ABC - terça-feira , 14 de maio de 2024

Marcelo Rubens Paiva condena o ‘macho tóxico’ em novo livro

Logo na primeira frase, o romance se resume: “Esta é uma história de amor, cujo final não é feliz nem triste”. Trata-se da narrativa do reencontro, décadas depois, do narrador com Lívia, sua paixão de juventude, momento em que atitudes e omissões são passadas a limpo. Mas, sob a capa da ficção, Do Começo ao Fim (Alfaguara) é um ajuste de contas que Marcelo Rubens Paiva faz com seu passado. E justamente quando sua obra de estreia, o retumbante Feliz Ano Velho, completa 40 anos. O livro será lançado nesta segunda, 29, na Ria Livraria (Rua Marinho Falcão, 58), a partir das 18h.

“A primeira parte do novo romance, que levei quatro anos escrevendo, inclusive na pandemia, é uma narrativa vertical daquilo que aconteceu comigo e está nas entrelinhas de Feliz Ano Velho: vida universitária, dilemas de um adolescente, perda da virgindade, o primeiro amor, dúvidas existenciais e éticas, política, preconceitos, tudo relembrado por um homem que faz 50 anos e está num momento de intensa transição”, explica Paiva, colunista do Caderno 2.

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Ele reconhece que pode estar na pele do narrador, pois repensa quando lia “clássicos, filosofia, assistia (a filmes no cine) no Bijou ou Cineclube da FGV para ver filmes da nouvelle vague, que questionavam a sexualidade e os valores sobre os quais ele, ou eu, foi educado, contestando a moral de uma sociedade que, para reprimir as mulheres, precisa doutrinar na escola os meninos, especialmente os universitários, que despertam para a jornada turbulenta da vida sexual.”

Está ali o grande trunfo do livro – com sua escrita ao mesmo tempo direta e sedutora, Paiva recupera o passado (seu?) com todos os erros para se apresentar, aos 63 anos, como um homem do presente, ciente de que as relações humanas se tornaram mais delicadas – e o que era normal hoje se tornou tóxico. “Os homens, especialmente os mais velhos, depois do movimento #MeToo e da Primavera Feminista, passaram a repensar sobre as ambiguidades de relações que tivemos, de uma em uma, da primeira à última. Assediamos? Fomos assediados? Em que momentos passamos do limite? É com a namorada da faculdade, com aquela com quem a gente dorme junto, viaja e se descobre sexualmente, que o homem começa a amadurecer, a aprender a transar de forma atabalhoada, a entender o seu papel social, que está numa baita crise hoje.”

REFLEXÃO

No romance, a avaliação que o narrador faz de seus atos pregressos permite que Paiva também reflita sobre a atual crise de masculinidade. “Minha vida profissional foi bem prejudicada por conta de preconceito. Mer identifico com os movimentos feministas. Ao chegar aos 50 anos, meu narrador, como eu, se deu conta daquilo que errou e daquilo que acertou. Fiz um romance de um cara que, aos 50 anos, resolve procurar as suas relações anteriores, fazer um balanço, pedir desculpas por algumas incorreções e tentar aprender a ser um cara melhor. Afinal, ele está para ser pai e quer passar para os filhos um outro jeito de ser homem”, conta.

Ele lembra de momentos constrangedores. “Com Adriana, minha primeira mulher, testemunhei um assédio profissional causado por um juiz. Me deu ódio. Até saímos do País. Sílvia, minha segunda mulher, que era acadêmica, me contou do assédio que rolava na USP e Unicamp, universidades que frequentei. Professores podiam alavancar ou acabar com a vida acadêmica de uma pesquisadora. Passei a sentir muita raiva. E me lembrei de ambientes de trabalho em que há muito assédio: redação de jornal, agência de publicidade, emissora de TV, grupo de teatro, sets de filmagem, o famoso teste do sofá de produtores e diretores. Um chefe pode destruir a carreira de uma mulher. Sem contar as investidas dos caras na noite, o de colegas de trabalho. A mim, dá ódio. Uma peça minha foi por água abaixo, pois o diretor atacou a atriz.”

De uma certa forma, o que aproxima Do Começo ao Fim de Feliz Ano Velho é a tentativa de seu autor entender o que a vida lhe reservou. Feliz Ano Velho, que já vendeu mais de 1,5 milhão de exemplares, foi lançado em 1982, uma época conturbada, quando ele ainda buscava entender a drástica mudança que aconteceu à sua rotina três anos antes, quando o salto em um lago perto de Campinas resultou na fratura da vértebra cervical, que comprimiu sua medula. Desde então, ele se locomove por meio de uma cadeira de rodas.

“Se em Ainda Estou Aqui flertei com os tempos da ditadura e em Feliz Ano Velho o foco central é o meu acidente, em Do Começo ao Fim eu me debruço sobre o amor”, comenta. “Nos anos 1980, sair da ditadura era um fato, estávamos predestinados, nosso papel era reconstruir, deixar os trabalhadores cruzarem os braços, escrevermos a Constituição. Curiosamente, os anos 80 são de muito pessimismo. Os governos Reagan e Margaret Thatcher pareciam uma contrarrevolução de conservadores e o abandono de políticas sociais. No Brasil, era o contrário: estávamos reconstruindo movimentos sociais.”

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