A entrevista por telefone com a escritora Nélida Piñon (foto) estava marcada para as 10h. E no horário combinado, a reportagem ligou para sua casa. Ela atendeu e foi logo elogiando a pontualidade. “Eu sou escandalosamente pontual”, falou do outro lado da linha e, antes de cair na gargalhada, alertou: “Eu sou de falar demais, prepare-se”.
E, de fato, foi uma conversa bastante generosa no tempo gasto, quase duas horas e principalmente na diversidade dos assuntos abordados. Ela não declinou em responder a nenhuma pergunta, inclusive sobre um assunto delicado, o fato de ser uma escritora pouco lida. “Essa observação é injusta, desculpe a franqueza. Se você me fala isso é como estivesse me rubricando de forma negativa. Acho que não deve ser falada, porque não corresponde à verdade”, contesta ela de forma veemente.
Nélida está lançando Filhos da América (editora Record), livro com 28 ensaios, dois deles dedicados ao escritor que ela nunca deixou de ler e de escrever a respeito; Machado de Assis. “Ele é uma raridade, porque é o primeiro escritor das Américas, dos filhos da América, a abordar o urbano. E o que é o urbano para ele? É uma metáfora do Brasil, como ele entendia o País, e que estava concentrado na cidade do Rio”, diz.
A estreia de Nélida nas letras foi em 1961, com o romance Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, como ela mesma frisou na entrevista, não foi um começo clássico para quem se inicia no ofício. “Eu aprendi, tenho aprendido, a cruzar vários gêneros. Sou uma escritora que não começou com um livro de contos, como é usual, mas com um caudaloso romance, Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo.”
Esse cruzamento de gêneros é uma marca nos seus livros, mesmo os de não ficção como é o caso do mais recente, Filhos da América.
Num dos ensaios dedicados ao Bruxo do Cosme Velho: A Pólis de Machado de Assis, apesar dos elementos ensaísticos, toda a narrativa é construída de forma quase ficcional, como se a invenção conduzisse os fatos reais narrados. “Eu também acho que minha não ficção é envolvida de invenção, melhor dizendo, acho que tudo é invenção. Nesse ensaio tenho que imaginar como Machado inventou a cidade, como ele olhava para a cidade do Rio”, explica.
Nélida Piñon, que foi a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, acha que as mulheres de hoje, que falam sobre empoderamento feminino, esquecem de citar as conquistas coletivas. “Não se pode esquecer delas, já que ajudaram a sedimentar esse tal empoderamento, sobre o qual não me atrevo a falar porque não domino.”
‘Não cogito meus leitores, eles existem’, diz Nélida
Os números que cercam a carreira da escritora Nélida Piñon são expressivos quando se leva em consideração a literatura que ela faz, livros ensaísticos e ficcionais densamente narrados. São mais de 300 mil livros vendidos, sendo 60 mil de A República dos Sonhos e 21 publicados, mas quatro deles estão fora de catálogo (dados fornecidos pela editora Record).
De onde partiu a fama de Nélida Piñon ser pouco lida? Segundo o editor da escritora, Carlos Andreazza, da Record, é difícil precisar. “Mas eu apostaria que tem algo a ver com certa implicância paulista com a Academia Brasileira de Letras, da qual ela é defensora e uma das vozes mais importantes.”
Mas, independentemente de como surgiu a fama, Andreazza contesta a afirmação em cima dos números que a escritora apresenta na Record. “Objetivamente, Nélida vende mais do que a média do escritor brasileiro e seus livros são lucrativos. A editora não faz favor. Publica seus livros porque são bons e porque dão lucro. Nélida combina as duas coisas – por isso tem quase toda sua obra em catálogo”, exemplifica.
Quando o assunto é abordado durante a entrevista, Nélida começa questionando a própria afirmação da pergunta: “Dizer que sou pouco lida, como assim?! Tenho uma obra quase toda editada. A República dos Sonhos já foi reeditado não sei quantas vezes. Isso que você está dizendo não é verdade. Agora me diga qual é o escritor que assim que termina um novo livro, a editora logo se prontifica em editá-lo?”, devolve ela.