O governo optou por uma estratégia arriscada no processo de regulamentação das novas normas trabalhistas: vai esperar as reações e, só então, decidir sobre decretos e portarias com detalhamento dos temas mais polêmicos. A julgar pelo acúmulo de dúvidas de patrões, empregados e advogados desde a tramitação da reforma, aprovada em julho pelo Congresso, muitos pontos permanecem obscuros.
As mudanças na legislação trabalhista entram em vigor no dia 11 de novembro. Um integrante do governo que participa das discussões sobre a reforma confirmou que o plano é “ver primeiro como o mercado vai se comportar”. O ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, sustenta que a legislação está pronta para entrar em vigor com as alterações feitas no Congresso.
“Todas as modificações feitas ao projeto apresentado pelo Ministério do Trabalho foram debatidas pelos parlamentares e discutidas nas várias comissões, seguindo o rito estabelecido em um regime democrático”, afirmou. O ministério informou que “a lei é autoaplicável e não exige regulamentação”.
Enquanto defensores da reforma, como o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra, afirmam que ela reduzirá disputas judiciais, alguns especialistas apostam que, sem regulamentação, as mudanças tendem a aumentar os confrontos entre trabalhadores e empresas no Judiciário.
Alguns sindicatos já tentam incluir nos acordos com as empresas uma “cláusula de salvaguarda”, para se protegerem de normas que consideram prejudiciais em relação ao que vale hoje (ler mais na pág. B4).
“A discussão da lei foi açodada. Há vícios que precisam ser corrigidos”, diz o presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Guilherme Feliciano.
Ainda há dúvidas em questões como a necessidade de aditivos contratuais, a participação de sindicatos em negociações e sobre o trabalho intermitente e em home office. A declaração de juízes trabalhistas de que não seguirão algumas determinações da lei colocou ainda mais lenha na fogueira.
Contestações. Há duas semanas, a Anamatra divulgou uma lista com 125 enunciados contendo recomendações de como os magistrados devem interpretar as novas regras – algumas foram inclusive consideradas inconstitucionais e o entendimento é que não serão seguidas. “É muito preocupante porque ainda não sabemos como os juízes vão encarar várias situações”, diz o advogado Giancarlo Borba, sócio da área trabalhista do escritório Siqueira Castro. Para os especialistas, os pontos mais polêmicos da reforma só serão pacificados depois de dois ou três anos em análise no Judiciário, alguns deles só quando o Supremo Tribunal Federal (STF) se manifestar.
Mesmo antes de entrar em vigor, o texto da nova legislação deverá passar por mudanças, o que tem causado ainda mais insegurança. O presidente Michel Temer prometeu fazer ajustes acordados com a base aliada durante a tramitação do projeto no Senado.
Depois da revolta do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, contra o excesso de medidas provisórias mandadas pelo governo, a tendência é que seja enviado, na primeira quinzena de novembro, um projeto de lei com pedido de urgência.
Perguntas & Respostas
1. As modificações feitas pela reforma atingem os atuais trabalhadores?
A Confederação Nacional da Indústria (CNI) entende que as novas regras alcançam todos os trabalhadores imediatamente. O Ministério do Trabalho diz que vale para todos os trabalhadores com carteira assinada, exceto quem tem contrato específico firmado com o empregador. Advogados recomendam aditivos em todos os casos para se precaverem, porque não sabem qual será o entendimento dos juízes.
2. Em quais casos os contratos podem ser negociados entre empregador e empregado, sem o sindicato?
A lei prevê que regras de banco de horas e compensação de jornada, demissão em comum acordo, parcelamento de férias em até três vezes e trabalho em home office podem ser negociados sem sindicatos. Advogados recomendam, para o caso de vários trabalhadores na mesma empresa, que o empregador procure o sindicato para negociação coletiva porque há dúvidas em relação ao entendimento do Judiciário.
3. E no caso dos trabalhadores hipersuficientes, que ganham acima do dobro do teto do INSS, de R$ 11.060, e têm curso superior?
A negociação pode ser feita individualmente.
4. Processos trabalhistas que já existem, se forem julgados após 11 de novembro, obedecem às regras antigas ou às novas?
O governo entende que a lei passa a vigorar em 11 de novembro e as sentenças seguem a nova lei. Já a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) entende que o trâmite judicial segue as novas regras, mas que mudanças nos direitos dos trabalhadores não alcançam os contratos celebrados na lei antiga, ou seja, esses processos têm de ser julgados observando as regras anteriores.
5. Como o empregado pode parcelar férias?
Pode ser acertado pelo trabalhador com o patrão sem necessidade do sindicato. Contratos têm de ser alterados só nos casos em que preveem que as férias não podem ser parceladas. A empresa precisa que o trabalhador assine um documento concordando com o parcelamento, já que o empregado pode optar por 30 dias seguidos.
6. Quem pode mudar o horário de almoço para 30 minutos?
A mudança tem de ser feita por convenção coletiva, com a participação do sindicato. Empregados hipersuficientes podem negociar a redução individualmente com o empregador.
7. Trabalho intermitente valerá para empregados de qualquer empresa?
O ministério afirma que se aplica à prestação de serviço não contínua, independentemente do tipo de empregador ou área de atuação. A única exceção prevista é para aeronautas. A Anamatra entende que só vale se a atividade da empresa for intermitente, como uma empresa de eventos ou bufê.
8. Como será a migração do trabalhador em regime tradicional para o novo teletrabalho? Quem paga equipamentos e custos do teletrabalho, como energia e internet?
O ministério diz que será necessário aditivo contratual detalhando a migração. Equipamentos essenciais à atividade (computador, telefone etc) são de responsabilidade do empregador. Outros custos devem ser especificados no acordo entre patrão e empregado. A Anamatra entende que a previsão de que o teletrabalhador não tem direito a horas extras é irregular.
9. A jornada 12/36h pode vigorar imediatamente?
A reforma prevê acordo individual entre patrão e empregado. O entendimento da Anamatra, no entanto, é que isso seria inconstitucional, pois a Constituição diz que só pode haver jornada superior a 8 horas com negociação coletiva. Para o Ministério do Trabalho, o tema deve ser regulamentado em projeto de lei ou medida provisória e possivelmente será obrigatória a negociação coletiva.
10. A rescisão amigável já passa a valer ou ainda são necessárias mudanças?
Vale imediatamente. Segundo o ministério, já foram feitos ajustes nos sistemas da Caixa para o saque de até 80% do FGTS nesses casos.
11. O ‘negociado’ vale sobre o ‘legislado’ em todas as áreas?
Questões ligadas a saúde e segurança não podem ser flexibilizadas por negociação, nem coletiva, e devem seguir a legislação.
Sindicatos tentam se blindar da reforma trabalhista
Trabalhadores com data-base neste fim de ano, período em que precisam negociar com as empresas índices de reajustes e benefícios sociais, tentam incluir nos acordos uma ‘cláusula de salvaguarda’ para se protegerem de normas da reforma trabalhista que consideram prejudiciais em relação ao que vigora atualmente.
O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC foi o primeiro a garantir essa cláusula nas negociações com empresas de sua base na semana passada. “A cláusula estabelece que qualquer mudança precisa ser negociada com o sindicato”, diz Wagner Santana, presidente da entidade. “É uma espécie de vacina para evitar medidas que prejudiquem os trabalhadores.”
Até a última sexta-feira, dia 27 de outubro, dos 73 mil metalúrgicos do ABC, 59 mil trabalham em empresas que concordaram com a medida ou já têm acordo para os próximos dois anos com esse tipo de garantia, como as montadoras. “Nas empresas em que não há acordo, os trabalhadores estão parando a produção e muitas já voltaram atrás”, informa o sindicalista.
Para José Silvestre, coordenador de relações sindicais do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), com a inflação em baixa as negociações neste fim de ano se voltam mais para garantias contra itens da reforma do que aumentos salariais.
Na base dos metalúrgicos de São Paulo, as empresas ainda estão inseguras em relação a posições divulgadas recentemente por membros do Judiciário sobre a constitucionalidade de pontos da reforma e aguardam para iniciar negociações, disse Miguel Torres, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. A entidade representa 150 mil trabalhadores dos quais 27% são filiados. “Também estamos trabalhando com a cláusula de salvaguarda, mas as empresas por enquanto não querem falar disso”, afirma.
Os químicos de São Paulo conseguiram manter, em acordo fechado na sexta-feira, as cláusulas sociais previstas em convenções anteriores, como proibição do trabalho de gestantes em locais insalubres. Também conquistaram repasse integral da inflação para os 150 mil trabalhadores da base, segundo Sergio Luiz Leite, presidente da Federação dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas e Farmacêuticas do Estado de São Paulo (Fequimfar).
Por precaução, os comerciários paulistas deixaram para fevereiro as discussões com as empresas, quando esperam já haver maior entendimento sobre a aplicação da reforma. A data-base dos 400 mil trabalhadores do setor foi em setembro.
Sobrevivência. A maior preocupação do presidente do Sindicato dos Comerciários de São Paulo, Ricardo Patah, é com a manutenção dos serviços prestados pela entidade após o fim da cobrança do imposto sindical. “Hoje temos orçamento de R$ 90 milhões, mas, sem o imposto, esse valor vai cair para R$ 20 milhões e teremos de adaptar estruturas e serviços.”
Segundo ele, o quadro de 600 funcionários será reduzido em 15% e a qualidade dos serviços prestados mensalmente a 20 mil trabalhadores no complexo médico e odontológico, que conta inclusive com equipamento para mamografia, poderá cair. Entre as medidas que serão adotadas para melhorar a arrecadação da entidade, que tem 52 mil associados, está o aluguel de quatro dos 13 andares do prédio que abriga o sindicato, no centro de São Paulo, e a terceirização ou venda do clube de campo em Cotia (SP).
Nesta semana, Patah, que também preside a União Geral dos Trabalhadores (UGT), estará em Brasília para retomar conversas com o presidente Michel Temer sobre medidas alternativas à cobrança do imposto sindical, entre quais uma taxa substituta de contribuição negocial.
Wagner Santana diz que também haverá corte de custos e de pessoal na sede do sindicato em São Bernardo do Campo, e uma campanha mais forte de sindicalização. Hoje, dos 73 mil trabalhadores da base, 35 mil são filiados. A entidade continuará cobrando taxa negocial de 4% de um salário mensal de todos os trabalhadores, valor que é devolvido aos sócios. Os metalúrgicos de São Paulo também farão campanha mais forte de sindicalização e avaliam até propaganda na mídia, afirma Miguel Torres.
‘Rei’ das ações trabalhistas prevê ‘tsunami’ de processos
Um dos maiores escritórios que atua exclusivamente na área trabalhista, o Agamenon Martins Sociedade de Advogados, com sede em São Bernardo, não teme por uma eventual queda no número de ações na Justiça, uma das metas dos formuladores da reforma trabalhista. “Haverá brutal aumento de demandas trabalhistas”, prevê Agamenon Martins Oliveira, sócio do escritório criado há 25 anos. Hoje, ele e os mais de 80 advogados que trabalham no escritório abrem, em média, 2 mil ações por mês.
Agamenon acredita que nos setores de serviços, comércio e construção civil “haverá um tsunami” de demandas. Segundo ele, são setores de alta sazonalidade e “turnover” e “alguns empregadores mal orientados vão adotar procedimentos engenhosos, seja para contratação ou demissão, imaginando que a partir de 11 de novembro quase tudo poderá (ser feito) no campo das relações laborais”.