Há um ano o Ministério da Saúde emitia um alerta inimaginável até mesmo para os maiores infectologistas do País. Em uma portaria publicada no dia 11 de novembro de 2015, o Brasil decretava emergência em saúde pública por causa de um surto de microcefalia causado por um vírus recém-descoberto em território nacional. Desde então, 2.079 casos da má-formação foram confirmados e outros 3.077 seguem em investigação, a maioria no Nordeste.
Passado o baque inicial e sem a pressão dos holofotes internacionais, esforços prometidos pelos governos para barrar novos casos da doença e amparar as famílias com bebês vítimas da má-formação parecem ter sido insuficientes. Pela primeira vez, a epidemia de microcefalia ganha força no Sudeste, com aumento expressivo de casos confirmados no Rio e em São Paulo nos últimos meses, conforme apontam dados inéditos tabulados pela reportagem a partir de estatísticas do Ministério da Saúde.
Enquanto Recife, epicentro da crise inicial, vive estagnação nos registros – 64 até agora -, o Rio já é a capital com a maior tendência de alta, ocupando a segunda posição no ranking de municípios com mais casos confirmados (110). No Estado de São Paulo, o número de crianças com microcefalia comprovada triplicou entre agosto e outubro, passando de 14 para 46. Juntos, os dois Estados têm ainda 700 registros da má-formação em investigação.
O Ministério da Saúde afirma que não há um período de pico de casos no Sudeste. “Os dados são contabilizados nas estatísticas na semana em que foram confirmados, mas muitos se referem a registros de bebês nascidos meses atrás. De maneira nenhuma o risco pode ser minimizado, mas os números registrados mês a mês no Sudeste se mantêm estáveis”, diz Eduardo Hage, diretor do Departamento das Doenças Transmissíveis do ministério.
No Nordeste, as crianças vítimas do primeiro surto da má-formação completam um ano enfrentando ainda a falta de vagas em centros de reabilitação e demora no acesso à atenção especializada.
Para mostrar os impactos da microcefalia na vida das famílias, a reportagem acompanhou de perto os primeiros 12 meses de vida de quatro bebês de Pernambuco e São Paulo afetados pela epidemia. Nascidos entre setembro e novembro do ano passado, Alessandro, Laura, Matheus e Pérola foram vítimas da síndrome congênita do zika, doença até então desconhecida pela ciência e que, além da microcefalia, pode causar danos a órgãos como visão, audição e articulações.
Passado um ano do alerta de emergência do ministério, a rotina e a batalha das quatro crianças e de suas famílias mostram que tão cruel quanto as sequelas da doença são as limitações impostas pela falta de assistência médica adequada, desestrutura familiar, demora nas ações governamentais, pobreza e desigualdade social.
Centros de reabilitação prometidos pelo Ministério da Saúde não saíram do papel. Os locais de tratamento seguem concentrados nos grandes municípios, dificultando o acesso de bebês do interior do País. O transporte para as capitais, de obrigação municipal, também vem sendo dificultado pelas prefeituras, principalmente após o fim do processo eleitoral. Medicamentos para sequelas da microcefalia estão em falta nas farmácias do SUS.
Os resultados dessa paralisia estatal são visíveis na evolução do quadro de cada bebê e na qualidade de vida conquistada. Quanto mais cedo fossem iniciadas as terapias de estimulação, melhores as condições de desenvolvimento da criança com microcefalia, repetiam os médicos logo que a epidemia foi descoberta. As histórias acompanhadas pela reportagem reforçam o impacto que uma boa assistência multidisciplinar – ou da falta dela – tem no destino de cada criança.
Apesar do esforço dos profissionais de saúde e de instituições filantrópicas no atendimento aos bebês já afetados e de todas as forças-tarefa montadas por pesquisadores para tentar entender e barrar a nova ameaça, as primeiras vítimas dessa emergência parecem ter, ao longo do último ano, caído no esquecimento. Para bebês como Matheus, que tiveram condições econômicas para buscar um tratamento adequado, os bons resultados começam a aparecer. Já para aqueles que dependem exclusivamente dos serviços públicos para ter a oportunidade de superar as limitações, como Pérola, Alessandro e Laura, resta torcer para que o descaso sofrido no primeiro ano de vida fique no passado a partir de agora.
Bebê precisa viajar 400 quilômetros para fazer tratamento
Desde os quatro meses de vida, quando conseguiu uma vaga na AACD de Recife, Pérola precisa estar no centro médico todas as terças-feiras, pontualmente às 9 horas, para participar de sessões de fisioterapia, fonoaudiologia e terapias em grupo com outras crianças. Se faltar e não justificar, pode perder a vaga.
Por isso, Marcione costuma ligar para a prefeitura de Betânia dias antes das consultas para confirmar se o transporte estará disponível. Do outro lado da linha, muitas chamadas não atendidas e outras tantas com respostas sem definição. “O responsável saiu”, “ligue mais tarde”, “vou ver com a prefeita” são algumas das frases ouvidas por Marcione toda semana. “Até agora, de tanto insistir, tenho conseguido carro para ir, mas, na volta, muitas vezes tenho que me virar”, contou ela, em maio, sem imaginar que a situação ainda iria piorar.
Em uma das viagens feitas na época, quando a menina estava com sete meses, o carro da prefeitura não apareceu para buscá-las em Recife. Marcione teve, então, que pegar um ônibus na capital até uma cidade próxima de Betânia – não há coletivo direto entre os dois municípios – e ficar esperando de madrugada, na beira da BR-232, com Pérola no colo, a chegada do marido para resgatá-las.
Na semana seguinte, em viagem acompanhada pela reportagem, a prefeitura até mandou um carro para buscar mãe e filha, mas o veículo só saiu de Recife cerca de duas horas depois do fim do tratamento de Pérola. A prefeita de Betânia, Eugênia de Souza Araújo (PSD), quis aproveitar a ida do motorista a Recife para receber um documento. A encomenda chega nas mãos do motorista perto das 19 horas, quando o prédio da AACD já estava trancado. Marcione, que tinha saído de casa de casa por volta das 2 horas de terça-feira, retornou à Betânia 24 horas depois, metade delas passadas na estrada.
Os meses foram passando e o problema do transporte, que Marcione tinha esperança que se resolvesse rapidamente, piorou, principalmente com a chegada das eleições municipais. Problema comum em todo o Brasil, o pleito paralisou alguns serviços na cidade. No mês de setembro, Pérola faltou ao tratamento duas semanas porque não conseguiu carro nem sequer para a viagem de ida. Depois das eleições, com a derrota do grupo político da atual prefeita, a administração municipal ficou ainda mais desinteressada em atender Marcione.
No final de outubro, a reportagem acompanhou uma das tentativas frustradas da mãe em conseguir o transporte para levar a filha para o tratamento. Marcione começou a ligar às 10 horas da segunda-feira para a prefeitura em busca de uma resposta. Ao longo do dia, foram mais de dez ligações. Até o celular da prefeita foi acionado, em vão. Só caixa postal.
“Se pelo menos me dessem uma resposta logo, de que não vai ter carro hoje, eu me programava para tentar ir de outro jeito, mas ficam enrolando”, reclamou.
Já à noite, sem nenhum retorno, até a reportagem entrou em contato com a prefeitura, tentando entender o porquê do problema que se arrasta há um ano. “Eu sempre tento ajudar a Marcione e ela ainda vem colocar jornalista para me ligar?”, respondeu à reportagem, num tom mal educado, um dos funcionários da administração, como se estivesse fazendo um favor para a família de Pérola quando fornece o transporte.
Cada vez que a prefeitura deixa de dar carro para a menina, Marcione e o marido, o agricultor Manoel Fernandes Alves, de 42 anos, se veem num dilema: ou a menina perde o tratamento ou eles desfalcam ainda mais o orçamento para conseguir pagar os R$ 98 da passagem de ônibus até Recife, valor pesado para a família que tem pouco mais de salário mínimo como renda mensal.
Com a chegada de Pérola, a dona de casa deixou de trabalhar e, para sustentar a bebê e os outros dois filhos, Henzo, de 6 anos, e Clara, de 10 anos, a família conta apenas com os R$ 800 que o marido ganha com as atividades de motorista de van escolar e agricultor mais os cerca de R$ 200 que Marcione recebe pelo programa Bolsa Família. “Já teve vez que a gente teve que pegar dinheiro emprestado para eu poder voltar de Recife”, conta ela.
No mês de setembro, uma boa notícia. A família começou a receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC), valor pago pelo governo federal a pessoas com deficiência cuja renda familiar per capita é de até R$ 220. Mas logo no primeiro mês, o dinheiro já teve de ser usado para tapar um buraco. Também por causa “dos rolos da política”, como eles chamam o processo eleitoral, Manoel deixou de receber o salário de motorista de van escolar. Contratado da prefeitura para transportar as crianças moradoras da zona rural para a escola, desde agosto ele não recebe o pagamento.
“Antigamente dava para viver só das coisas da roça, mas agora não dá mais, faz seis anos que não chove. De vez em quando a gente vende uns porcos, uns cabritos, mas é difícil os bichos vingarem sem água, eles ficam sem ter o que comer”, diz Manoel.
Foi também na época das eleições que a prefeitura de Betânia resolveu fechar a casa de apoio que mantinha em Recife para pacientes da cidade que faziam tratamento na capital e precisavam de um alojamento. Desde junho, quando Pérola iniciou tratamento também às quintas na Fundação Altino Ventura, ela e a mãe se hospedavam no local. Com o fechamento da casa, as duas têm ficado na casa de conhecidos.
Marcione não é de desanimar, mas sua rotina tem sido complicada. Além de todo o desamparo governamental e das dificuldades financeiras, a dona de casa foi descobrindo, aos poucos, todas as limitações e problemas trazidos pela síndrome congênita do zika.
Pérola teve a parte motora, visual e auditiva prejudicadas. Aos sete meses, começou a apresentar também os primeiros indícios de crises convulsivas. “Ela dava umas tremidinhas, eu até achava que ela podia estar querendo fazer graça, mandar beijinho, mas, conversando com outras mães, percebi o que estava acontecendo”, conta Marcione. Desde então, Pérola passou a tomar um medicamento antiepilético cuja caixa custa R$ 296 e que está em falta há cinco meses nas farmácias da Secretaria Estadual da Saúde de Pernambuco, que diz estar negociando a compra com o laboratório farmacêutico responsável. Enquanto isso, é a família que tem que bancar.
Os problemas no sistema digestivo, também consequência da microcefalia, exigem que os pais da menina comprem mais remédios. Pérola tem refluxo e prisão de ventre, queixa comum entre famílias com crianças com a má-formação. A deglutição da bebê também precisa ser treinada nas sessões de fonoaudiologia, caso contrário ela tem dificuldades de engolir e pode engasgar. A audição se desenvolve com atraso. Com um ano, Pérola ainda está na fase de detecção de sons do ambiente, habilidade que, em bebês saudáveis, é conquistada antes dos seis meses.
Aos poucos, Marcione foi se acostumando ao tempo da filha, e qualquer avanço, que mal seria notado por pais de crianças saudáveis, é comemorado. Pérola vem melhorando o controle do pescoço, mas ainda não senta nem engatinha. “Antes ela caía para os lados, para frente e para trás. Agora ela já não cai mais para frente, já é uma diferença, né? Eu também ficava triste porque ela não sorria, mas agora ela já consegue”, orgulha-se a mãe, sem deixar de lamentar quantos avanços poderiam ter sido comemorados neste primeiro ano de vida se as condições de tratamento fossem melhores.
“Se eu tivesse dinheiro, ia pagar um plano de saúde para ela poder fazer fisio três vezes por semana, em casa mesmo, sem depender de ninguém, para não quebrar muito a rotina dela”, sonha a mãe, enquanto prepara a mochila para mais uma jornada rumo a Recife.
Com um ano, menino com microcefalia ainda aguarda vaga para iniciar terapias
Desde que deixou a maternidade de Goiana, cidade a 62 quilômetros de Recife, em outubro de 2015, Alessandro se acostumou a passar os dias no berço ou no colo da mãe só de fralda, no máximo com uma bermudinha. Qualquer roupinha acaba incomodando naquele calorão que faz na casa de telha, três cômodos, onde o menino mora com os pais e a irmã Raysa, de 3 anos, em um loteamento irregular nas margens da BR-101. A alta temperatura justifica a forma com que a mãe dá banho no bebê: no tanque, com água fria mesmo.
Mais incômodo que o calor só mesmo a espera. Se Pérola sofre para conseguir transporte do sertão até a capital para fazer o tratamento, Alessandro não tem nem essa possibilidade. Ele já tem um ano, nasceu com microcefalia e, ao contrário do que recomendam todos os especialistas, até hoje ainda não começou as terapias de reabilitação. Não foi por falta de vontade da mãe, a dona de casa Rayane Gomes Mendes, de 19 anos.
Receber o diagnóstico da má-formação logo depois do parto foi um choque para a moça de aparelhos nos dentes que havia acabado de sair da adolescência. “No pré-natal estava tudo bem. Mas quando tiraram ele de dentro de mim, já perguntaram se eu tinha alguém de cabeça pequena na família”, relata. Nos dias seguintes, foi só desespero e tristeza. “Ninguém me explicava direito o que era esse negócio de cabeça pequena, e eu só chorava, perguntava para Deus por que ele tinha me mandado um filho assim. Não queria aceitar, pensei até em me matar”, conta a jovem. Mas nem tempo de sofrer sozinha Rayane teve. Já recebeu o encaminhamento para ir para Recife, único lugar onde conseguiria especialistas para avaliar seu bebê.
A primeira consulta com o pediatra do Hospital Universitário Oswaldo Cruz só foi marcada para janeiro, quase dois meses depois do nascimento de Alessandro. Os exames de imagem neurológicos para confirmar o diagnóstico foram feitos em abril, quando Alessandro estava para completar seis meses.
Em maio, a mãe do bebê finalmente conseguiu a guia de encaminhamento para a AACD, mas, por causa de toda a demora no processo e das dificuldades de viajar até Recife, encontrou a unidade sobrecarregada, consequência da baixa capacidade dos equipamentos próprios do SUS em atender a todos que precisam de serviços de reabilitação.
Desde que explodiu a epidemia de microcefalia, no ano passado, nenhum centro novo foi aberto no País, de acordo com o Ministério da Saúde. Na maioria dos Estados, o que aconteceu foi a adaptação e habilitação de serviços de saúde já existentes para atender a nova demanda.
Em Pernambuco, Estado com o maior número de casos, a maioria dos 392 bebês que tiveram o diagnóstico confirmado acabou sendo encaminhada para instituições filantrópicas conveniadas ao SUS, como a AACD e a Fundação Altino Ventura, ambas em Recife. Na primeira, são 200 crianças com microcefalia atendidas e outras tantas em lista de espera. Já a segunda dá assistência a 150 bebês e tem uma fila com outros 150 nomes aguardando vaga.
Alessandro está na fila das duas instituições. Em uma vai fazer fisio e fono. Na outra, passará por estimulação visual. Em maio, na época da primeira visita da reportagem à casa de Rayane, a mãe estava esperançosa de que o tratamento fosse, enfim, engrenar.
“Na semana que vem vou atrás das terapias e dos exames da vista e da audição. Às vezes não dá para ir porque eu fico sem o dinheiro do ônibus. E depender da prefeitura é complicado”, contou, na época.
Em Goiana, todos os pacientes que precisam fazer tratamento na capital embarcam no mesmo ônibus, que sai de madrugada passando nos vários bairros para recolher os doentes.
Se quiser utilizar esse transporte, Rayane precisa estar às 4h30 com Alessandro debaixo de uma das passarelas da BR-101. “E o motorista não espera nem um minuto. O pior é que vai sempre cheio. Já tive que ir três vezes de pé, porque ninguém se levantou para me dar o lugar”, conta ela, inconformada.
Pagar para ir para Recife em um ônibus de viagem é sacrificar o orçamento de R$ 1 mil da família, R$ 250 reservados para o pagamento do aluguel.
Depois de conseguir o encaminhamento, Rayane até procurou as unidades especializadas para que o menino iniciasse as terapias, mas as coisas não evoluíram como ela imaginava. Entre junho e outubro, Alessandro passou por três consultas de avaliação na AACD, mas ainda não iniciou as sessões de reabilitação. Esteve em consulta com o oftalmologista na Fundação Altino Ventura, mas espera há quatro meses os óculos e a vaga para as sessões de estimulação visual. O menino também aguarda as órteses que precisará usar nos pés e nas mãos para corrigir algumas posições ósseas e musculares prejudicadas pela microcefalia.
Para a mãe, a demora no início do tratamento é visível na evolução do quadro do filho. “Ele não senta, não se arrasta, não vira, não consegue pegar as coisas. Eu penso que se ele tivesse fazendo as fisioterapias já podia estar bem melhor, mas é só lista de espera, lista de espera”, irrita-se a mãe.
As sessões de fono ainda não iniciadas também fazem falta para o menino, que, com dificuldade de engolir provocada pela microcefalia, continua se alimentando só de leite. “Ele não consegue comer comida pastosa, não, e eu também prefiro não dar porque ele pode engasgar”, diz Rayane.
Sem auxílio profissional, são os pais os responsáveis por tentar desenvolver as habilidades do menino. Recentemente, a família ganhou um cavalinho que pisca e toca música, o que ajuda a estimular os sentidos de Alessandro, além de arrancar sorrisos do bebê.
O primeiro ano de vida de Alessandro despertou um amor diferente em Rayane. “Antes eu não queria aceitar, não tinha paciência com a vida. Perguntei para a médica se poderia ter cura, se teria algum remédio para desenvolver a cabeça, mas ela disse que não, que ele seria assim até quando Deus quisesse, e aos poucos eu mudei meu jeito de cuidar, meu jeito de amar”, diz, com ternura, admirando o filho.
Ao mesmo tempo, o primeiro ano de vida do bebê, marcado pelo desamparo, aumentou a revolta de Rayane. “Eu achei que as coisas iam ser melhores para a gente, que o governo ia dar uma atenção. Eu não tenho tratamento na minha cidade nem um transporte decente para o meu filho”, reclama.
Mas nada chateia mais a jovem do que o desamparo familiar. Brigada com o pai e órfã de mãe, Rayane muda a feição quando pensa em tudo que tem passado sozinha. O marido, o mecânico Alexsandro Cosmo da Silva, de 23 anos, passa o dia inteiro fora, trabalhando.
Sobra para Rayane as tarefas de casa e o cuidado de Alessandro e Raysa. Com ciúmes, a filha mais velha não aceitou bem a chegada do bebê e tem dado mais trabalho à mãe.
“Me perguntam se eu tenho pai, eu falo que não tenho. Outro dia tive que ficar uma semana com Alessandro no hospital porque ele pegou uma pneumonia e ninguém foi me ajudar. Sabem que eu tenho uma criança especial e não estão nem aí”, lamenta ela.
A briga com a família já é de longa data, desde que Rayane decidiu, aos 15 anos, namorar Alexsandro. “Meu pai queria que eu namorasse um amigo dele, mas eu não queria. Eu saía escondida para encontrar com o Alex e, quando voltava, ficava roxa de pau. Apanhava mesmo. Quando minha mãe morreu, decidi fugir e fui morar com o Alex.”
A revolta também aparece quando Rayane lembra de episódios de preconceito. “Às vezes eu estou andando com Alessandro e o povo fica se cutucando, apontando para ele. Eu logo digo: meu filho é gente, não é bicho, não”.
Na esperança que o menino consiga a assistência que toda pessoa merece, Rayane sonha em ver no filho a evolução que não pôde comemorar no primeiro ano de vida do bebê. “A gente quer ver ele falar mamãe, papai e tudo, mas a maior glória vai ser se ele andar. Se isso acontecer já vou estar satisfeita.”
Na luta contra sequelas da microcefalia, pais decidem não esperar serviço público
Não são nem 8 horas e Matheus já está acordado, vestindo seu macacão de estampa de cachorros, meias coloridas, botinha ortopédica e óculos de armação azul. Mãe e avó terminam de arrumar o menino para a natação. É terça-feira e a agenda do dia está cheia. Depois da aula na piscina, Matheus vai voltar para casa para almoçar, de lá segue às 15h50 para a sessão de terapia ocupacional (TO) e, em seguida, às 18 horas, tem hidroterapia.
Os outros dias da semana não são menos corridos. Fisioterapia, TO, fono, estimulação visual, natação, hidro. Matheus e a família não têm descanso na batalha contra as sequelas da microcefalia. São dez sessões semanais de seis diferentes terapias, realizadas diariamente, de segunda a sexta.
Toda a assistência que falta ao pequeno Alessandro, preso em filas de espera, foi ofertada ao longo dos últimos meses a Matheus, um dos poucos bebês vítimas da epidemia de microcefalia a conquistar, graças às melhores condições econômicas dos pais e ao suporte familiar, o amparo que todas as crianças mereciam.
A situação, no entanto, não evita que o menino e sua família, moradores de um bairro de classe média de Recife, sofram com as limitações impostas pela microcefalia, diagnosticada em setembro de 2015, somente após o nascimento da crianças. Descobrir a má-formação do filho na sala de parto, após uma gravidez aparentemente tranquila, tirou o chão da bancária Isabel Cristina Gomes de Albuquerque, de 39 anos, e do consultor de vendas Moisés Matias de Albuquerque, de 37 anos.
Até então, o casal estava radiante com a gravidez e com a fase que vivia. Os dois organizaram chá de bebê, contrataram um estúdio para fotografá-los durante a gravidez e, ansiosos em registrar cada momento do crescimento do menino, já deixaram pago o pacote de fotos de Matheus aos três, seis e nove meses de idade.
Preparavam ainda, para depois do nascimento do filho, a mudança para um apartamento próprio. De repente, tudo desabou.”Descobrimos da pior maneira possível. A neonatal só disse no centro cirúrgico que precisava levar meu filho porque ele não era normal”, conta a mãe.
O pré-natal feito em um plano de saúde não foi capaz de verificar a má-formação ainda durante a gestação. Como na época a relação entre zika e microcefalia ainda não era conhecida, o desespero e a surpresa do casal foram ainda maiores. Procuraram logo o consultório particular de um geneticista para entender o que havia acontecido, mas as causas genéticas foram descartadas. Isabel também fez exames que poderiam acusar uma possível causa infecciosa para a microcefalia do bebê: rubéola, citomegalovírus, toxoplasmose. Todos negativos.
A pergunta sobre o que teria provocado a má-formação ficou sem resposta por meses, tempo que o casal não quis esperar para procurar tratamento para o problema. Aos 20 dias de vida, Matheus começou fisioterapia, terapia ocupacional e fono na Associação Novo Rumo, instituição sem fins lucrativos que atende crianças com diferentes tipos de deficiência na capital pernambucana. Pelo tratamento, a entidade cobra um valor simbólico de R$ 150 por mês.
“A gente não esperou muito pelo serviço público, achou melhor partir para o privado porque todo médico dizia que o início precoce era muito importante. Só fomos conseguir vaga na AACD e na Fundação Altino Ventura em fevereiro. Se tivéssemos esperado só o tratamento gratuito, o Matheus teria perdido cinco meses de estimulação”, diz Isabel.
No caso do menino, a parte motora foi a mais afetada pela lesão neurológica causada pelo zika. Assim como acontece com a maioria das crianças com microcefalia, Matheus têm um quadro de espasticidade, ou seja, os músculos são mais rígidos e respondem de forma excessivamente reflexiva. Isso dificulta o processo de desenvolvimento da criança na aquisição de habilidades como o controle de pescoço e de tronco, primeiros passos para atividades como sentar, engatinhar e andar. A espasticidade também dificulta a alimentação, pois a criança costuma projetar involuntariamente a língua para a frente, impedindo a ingestão da comida. Na parte visual, o menino desenvolveu estrabismo.
Mesmo com todas as limitações, Matheus passou a responder bem à maratona de terapias de reabilitação. Aos seis meses, já havia conquistado o controle do pescoço e demonstrava interesse por brinquedos e atenção a ruídos do ambiente. Também passou a gargalhar com as brincadeiras da mãe. Foi nessa mesma época que começou a usar óculos para corrigir o problema visual. Isabel também decidiu apertar o orçamento para possibilitar um atendimento individualizado de estimulação visual num hospital especializado particular de Recife.
O tratamento corria bem, mas a família se viu em um dilema. A licença-maternidade de Isabel acabaria em breve e Moisés trabalha das 7h às 17h. Os pais não teriam condições de cuidar do menino e levá-lo para as dez sessões semanais de reabilitação, de segunda a sexta, manhã, tarde e noite.
“A gente até pensa em parar de trabalhar, mas a questão financeira impede. Precisamos dos dois salários para conseguir oferecer tudo que for possível para Matheus. Além disso, tenho um bom plano de saúde da empresa. Graças a isso que consigo fazer as consultas e os exames na rede privada”, conta.
Diante do dilema, a família toda teve de se unir ainda mais. A mãe de Moisés, que eventualmente já vinha ajudando o casal com os cuidados do menino, resolveu parar de trabalhar e se mudou para a casa do filho para dedicar-se integralmente ao neto. “Como o horário de trabalho da Isabel é flexível, às vezes ela leva e o Moisés busca no tratamento, e sou eu que fico com ele durante as terapias e em casa”, conta Geralda Matias de Albuquerque, de 58 anos, com orgulho e sorriso no rosto de quem parece ter se redescoberto. “Pode parecer que eu abandonei a minha vida, mas eu sou muito mais feliz agora”, diz.
Com a possibilidade de dar seguimento a todas as terapias, a família foi se animando e comemorando cada vez mais os pequenos avanços do menino. Aos dez meses, Matheus começou a natação e, hoje, com dois meses de aula, já prende a respiração quando a mãe o conduz para um mergulho. “É um ganho diário e contínuo. Foi impressionante ver que logo nas primeiras aulas, ele conseguiu perceber o momento do mergulho. A professora conta 1, 2 e 3 e ele já fecha o olhinho porque sabe que vai para debaixo d’água”, conta a mãe do bebê.
Alegria semelhante teve a família ao ver o menino batendo palminhas durante um parabéns. “Para quem está de fora, pode parecer uma coisa natural de qualquer criança, mas para a gente foi uma felicidade muito grande.” As terapias de estimulação e reabilitação também permitiram maior controle do tronco e dos braços a Matheus. Hoje, ele já consegue segurar objetos, virar na cama e manter-se sentado por alguns segundos sem apoio.
A alimentação também pôde ser incrementada com o auxílio das sessões de fonoaudiologia. “Como antes ele projetava muito a língua, a gente tinha que ficar duas horas tentando para conseguir dar uma quantidade muito pequena de papinha. Isso melhorou demais”, conta a mãe. Com um ano, o cardápio de Matheus pode até dar inveja aos adeptos de uma rotina fitness. “Cozinhamos abóbora, feijão verde, batata, cenoura, couve, tomate, cebola e coentro e amassamos tudo. A gente dá arroz integral e soja também, além das frutas”, conta Isabel.
Se dependesse dos pais, o menino teria acesso a ainda mais atividades. “O mais difícil tem sido conciliar toda essa rotina. Geralmente a gente não pode optar pelos horários das terapias, principalmente nos locais onde o atendimento é gratuito. Se faltar, perde a vaga. E se faltar no emprego, posso ser demitida.”.
Mas para a família, a felicidade e a evolução de Matheus têm compensado todos os sacrifícios. O desânimo inicial da família com as possíveis limitações do menino se transformou em combustível para buscar tudo que possa melhorar a qualidade de vida do pequeno.
Se depender do sorriso que Matheus estampa constantemente ao lado dos pais e da avó, o objetivo da família está sendo conquistado. A sessão de fotos contratada por Isabel e Moisés para os primeiros meses de vida do filho, esquecida depois do parto por causa do desespero, acaba de ser retomada. “Já tínhamos pago tudo, mas, no começo, o choque foi tão grande que eu nem fui atrás. Agora decidimos fazer”, diz.
O menino já tem experiência nesse tipo de atividade. Em junho, foi uma das estrelas de um ensaio do fotógrafo pernambucano Joelson Souza que retratou vários bebês com microcefalia, contra o preconceito. “Matheus é um bebê especial, mas não por causa da deficiência, é especial porque é o nosso filho”, diz Moisés.
O mistério dos gêmeos Laura e Lucas; só ela nasceu com microcefalia
Quem dera Jaqueline Oliveira pudesse contar com a ajuda de mãe, pai, irmãos, sogra, tias ou de qualquer pessoa disposta a auxiliá-la na loucura que a sua vida se transformou desde que deu à luz Laura e Lucas, em novembro do ano passado, em Santos, no litoral paulista. Quando descobriu estar grávida de gêmeos, já com outros dois filhos para criar – Paulo Guilherme, de 9 anos, e Gabrielly, de 5 – a dona de casa de 25 anos sabia que o desafio seria grande, mas não imaginava que uma das crianças acabaria vítima da até então desconhecida epidemia de microcefalia.
O caso intrigou a mídia e até a comunidade científica. Laura nasceu com 26 centímetros de perímetro cefálico, oito centímetros a menos do que Lucas. O que poderia explicar que um dos bebês tivesse nascido com a má-formação e o outro não? A infecção pelo zika vírus seria, então, capaz de afetar de formas diferentes o desenvolvimento de cada feto? Laura e Lucas foram tema de dezenas de reportagens e vêm sendo alvo de estudos de um grupo de pesquisadores da USP.
Enquanto especialistas tentavam desvendar o mistério, o que Jaqueline se perguntava era como daria conta, com pouco dinheiro e sem parentes próximos, de criar quatro filhos, um deles com necessidades especiais. Chegou a se revoltar com a vida e questionar os motivos da filha estar passando por isso. “Durante a gravidez, quando eu pensava em ter gêmeos, pensava em um casal por igual. Agora, quando vejo um com a cabeça grande e a outra com a cabeça pequena, não tenho nem mais aquela alegria de tirar foto dos dois juntos”, disse Jaqueline, em sua primeira entrevista à reportagem, em janeiro, quando as crianças não tinham nem completado dois meses.
O desânimo com a situação da filha foi passando, mas a falta de assistência adequada à menina passou a ficar mais evidente. Buscar tratamento para Laura tornou-se o principal objetivo da vida de Jaqueline. Com quase quatro meses de idade, a bebê conseguiu uma vaga na Casa de Esperança de Santos, instituição filantrópica conveniada com o SUS onde ela iniciou fisioterapia, fono e exercícios no grupo de estimulação precoce. Naquele mês, março de 2016, embora todas as atenções estivessem voltadas para o surto da má-formação no Nordeste, a entidade de Santos já atendia 9 crianças com microcefalia na Baixada Santista. Hoje, já são 18.
Mesmo morando em Santos, uma cidade com desenvolvimento e estrutura superiores aos municípios do interior de Pernambuco, Jaqueline não deixou de sofrer com o desamparo. A conquista da vaga para o tratamento de Laura, por exemplo, trouxe também uma preocupação: com quem deixar Lucas e os outros dois filhos pequenos durante as consultas e sessões de reabilitação de Laura?
O marido de Jaqueline e pai das crianças, o gesseiro José Maria Rodrigues, de 32 anos, fica fora de casa das 6h às 18h30. “Quando consegue, ele troca fralda, dá mamadeira, cuida das crianças, mas, durante o dia, não tem como, ele tem que trabalhar, é a única renda que a gente tem”, conta Jaqueline. O salário de R$ 2 mil de José sustenta de forma apertada as seis pessoas da família. Só com o aluguel, o casal gasta R$ 800.
Até os seis meses dos gêmeos, Jaqueline ainda contou com a ajuda da mãe para cuidar de Lucas, mas, passado esse período, ela ficou sozinha. “As pessoas têm a sua vida, né? Cada um tem suas obrigações, seus problemas. Eu recebo bastante visita, doação, mas no dia a dia, sou só eu mesma para cuidar deles. Eu e Deus”, resume.
Em maio, quando a reportagem esteve em Santos pela segunda vez, Jaqueline já tinha procurado a prefeitura para tentar conseguir uma vaga em creche para Lucas, mas, sem disponibilidade, o menino entrou na fila de espera.
Sem a mãe para ajudar, Jaqueline passou a pagar uma vizinha para cuidar de Lucas duas vezes por semana, nos dias do tratamento de Laura. Eram R$ 200 a menos no orçamento já estreito. Cuidar dos dois bebês sozinha era difícil até mesmo quando a dona de casa não saía. Aos seis meses, o menino ainda mamava e já estava ativo, querendo se arrastar e mexer nos objetos. Laura, no seu tempo, precisava de cuidados constantes, agravados pelos quadros de espasmos e irritabilidade constante, característicos da microcefalia. “Ela chorava o dia inteiro. Dava muita dó porque ela ficava até cansada, ia para as terapias e não conseguia nem participar dos exercícios”, conta a mãe.
Foi quando o médico que atende a menina prescreveu o diazepam, medicamento com efeito calmante. Assim como Laura, muita das crianças vítimas da síndrome congênita do zika têm de ser medicadas com remédios tarja preta. “Tem mãe que não quer dar, fica achando que o bebê vai ficar sedado, mas para a Laura ajudou muito. Ela só vivia para chorar. Agora ela fica mais calma e responde bem às atividades”, afirma Jaqueline.
Ao iniciar o tratamento de estimulação, a meta definida para Laura era ter ganhos que, para bebês saudáveis, pareceriam triviais.
Nos exercícios do grupo de estimulação precoce, por exemplo, o corpo da menina era coberto por tecidos e retalhos de texturas e cores diferentes. Isso porque a microcefalia também compromete as funções sensoriais, fazendo com que algumas crianças se incomodem até quando são tocadas ou colocadas no colo de alguém.
Já no atendimento com a fisioterapeuta, o objetivo inicial era ganhar o controle cervical. Em um dos exercícios realizados, Laura era colocada na posição de gatinho e a profissional passava a tentar chamar a atenção dela com brinquedos e ruídos. O objetivo era que, com o estímulo, ela conseguisse levantar a cabeça para olhar para frente. Aos cinco meses, a bebê mantinha essa posição por apenas poucos segundos.
O tratamento ao longo dos meses possibilitou que, hoje, Laura tenha controle cervical e força para se apoiar nos braços quando está de bruços. O fortalecimento das pernas também vem sendo trabalhado com o auxílio de uma órtese para os pés.
A lentidão no aparecimento dos resultados às vezes desanima Jaqueline. As terapeutas explicam para a mãe que é preciso ter paciência. “A gente fica agoniada querendo saber se ela vai conseguir engatinhar, se vai conseguir andar, ainda mais para mim, que tenho outro exatamente da mesma idade em casa e já está dando os primeiros passinhos”, diz Jaqueline. “É uma vida de altos e baixos. Tem dia que a gente está meio desanimada e tem dia que tem certeza que vai dar tudo certo.”
O desânimo fica mais evidente quando Jaqueline pensa na assistência que gostaria de ter e não teve. A vaga na creche para o Lucas só saiu no final de setembro, quando o menino já estava com dez meses, ou seja, quatro meses depois de Jaqueline entrar com o pedido.
Além disso, a família não conseguiu ser contemplada pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC) para crianças com deficiência porque a renda per capita familiar é um pouco superior à máxima exigida pelo programa. “Mas me diz quem consegue viver no Estado de São Paulo com R$ 2 mil para seis pessoas?”, revolta-se a mãe.
Depois de um ano do nascimento dos gêmeos, Jaqueline teve certeza que, no final, é ela quem tem de se virar em mil para dar à Laura a possibilidade de evoluir dentro dos seus limites. A dona de casa, que nunca tinha sentado ao volante, até aprendeu a dirigir para poder levar Laura para as terapias, Lucas para a creche, Gabrielly e Paulo para a escola, sem deixar nenhum deles sozinho. O carro foi comprado com uma carta de crédito de um consórcio feito em 2011 pelo casal com o objetivo de, um dia, conseguir comprar a tão sonhada casa própria. Um sonho que ficou muito menor diante da vontade dos pais de dar à filha uma vida melhor.
‘O Estado não está preparado ainda’, diz mãe de bebê com microcefalia
Quando passava pelo primeiro trimestre de gravidez, Imaiara da Rocha Menezes, de 26 anos, percebeu pintas vermelhas em seu antebraço. Como logo sumiram, pensou que se tratava de uma alergia. Fez o teste para detectar zika, mas o resultado não saiu durante a gestação. Na 31ª semana de gravidez, durante uma ultrassonografia, Imaiara foi avisada de que o tamanho cérebro de Bernardo estava menor do que o normal.
Os médicos pediram ao laboratório que lhes enviassem o resultado. Viram que dera positivo para zika. Hoje, Bernardo tem quatro meses e está saudável. Eles moram na Taquara, em Jacarepaguá, bairro da zona oeste do Rio – cidade em que os casos de microcefalia mais crescem no País.
“Quando soube que ele tinha microcefalia, foi uma surpresa. O exame para zika ainda demora muito e conheço mães na mesma situação, que só souberam que os filhos tinham microcefalia quando nasceram. Foi também uma tristeza porque a gente sempre imagina que vai ter filho perfeito. Mas não é o fim do mundo, é respirar fundo e pedir força. Acho que Deus me escolheu para ser mãe de um bebê especial porque eu sou especial”, disse.
Imaiara cuida de Bernardo em tempo integral, junto com o marido. Tem outra filha, Beatriz, de sete anos. Na última sexta-feira, a mãe e o bebê foram para a terceira consulta no Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer, no Centro do Rio, para fazer exames.
Bernardo permaneceu tranquilo durante toda a cansativa visita. Não chorou ao ser manipulado pelos médicos e até riu, como quando foi colocado de bruços para abrir os braços. O exercício é recomendado para bebês com microcefalia, que tendem a ficar encolhidos. Depois da consulta, chegou a cochilar no colo da enfermeira.
Mas a rotina é cansativa, segundo Imaiara. Além disso, os médicos não lhe dão certezas durante as consultas. “A microcefalia não é nova, mas a zika sim, e cada bebê tem um diagnóstico diferente. Por ser uma coisa nova, o Estado não está preparado ainda. Ficamos meio perdidos. E não são todas as crianças que têm lugares de reabilitação perto”, disse.
A mãe conta que Bernardo vive uma vida normal. Dorme bem, mama no peito e é “brincalhão”. “Ele tem muita personalidade. Ri muito. O Bernardo é meio engraçado. Além de ser muito observador. Gosta muito de brincar de pular, é participativo e a hora que está com a irmã é a que mais ri. A gente acha que ele realmente está entendendo o que está acontecendo. Conversamos e ele meio que responde com um sorriso, um som. Ele sabe da necessidade dele”, afirma.
Apesar das vitórias, Imaiara não gosta de pensar no futuro do filho. Para ela, cada dia é uma vitória. “Penso no presente porque o que acontecer agora vai refletir mais na frente. Com ele, cada dia é um milagre diferente. Mas tenho no meu coração que ele tem um futuro brilhante, independente da necessidade dele”, afirma, dizendo que seu conselho para as mães nessa situação é que façam todos os tratamentos possíveis. “As crianças hoje andam, falam. Microcefalia não é o fim, é só o começo.”
Bernardo é tratado pela pediatra Fernanda Fialho, que comanda o ambulatório que cuida de crianças com microcefalia no Instituto Estadual do Cérebro. Criado em março, por causa do surto de zika, o ambulatório já atendeu 170 bebês com a doença. No local, há fisioterapeutas, otorrinolaringologistas, neurologistas, assistentes sociais, fonoaudiólogos, psicólogos e pediatras focados nesses casos.
Durante as consultas, as mães são orientadas sobre como tratar os filhos especiais até na maneira de segurar no colo (sempre com o bebê virado de frente, para ser estimulado com o ambiente). Também são feitas intervenções cirúrgicas, como a colocação de válvulas no cérebro para conter a hidrocefalia.
Segundo a pediatra, as mães devem procurar a assistência quando o bebê tem de dois a três meses. O período é o ideal para a estimulação precoce porque os sintomas já se manifestaram. Parte do sistema motor e cognitivo das crianças se forma ao longo do primeiro ano de vida.
“Um bebê com microcefalia de zika congênita significa que o cérebro não se desenvolveu completamente como deveria. Quando orientamos a estimulação precoce é para que o cérebro se desenvolva da melhor capacidade possível. Se estimular a criança, mesmo muito doente, no início da vida, podemos desenvolvê-la a ponto de ter uma vida o mais próximo do normal”, afirma.
De acordo com a pediatra, outra vantagem do ambulatório é que as mães, geralmente assustadas com o diagnóstico, podem conviver com as outras que passam pela mesma situação. “Elas compartilham informações, participam de terapias de grupo e entendem que não é um problema de uma mãe só. Elas saem mais seguras”, disse.
Apesar da escala crescente de bebês com microcefalia que aparecem na unidade, Fernanda afirma que ainda não dá para relacionar o número com o surto da zika, já que os bebês do período de verão ainda estão nascendo. “O número de zika caiu, mas ainda atendemos crianças de dois a três meses, que nasceram em setembro, por exemplo. Essa mãe estava grávida quando a epidemia ainda era uma realidade”, disse.
Fernanda também atendeu Ingrid dos Santos Jacó, de 21 anos, mãe de Anderson Taylor, de cinco meses. A mulher afirma que não sabe o que levou o filho a nascer com microcefalia, pois não sentiu sintomas da zika durante a gravidez.
Ingrid diz que “descobriu a doença quando o menino nasceu”. “Senti muita tristeza, mas fui forte. Tenho ajuda da minha mãe e procuro dar muito amor e carinho para ele, estimulá-lo”, afirma a mãe de primeira viagem.
Ela enfrenta rotineiras viagens do município de São Pedro da Aldeia, na Região dos Lagos, até o Centro do Rio para que Anderson faça os exames necessários no instituto. Além da microcefalia, o filho também tem hidrocefalia.
“É uma viagem muito cansativa, longa. Mas onde eu moro ainda não tem local adequado para o tratamento da microcefalia”, afirma.
Questionada sobre o cenário da cidade, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio afirmou que desconhece os dados colhidos pelo Estado, por isso não poderia comentá-los. Já a Secretaria Estadual de Saúde do Rio afirmou que não é possível dizer que todos os casos notificados no Estado tenham ligação com o vírus da zika. “Para definir a origem da má-formação, todos os casos notificados são investigados”, afirmou, por nota.
A secretaria informou ainda que, desde o início do monitoramento, até 29 de outubro, 145 casos de microcefalia associados a infecções congênitas foram confirmados por critérios clínico-radiológicos no Estado. Outros 387 casos de microcefalia notificados estão em investigação para definição das causas e 264 casos foram descartados, seguindo os critérios estabelecidos pelo Ministério da Saúde.
Mundo tem 73 países com zika e 26 com casos de microcefalia
Um ano depois da primeira identificação do surto de zika no Brasil, a OMS ainda não tem respostas para a maioria dos desafios ou novos instrumentos para lutar contra o vírus. Mas tem certeza de que a doença chegou para ficar e que governos e sua própria estrutura terão de trocar uma estratégia de emergência contra a microcefalia por uma resposta de longo prazo para ajudar as famílias afetadas.
Desde 2007, 73 países registraram a transmissão do vírus. Desses, 67 foram alvo de surto desde 2015. Mas em pelo menos sete deles, a situação aponta para uma crise endêmica. Em 12 países, a OMS identificou a transmissão de pessoas para pessoas, numa indicação do poder do vírus em contaminar por meio do contato sexual.
Nesse mesmo período, 26 países registraram um salto em casos de microcefalia e outras más-formações “potencialmente associadas com o zika”. Na semana passada, os últimos a registrar casos de microcefalia foram Bolívia, Trinidad e Tobago e Vietnã. Em 19 países, o aumento de casos foi da Síndrome de Guillain-Barré.
Considerando ser “impossível” medir todas as pessoas contaminadas pelo vírus, a OMS se limita a contar os casos de microcefalia e de Guillain-Barré. Assim, até quarta-feira, a organização somava 2.257 casos de microcefalia pelo mundo. Cerca de 10% deles aconteceram fora do Brasil. O País lidera a lista, com 2.079 casos, ante 54 da Colômbia e 28 nos EUA.
Para a OMS, não há dúvidas de que a proliferação vai continuar e que o vírus “se instalou” de fato em países tropicais. Isso, na avaliação dos especialistas da entidade, vai exigir uma mudança no comportamento da resposta e até mesmo dos serviços de saúde dos países atingidos. “Teremos zika em todos os países que registrarem a presença de mosquito”, disse Monika Gehner, porta-voz da OMS.
A OMS sugere que, a partir de agora, a meta não seja apenas a de parar o mosquito. Mas preparar os serviços de saúde para uma resposta de longo prazo para atender crianças afetadas, além de suas famílias.
Dúvidas
Um ano após iniciar o trabalho, porém, a OMS está sem resposta para quase todos os aspectos da doença. Não há, por exemplo, respostas sobre as linhagens do vírus e por que em locais como o Brasil os casos de microcefalia explodiram e, em outros, não. “Estamos vendo um número cada vez maior de casos na Ásia e indicando que qualquer que seja a linhagem, os problemas serão identificados”, indicou Monika.
Ela admite, por exemplo, que até hoje a organização não tem uma resposta a dar sobre o motivo pelo qual os casos de microcefalia no Brasil deram um salto importante, enquanto na Colômbia a taxa é muito menor. Documentos obtidos pelo Estado apontam que a OMS quer, até o final de 2017, intensificar investigações para tentar entender qual é de fato o impacto do vírus em fetos e recém-nascidos.
Estão em falta os instrumentos para parar a doença. Produtos contra o mosquito Aedes aegypti não seriam suficientes. Duas vacinas já começaram a passar por testes, mas sua comercialização ainda não tem data e, na melhor das hipóteses, estariam no mercado em 2018. “Podemos levar mais dois ou três anos para ter uma vacina”, disse Monika.