Johnny Alf, João Gilberto e Tom Jobim. Faltava, ele disse, uma aproximação maior com Donato, que se concretizou com esse álbum.
Donato resumiu o encontro como uma “aventurança” e disse que estar ao lado de Macalé era um constante “clima de alegria” – quem já foi a um show de Donato sabe que a diversão é algo que impera no palco e na interação que o músico estabelece com a plateia.
Uma das brincadeiras entre eles foi fazer a capa – e as fotos de divulgação do álbum – quase nus, ora rodeados por folhagens de um jardim, ora só segurando uma partitura e um disco, usando apenas meias coloridas. Em outra imagem, eles aparecem de cueca, sobretudo e chapéu.
“A música deveria ser vendida em farmácia. É um ótimo remédio contra a tristeza”, disse Donato.
Antes do show, o DJ paulistano Nuts faz a discotecagem com músicas ligadas ao hip-hop.