Nesta terça-feira (07/02) é comemorado o Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas e, apesar da região contar com três aldeias e cerca de 600 indígenas vivendo em contexto urbano, não há nenhuma programação prevista para marcar a data, o que seria a oportunidade para as comunidades, aldeadas ou não, levantarem suas reivindicações, que não são poucas e estão relacionadas à saúde, habitação e saneamento básico. A população indígena do ABC se solidariza com o povo irmão Yanomami que está no centro de uma crise humanitária em Roraima, com cerca de 570 casos de crianças mortas nos últimos quatro anos.
A cacica Jaqueline Haywã, da etnia Pataxó e moradora de Ribeirão Pires, considera que o povo indígena se escondeu por tantos anos, temendo conflitos principalmente por disputa de terras, que muitos ainda têm hoje medo de expor sua origem. A aldeia onde Jaqueline nasceu, Caramurú-Paraguassú, na Bahia, é a origem de grande parte da sua família que hoje está em São Paulo. Há dois anos ela começou essa luta de localizar indígenas Pataxó e encontrou várias famílias morando em Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra e em São Bernardo, além de outras regiões do Estado.
Jaqueline vive em contexto urbano e costumava dizer que só se sentia indígena quando voltava à sua terra natal para visitar os pais na aldeia. Só recentemente teve consciência de que é indígena em qualquer parte do planeta. “Eu morei em aldeia com a minha avó dos 8 aos 16 anos e a gente ouvia muitos relatos de assassinatos em massa, pessoas que desapareciam e de muitos conflitos. A gente era ensinado a falar baixo e não dizer que é índio por medo. As coisas de indígenas ficavam só para nós de casa mesmo. Ser índio não era sinal de orgulho. Muitas pessoas vêem com preconceito, como se não pudéssemos estar na cidade. Tem gente que acha que índio é preguiçoso, que quer terra para não trabalhar”, aponta.
Foi para resgatar essa origem e para ter orgulho da sua história que Jaqueline começou a organizar a comunidade Pataxó. Encontrou 75 pessoas em Ribeirão Pires, 10 em Rio Grande da Serra e outras 65 em São Bernardo. “Fui consagrada cacica, para lutar pelos direitos da comunidade indígena Pataxó”. Ela conta que após o cadastramento dessas famílias, elas já receberam cestas básicas. O cadastro também serve para que as comunidades aldeadas ou em contexto urbano possam receber benefícios tais como o de cotas para universidades. Jaqueline conta que mesmo com esse trabalho de resgate da identidade indígena esbarrou em pessoas que ainda preferem esconder sua origem. Duas pessoas preferiram esconder a sua etnia. “A gente fica chateada, mas é a opção delas. Eu acho que a gente deve se assumir indígena, mas não podemos forçar ninguém”.
O primeiro passo para que essa identidade indígena seja valorizada é a educação. Jaqueline tem feito diversas palestras em escolas e percebeu que há muita falta de conhecimento sobre os índios brasileiros. Segundo ela é preciso explicar sobre a cultura, sobre a sociedade indígena, e que há aqueles que vivem em aldeias e os que vivem na cidade.
Para a bióloga, ambientalista e professora da USCS (Universidade Municipal de São Caetano do Sul), Marta Marcondes, historicamente a sociedade faz tudo para descaracterizar o índio. “Tem uma parte da carta de Pero Vaz de Caminha à corte portuguesa, inclusive que eu usei na minha tese de mestrado, que fala orgulhosamente de 600 ‘selvagens’ que jaziam na praia. Ou seja, passaram-se 523 anos e continuamos exterminando a população indígena e explorando a riqueza das suas terras. Enquanto houver grupos de garimpeiros, madeireiros, criadores de gado junto às reservas, o extermínio vai continuar, porque é mais fácil exterminar. É como um holocausto só que em vez de judeus se exterminam indígenas”.
“Eu estou muito confiante de que a situação melhore, com as ministras Sônia Guajajara (Povos Indígenas) e a ministra Marina Silva (Meio Ambiente). Acredito que elas sejam duras com quem está desmatando, porque não podemos perder mais um centímetro cúbico de florestas. Temos que preservá-las e isso passa pelo cuidado com os povos indígenas”, completa a professora que realizou uma dissertação de mestrado sobre as comunidades guaranis que vivem à margem da Represa Billings.
Elson Silva, mais conhecido como Mirim Elson, é liderança na comunidade Guyrapaju Mbya, uma das três aldeias indígenas que ficam no bairro Curucutu, em São Bernardo. Ele conta que as atividades em alusão ao Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas acontecem apenas dentro das aldeias. Porém ele admite que uma ação maior poderia ser feita para fora das comunidades visando apoio para o atendimento das grandes demandas dos guaranis, tais como habitação e saneamento básico. “A gente tem que pedir e o governo tem que encontrar um caminho viável para trazer a água; isso já está em conversa, mas demora muito e a saúde não espera”.
Como na comunidade urbana Pataxó de Ribeirão Pires, também na aldeia Guarani de São Bernardo há situações em que os membros que trabalham fora da aldeia evitam falar da sua origem. “Eu percebo isso, é uma realidade, mas isso depende de cada um. Aqui na aldeia há poucas pessoas que saem para trabalhar, a gente não estimula isso porque vai interferir diretamente na nossa cultura. A gente tenta evitar ao máximo o uso de tecnologia de comunicação, por exemplo, mas não podemos evitar tudo. A internet e o celular já são uma realidade então a gente orienta a usar com cuidado”, diz Mirim Elson.
O líder indígena se mostra preocupado com a situação de abandono e de mortes nas aldeias Yanomami, em Roraima. Desde o início deste ano imagens de indígenas doentes e subnutridos e a notícia de centenas de mortes percorreram o mundo. “Para nós os Yanomami são como parentes. Esse movimento político que abandonou, não deu atendimento e ignorou o povo indígena nos choca. Principalmente quando a gente vê crianças morrendo”, diz Elson que já presenciou disputa por terras na área onde sua aldeia está, em São Bernardo. “Apareceu uma empresa que diz que é a dona da área e queriam tomar ela de nós de todo jeito, tivemos que chamar a polícia federal e a Funai (Fundação Nacional do Índio). Hoje está em paz, mas o processo não terminou na Justiça. Essa terra é reconhecida como área indígena, porém ainda não está demarcada”, preocupa-se o líder indígena.
No próximo dia 24 a aldeia Guyrapaju Mbya realiza uma vivência em que receberá não indígenas para uma imersão na sua cultura. Mais informações no banner e através do telefone: 97277-1710.
O RD procurou as prefeituras da região e perguntou sobre a sua população indígena e sobre atividades previstas para a data, apenas São Bernardo, Santo André e Diadema responderam e não há nenhuma atividade prevista para marcar a data.
Cidades
A Prefeitura de São Bernardo informa que dispõe de grupo intersetorial específico para tratar das questões indígenas, composto por diversas secretarias e órgãos externos, como Funai, Ministério Público Federal (MPF), Secretaria Estadual de Educação, além de representantes dos indígenas. “Em junho do ano passado foi promulgado o decreto 21991/2022 que dispõe sobre as diretrizes municipais de Atenção aos Povos Indígenas do município de São Bernardo, com objetivo de acolher as demandas apresentadas pela população indígena e organizar estratégias de atendimento a estas junto as instâncias envolvidas e políticas públicas municipais, estaduais e federais, suscitar discussões para elaboração de propostas que visem a instituição de políticas públicas municipais específicas. A prefeitura implementou Polo Avançado de Assistência Social no território do Pós-Balsa, espaço de referência à população indígena, o que possibilita maior efetividade às intervenções realizadas pela equipe do CRAS IV Riacho Grande em articulação com o CREAS e com outros equipamentos, como é o caso da UBS Santa Cruz”, informou a prefeitura.
A Terra Indígena Guarani Tenondé Porã tem aproximadamente 15,969 ha², estendendo-se por São Bernardo, São Paulo, São Vicente e Mongaguá. Em São Bernardo são 44,55 km² de terra indígena e existem, atualmente, três aldeias (tekoa), são elas: Guarani Mbya: Tekoa Guyrapaju, Tekoa Kuaray Rexakã e Tekoa Nhanderu Mirim, localizadas na região do Pós-Balsa, bairro Curucutu, onde moram em torno de 130 indígenas.
Em Santo André são aproximadamente 570 indígenas segundo cálculos da administração, que são baseados no Censo de 2010. Porém esse número cresceu muito segundo os dados preliminares do Censo 2022. “Dados parciais do Censo 2022 apontam para um crescimento de 66% das populações indígenas em contexto urbano, decorrente das campanhas de autodeclaração feitas pelas redes sociais. Há registro de um trabalho desenvolvido pela Prefeitura em 2006 para atendimento da população indígena em que é citado o número de 800 indígenas em Santo André. Um dado mais recente que capta de alguma forma a presença indígena na população da cidade é o que consta do Cadastro Único (Cadastro Único é um instrumento que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda) onde estão registrados 134 beneficiários”, diz a prefeitura em nota.
Atualmente, na cidade de Santo André, estão presentes os povos originários Atikum, Fulni-ô, Kaikang, Kariri-Xocó, Kambiwá, Kanela, Kayabi, Kaimbé, Kalabaça, Muiramomi, Pataxó, Pankararu, Pankararé, Pankaraí, Tabajara, Tupi, Guarani, Guayaná, Tuxá, Truká, Xukuru-kariri, Kariri, Xavante, Tremembé, Tapeba, Carijó, Muiramomi entre outros. “O movimento multiétnico indígena Nhande vae’eté ABC pleiteia ambulatórios de saúde indígenas que são parcerias entre a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena, ligada ao Ministério da Saúde) e o município. Os coletivos indígenas estão pulverizados em vários bairros do município de Santo André, mas alguns como Cidade São Jorge, Camilópolis e Centreville possuem uma incidência maior da presença indígena, principalmente dos povos migrantes de outros estados. Na Vila Alice, por exemplo, no traçado do rio há noticias de antigos moradores de um cemitério indígena, onde foram encontrados vários artefatos e que necessita de um levantamento arqueológico”, informou a administração andreense em nota.
A prefeitura de Diadema diz que vem aprimorando o diálogo com pessoas indígenas que moram no município. “Duas mulheres pertencentes às etnias Pankararu e Pankará foram convidadas a integrar o Comitê Técnico de Saúde da População Negra e demais grupos étnicos raciais criado em setembro, como parte da política de cuidado a esse público. Na cidade não existem aldeias indígenas, mas segundo dados do sistema E-SUS da Saúde, há registro de 35 indígenas de diferentes etnias espalhados especialmente nos bairros Nova Conceição, Serraria, Nova Conquista e Piraporinha. Em Diadema, o ensino de história e cultura indígena faz parte da grade regular das escolas, conforme prevê a Lei 11.645/08, e é executada por meio do Programa Diadema de Dandara e Piatã. A Secretaria de Educação também realizou ano passado o I Seminário Indígena Resistir para Existir, que marcou o Agosto Indígena, e será realizado anualmente na cidade”, informou em nota.