A Prefeitura de São Caetano, condenada desde 2019 a implementar duas Residências Terapêuticas para abrigar e tratar pessoas com deficiência mental, tem protelado a ordem judicial, com pedido de mais prazos. Agora, a Defensoria Pública obteve decisão favorável em Ação Civil Pública para obrigar a Prefeitura a implantar o atendimento que faz parte do conjunto de atenção à saúde mental. A lei Antimanicomial de 20o1 determinou a desinstitucionalização prolongada de pacientes que não apresentam riscos a si mesmo ou a terceiros. Desde então, prefeituras têm criado formas de garantir o atendimento. Em algumas, como no caso de São Caetano, a Justiça teve de intervir para o cumprimento na norma.
Outras cidades da região não foram alvo da Defensoria Pública por já garantirem atendimento. Em Santo André são pelo menos sete casas.
Em maio de 2018 a prefeitura foi alvo de uma primeira Ação Civil Pública proposta pelo Ministério público. Em 28 de maio daquele ano o juiz Sérgio Noboru Sakagawa, em seu despacho deferindo a tutela de urgência na ação disse que a cidade tida como primeiro lugar no país no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) não poderia deixar de atender a população com transtornos mentais.
“Essa falta, como bem lembrado pelo Requerente, obriga a municipalidade a destinar verbas vultuosas em clínicas particulares para atender à finalidade, e é um contra censo se imaginar que a cidade famosa por se qualificar como melhor índice de desenvolvimento humano do País, não possa direcionar recursos para implantação das residências terapêuticas, destinadas aos necessitados da própria Comarca, por isso, forçoso se admitir, como bem explana o Requerente, que o poder público local tem sido negligente, omisso e ineficiente na implementação de uma política pública de saúde mental, o que deu ensejo à atuação jurisdicional, tanto mais que falhou a tentativa oriunda da implementação através de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) previamente tentado. Dessa forma, determino que a Municipalidade de São Caetano do Sul implemente, no prazo seis meses, ao menos dois Serviços Residenciais Terapêuticos, um do Tipo I, outro do Tipo II, preconizados na Portaria nº 3.090/11, e a constituir equipes multidisciplinares para atuação nas duas unidades, suficientes para garantir o efetivo serviço na medidas das necessidades e atividades desenvolvidas, sob pena de multa, que será aplicada no caso de descumprimento desta decisão”, disse o magistrado.
Contudo a prefeitura seguiu sem atender ao determinado pela justiça. A prefeitura foi condenada em março do ano seguinte, quando a juíza Cíntia Abas Adib, da 3ª Vara Cível de São Caetano, deu mais um prazo de seis meses para a implantação de duas residências terapêuticas, uma com capacidade para oito internos e outra para 10. Mesmo assim a prefeitura não atendeu à ordem e recorreu pedindo prazos. Em 8 de setembro de 2021, mais de dois anos após o fim do prazo a prefeitura pediu mais tempo e mais uma vez a justiça concedeu outros seis meses que também não foram cumpridos. A prefeitura recorreu ao Tribunal de Justiça que reconheceu a decisão da primeira instância. O MP então entrou com ação para cumprimento da sentença e a prefeitura foi novamente condenada a um pagamento de multa diária de um salário mínimo por dia até o limite de 100 dias. Esse processo aguarda decisão.
Paralelo a esses processos a Defensoria Pública ingressou com nova Ação Civil Pública para obrigar o município a custear tratamento em local similar às residências terapêuticas até que essas sejam implementadas. Para a defensora pública autora da ação, Renata Flores Tibyriçá, desde 2000 as cidades têm que implantar as residências terapêuticas para abrigar aqueles que saem das instituições manicomiais e não têm para onde ir.
“Com a lei antimanicomial se criou uma rede de atenção psicossocial e uma das estratégias é a criação de residências terapêuticas para aquelas pessoas que não conseguem ficar sozinhas em substituição ao modelo antigo de manicômios que são depósitos de pessoas que a sociedade segrega. Não dá simplesmente para colocá-las em um albergue porque elas precisam de algum acompanhamento médico que é feito pelos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). Pessoas ficam muitos anos internadas por um incidente de insanidade mental porque não conseguem voltar para a família, pois perderam os vínculos e, mesmo com a cessação da periculosidade para si e para outras pessoas, elas continuam internadas porque não se implementaram residências terapêuticas”, explica.
Como em alguns casos não houve atendimento à norma a Defensoria entrou com quatro ações nas cidades de Eldorado, Paraguaçu Paulista e São Vicente e uma em separado para São Caetano já que a cidade tinha uma condenação pelo mesmo descumprimento. “Em São Caetano já existe uma decisão judicial e mesmo assim não instala as residências. A prefeitura recorreu na primeira e na segunda instâncias e perdeu e ainda entrou com uma ação rescisória para não cumprir. A cidade tem munícipe internado em hospital psiquiátrico. Não é comum essa postura adotada por São Caetano, eu penso em preconceito e discriminação por capacitismo, ou seja, a prefeitura acha que essas pessoas não são capazes de fazer algo. Pessoas que têm esquizofrenia ou transtorno bipolar em tratamento podem ter uma vida produtiva. Essa decisão favorável à instalação mostra que existe uma demanda que precisa ser enfrentada. Essas pessoas precisam de reparação pelo tempo em que ficaram institucionalizadas”, completa a defensora pública Renata Flores Tibyriçá.
Defesa
A Prefeitura não respondeu ao RD sobre a não instalação das Residências Terapêuticas determinadas pelo Judiciário. À Justiça a Prefeitura alegou falta de recursos e tampo hábil para o cumprimento da sentença. A defesa diz que a administração nega ter sido “negligente ou omissa, eis que conta com Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) montada de acordo com as normas do Ministério da Saúde, dois Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), um para álcool e drogas, outro para transtornos mentais; além disso, crianças e adolescentes são atendidos em serviço ambulatorial na Unidade de Saúde da Criança e Adolescente (USCA); por fim, possui leitos de curta permanência para atendimento de urgência/emergência psiquiátrica no Hospital Municipal de Emergências Albert Sabin, sendo que casos que necessitem internação são encaminhados para enfermaria psiquiátrica do Hospital Estadual Mario Covas; por outro lado aduz que a implantação de residências terapêuticas demanda investimento inicial para implantação além de investimento mensal de custeio, que não fazem parte nem do Plano Municipal de Saúde (PMS) nem do Plano Plurianual de investimento (PPA), muito menos da Lei Orçamentária Anual (LOA), mecanismos indispensáveis para a gestão financeira do município, adstrita ao contido da Lei de Responsabilidade Fiscal, e isso não pode ser feito de uma hora para outra, demandando planejamento econômico-financeiro, impossível de realização em seis meses ou mesmo um ano, talvez em dezoito a vinte e quatro meses; por fim, anota que nada comprova eventual omissão do Requerido, eis que coloca à disposição dos munícipes usuários da rede pública de saúde diversos tratamentos e atendimentos acima elencados, não há dano à sociedade ou qualquer tipo de violação a direitos fundamentais, quer do cidadão quer da saúde pública mental, sendo certo que a institucionalização de doentes mentais retirando-os do convívio social/familiar é contraponto à política de desospitalização, além disso, nada se comprovou sobre existência do binômio ilegalidade/lesividade a justificar a propositura desta ação”, sustentou a defesa.