Rogério Vacareli e Samuel Leme vão completar 50 anos em 2017. Ambos são ex-bancários que abriram pequenos negócios e contribuem para a Previdência há mais de três décadas. Caso as estimativas de especialistas em direito previdenciário se confirmem e a reforma proposta pelo governo passe a valer a partir da metade do ano que vem, Leme, sete meses mais velho, vai levar sete anos e meio a mais para se aposentar. Distorções assim podem gerar uma onda de judicialização, dizem advogados.
Pela nova proposta, se um contribuinte do sexo masculino completar 50 anos de idade e 30 de contribuição antes da mudança nos parâmetros para aposentadoria, terá de trabalhar mais sete anos e meio. Mas se fizer aniversário logo após a reforma, o tempo para receber o benefício dobra, para 15 anos, até que complete 65. Para as mulheres, a faixa de transição ocorre mais cedo, aos 45 anos.
Ainda falta um ano e meio para que Vacareli, dono de uma serralheria em São Paulo, some 35 de contribuição à Previdência. Como nasceu em março, ele ainda terá de trabalhar dois anos e três meses para receber o benefício – vai completar a barreira dos 35 anos e pagar um “pedágio” de metade desse tempo.
“Quando comecei a ouvir as discussões de reforma da aposentadoria, fiquei preocupado. Foram muitas informações trocadas e estou apreensivo para ver quando vai mudar tudo. É uma vida de contribuição e uma mudança brusca pesaria muito. O benefício não será grande, mas ajudará a pagar as contas.”
Nascido em outubro de 1967, Leme é sócio de uma gráfica em Santana do Livramento (RS) e contribui com a Previdência há 30 anos. “Consultei advogados, mas é quase certo que a reforma terá passado antes do meu aniversário. E os negócios vão tão mal que dói pensar em ainda ter de trabalhar mais 15 anos até pendurar as chuteiras.”
Bater o martelo
Para a presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), Jane Berwanger, o abismo que se criará entre cidadãos com trajetórias de contribuição parecidas poderá provocar uma onda de judicialização – quando se recorre à Justiça para arbitrar sobre decisões de outros poderes.
“O risco de judicialização é enorme, pois haverá inúmeros casos de injustiça na concessão dos futuros benefícios, e o governo já sabia que essas situações poderiam ocorrer ao propor medidas tão extremas e nivelar o cálculo pela idade. Essas distorções também desestimulam contribuintes individuais.”
Segundo projeções feitas pelo IBGE, o País terá 1,2 milhão de homens com 49 anos no dia 1.º de julho do ano que vem. Serão 1,4 milhão de brasileiras com 44 anos no período.
“Haverá distorções muito grandes e o trabalhador certamente vai se sentir lesado. O governo teria de ter criado regras de transição mais transparentes”, diz Antonio Pires, especialista em direito previdenciário.
“Ainda que haja judicialização, a tendência é que a Justiça mantenha a decisão do governo”, avalia Arismar Amorim Júnior, da Comissão de Direito Previdenciário da OAB-SP. “Mudanças assim trazem muita morosidade. Desde o início dos anos 2000 se discute a inconstitucionalidade do Fator Previdenciário, por exemplo.”
Procurado, o Ministério da Fazenda disse que não se pronunciaria sobre o tema.
Isenções devem ‘tirar’ R$ 62 bilhões da Previdência
Enquanto pretende endurecer as regras para a aposentadoria no Brasil, o governo prevê abrir mão de R$ 62 bilhões em receitas da Previdência Social no ano que vem. O valor é um terço do rombo de R$ 181,2 bilhões previsto para a Previdência em 2017.
O tamanho da renúncia com a concessão de isenções de contribuições concedidas a micro e pequenas empresas, entidades filantrópicas e exportações agrícolas virou arma de resistência das centrais sindicais, que defendem que o governo faça um corte mais radical desses benefícios em substituição a medidas duras da proposta de reforma das regras para aposentadoria.
Na proposta de emenda à Constituição (PEC), o governo propõe acabar apenas com um dos seis tipos de renúncias de receitas previdenciárias em vigência hoje – há um sétimo, referente aos Jogos Olímpicos, que se encerrará no fim do ano que vem. A medida quer acabar com a isenção de contribuições sobre exportações da produção rural, o que trará uma economia de cerca de R$ 6 bilhões por ano.
As renúncias mais significativas permaneceram intactas: gastos com entidades filantrópicas, desoneração da folha de salários e empresas sob o regime do Simples Nacional (sistema simplificado de pagamento de tributos). Só as filantrópicas custarão R$ 12,45 bilhões no ano que vem. Esse é o dinheiro que as empresas deveriam pagar em contribuição à Previdência pelos seus empregados. A desoneração da folha tira R$ 17 bilhões, enquanto o Simples Nacional custa R$ 24,9 bilhões.
A manutenção das renúncias é um dos pontos atacados pelos críticos, que afirmam que a proposta está prejudicando apenas os trabalhadores, sem apresentar medidas do lado da receita. Mas a extinção de isenções teria efeito igual ao de um aumento de tributos, algo que o presidente Michel Temer demonstrou querer afastar a todo custo. No governo, a percepção é que a revisão das renúncias seria o mesmo que descumprir uma promessa de não elevar impostos. A ideia é tratar a questão apenas após sinais concretos de recuperação na economia, mas a pressão pode mudar essa rota.
Neste ano, a previsão é que as isenções previdenciárias atinjam R$ 56,392 bilhões. Apesar da negativa do governo em elevar tributos, o procurador da Fazenda Nacional no Rio de Janeiro, Gilson Bonfim, afirma que nenhuma das medidas apresentadas pelo governo (teto de gastos e reforma da Previdência) consegue reduzir despesas no curto prazo. “Dessa forma, não se pode descartar totalmente que o governo busque um aumento de tributos, para aumentar as receitas e equilibrar as contas públicas no curto prazo”, diz.
Técnicos do Ministério da Fazenda ponderam que a situação das empresas continua ruim e que a retirada dos benefícios pode não significar necessariamente incremento nas receitas. “Algumas empresas podem sumir, desaparecer”, afirma um técnico.
Revisão
O consultor de Orçamento da Câmara dos Deputados, Leonardo Rolim, ex-secretário de Políticas de Previdência Social, acredita que o governo vá reavaliar algumas renúncias, ainda que de forma diferenciada. “Para tirar a isenção do setor rural, tem de tirar a da indústria também. As duas são iguais”, afirma. No Ministério da Fazenda, a avaliação é que a isenção de cobrança previdenciária sobre a exportação da produção rural é uma “excrescência” de épocas em que não havia muita mecanização nas lavouras e o emprego de mão de obra era intenso. No caso da desoneração da folha de salários, técnicos ressaltam que muitas empresas moldaram suas projeções contabilizando as isenções e uma reversão agora traria impactos negativos.
A desoneração da folha é concedido para 40 a 50 setores e produtos. Depois do Simples, esse benefício é o que mais pesa no caixa do governo. No caso do Microempreendedor Individual, Rolim avalia que a isenção é algo a ser discutido. “Mas é impensável mexer no Simples, porque ele traz mais arrecadação do que gasto.”
Desinformação sobre mudanças ainda é alta
O alto grau de desinformação sobre as mudanças pretendidas pelo governo para a Previdência Social tem marcado os primeiros dias após o detalhamento da proposta de reforma, na última terça-feira, segundo escritórios de advocacia especializados no tema. A maior dúvida dos segurados próximos à faixa de transição é se ainda vão poder se aposentar em menos tempo ou se terão de cumprir as novas regras.
“O contribuinte ainda tem muitas dúvidas sobre direito adquirido, o texto enviado pelo governo é confuso e, como ainda não foi aprovado, gera muita apreensão”, diz a advogada Viviane Ferreira Cassola.
No escritório em que o advogado Antonio Pires trabalha, na Grande São Paulo, o aumento da procura de clientes para tirar dúvidas e recalcular benefícios foi de cerca de 20% no último mês. “A forma que o governo usou para divulgar a proposta foi muito ruim e gerou muitas dúvidas ao contribuinte. São mudanças importantes e que ainda ocorrem em um ambiente econômico complicado, de desemprego alto.”
Ele lembra que os homens com mais de 50 anos e as mulheres com mais de 45 estarão sujeitos a regras de transição. “Nada muda para quem já recebe aposentadoria ou para quem já tiver completado as condições de acesso durante o período de tramitação.”
Desde que as mudanças na Previdência começaram a ser mais discutidas pela mídia, o motorista José Carlos de Almeida, de 58 anos, ficou preocupado. “Estou contando o tempo para receber o benefício e a gente sabe que, quando o governo propõe novidades na aposentadoria, nunca costuma ser benéfico para o trabalhador. Eles falam que a Previdência está falida e a gente fica com a impressão de que todo mundo vai precisar trabalhar até os 65 anos.”
Caso o texto da reforma seja aprovado como está, no ano que vem, ele terá de trabalhar mais seis anos para completar o tempo suficiente para poder se aposentar, segundo especialistas.
“Os problemas de informação também acontecem pela dureza dessa reforma. O anúncio da idade mínima de 65 anos assustou muita gente”, avalia a presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), Jane Berwanger. “Um outro ponto bem negativo foi o motivo alegado para fazer a reforma. Quando o governo diz que se nada mudar, daqui a 20 anos não vai ter dinheiro para aposentadoria, mexe no imaginário do contribuinte.”