ABC - terça-feira , 30 de abril de 2024

Conselho Regional de Psicologia diz que racismo em escola de SCS se repete porque escola falhou

Escola Municipal Ângelo Raphael Pellegrino, em São Caetano (Foto: Google)

Há pouco dias Matheus Santos de Jesus, de 12 anos, foi vítima de comentários racistas na Escola Municipal Ângelo Raphael Pellegrino, em São Caetano, onde estuda. Foi o quarto caso de racismo que a criança sofreu no local e dois boletins de ocorrência para a apuração de crime foram registrados. Para a psicóloga especializada em educação e subcoordenadora do CRP (Conselho Regional de Psicologia) do ABC, Maria da Penha Tamburu Ivanchuk, o caso ganhou proporção porque a escola falhou, o que revela despreparo para lidar com o tema. Diz que esses episódios são reflexo da sociedade que invade o ambiente escolar.

O último episódio de racismo do qual Matheus foi vítima aconteceu na hora do lanche, quando um aluno se aproximou da vítima e disse: “Matheus, você está comendo, nem parece africano”. Em outra ocasião o menino teria sido comparado a um escravo e a um animal. Um colega disse que a vítima poderia ser “seu escravinho” ou “seu pet”. Um outro episódio envolveu um professor, que atendia aos pedidos dos alunos para esclarecer dúvidas, mas não atendia Matheus.

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Violação de direitos

Para a coordenadora do CRP, não há dúvida de que a escola falhou. “Se a escola tem 300 alunos e um se sente oprimido ele tem de ser olhado. As primeiras coisas que aconteceram não foram vistas. Quando o colega fez um insulto lá atrás, tinha de ser corrigido na primeira vez para não acontecer de novo, mas não foi corrigido e aconteceu a segunda, a terceira. Isso é mais grave quando vem de uma autoridade, o professor, que repete também o comportamento social. Se a criança não é feliz naquele lugar existe uma violação de direitos. Esse aluno precisou sair da escola, isso é violação de direitos, o que é muito grave. É preciso fazer algo urgente, não só por professores, direção e alunos, mas por toda a comunidade escolar”, recomenda a psicóloga.

Maria da Penha diz que o amparo para a comunidade escolar estaria no atendimento social e psicológico, garantido por lei, mas não é cumprido. “Um exemplo é a psicologia na escola, temos a lei 13.935 que não é cumprida. O município de São Caetano não regulamentou a lei, logo, a presença de profissionais psicólogos e assistentes sociais nas escolas não é garantida e os problemas vão pipocando”, afirma.

O respeito às diferenças étnicas, sociais e à diversidade devem fazer parte do currículo escolar desde a pré-escola, segundo a psicóloga. “Do primeiro dia de aula, desde a pré-escola, não importa o momento, o importante é que a criança entre na escola e perceba que é um lugar acolhedor a todos. Infelizmente não é o que encontramos, percebemos que em algumas escolas e nas relações entre professores e alunos existem diferenças. Essas diferenças são estruturais; a sociedade faz essa diferença, a mídia faz a diferença e isso entra na escola. A criança, no primeiro dia de aula, quer ter amigos e para ela não importa a cor da pele, ela nem percebe isso. Ela começa a perceber que os amigos possuem diferenças com relação a sua raça e a sua etnia porque isso vem do adulto. A criança percebe que o adulto faz a diferença. O que precisa acontecer é uma modificação social, uma discussão muito maior”, orienta.

Não existe diferença

Para Maria da Penha, o exemplo deve ser dado por pais e professores, senão os conceitos, mesmo dentro do currículo, não vão funcionar. Explica que os alunos veem o professor como espelho. É muito importante que esse trabalho venha da autoridade para que a criança perceba que não existe diferença. “Existe sim uma diferença na aparência, uma criança negra tem de ser valorizada nas suas características, suas capacidades, como uma criança indígena, uma criança oriental também são bonitos e têm suas qualidades, é isso que a escola precisa trabalhar. Não adianta ensinar a igualdade, se vem do professor uma piadinha, uma diferença entre aluno que é bonito e que não é, sobre o cabelo que é liso e é bonito e o cabelo que não é liso. Essas frases que se ouve e são repetidas na escola são formas de racismo. É preciso uma mudança de pensamento dos adultos”, adverte.

Não é a melhor escola

O último episódio de racismo aconteceu no dia 29 de setembro e depois disso Matheus teve anunciada a transferência para outra escola. Para a psicóloga, se a forma com que as instituições tratam o racismo não mudar novos casos podem acontecer. Para a psicóloga, não é apenas em uma escola onde as coisas não vão bem, o problema é social. “A sociedade não vai bem e isso ultrapassou os muros escolares, quando a comunidade não sabe lidar com o racismo e não resolve essas questões, elas ultrapassam os muros da escola. Todos os ambientes onde existem relações sociais precisam serem olhados com atenção para que essas relações não sejam adoecedoras, como foi esse caso do Matheus, é uma relação em que alguém perdeu. Essa não é a escola ideal para o aluno, a escola ideal é onde a pessoa se sente feliz. Me parece que esse menino não era feliz ali e se não o faz feliz não é a melhor escola”, diz.

Ajuda

Para Maria da Penha, a busca pela garantia de direitos deve ser rápida, porém riscos de traumas podem ser evitados. “Conversar em casa sobre o poder da sua raça, da sua etnia, é muito importante, para que as crianças não aceitem serem tratadas diferente, isso já é um grande passo, mas quando a criança recebe esses atravessamentos que vem do outro, ela precisa pedir ajuda. A família deve pedir ajuda, eu acho que a delegacia de polícia é a última coisa, primeiro é buscar ajuda na escola e exigir mudança de comportamento urgentemente, depois buscar a secretaria de educação, ou diretoria de ensino, mas de forma rápida. Não dá para aceitar a escola dizer que vai fazer alguma coisa, isso não é feito e as coisas continuarem acontecendo. A família tem que procurar uma rede de apoio, correr atrás para ver seus direitos garantidos”, completa a psicóloga.

Reunião

A Prefeitura de São Caetano, após a divulgação do ocorrido marcou uma reunião com a família do jovem o Conescs (Conselho Municipal da Comunidade Negra de São Caetano do Sul) e o Grupo Decolonial do Cecape. O objetivo foi ampliar o diálogo sobre as questões apresentadas e pensar estratégias que envolvam a sociedade no combate ao racismo. “É importante destacar que o Grupo Decolonial fornece formação permanente aos nossos professores. Isso não se limita a combater eventuais comportamentos racistas, mas também a promover ativamente uma educação antirracista em nosso sistema educacional”, diz a nota. A Prefeitura também diz que o tema será abordado na iniciativa Escola de Pais, já nesta semana. “Além disso, nesta semana iniciaremos a Escola de Pais. Será um mês de palestras com especialistas em diversos temas. Essas palestras são voltadas às famílias, com a intenção de produzir uma reflexão de educadores e familiares sobre a garantia de direitos de nossas crianças e adolescentes. Reafirmamos nosso compromisso inabalável com uma educação justa, inclusiva e antirracista”, acrescenta.

Prefeituras

O RD também procurou as demais prefeituras da região sobre como tratam o tema racismo, homofobia e diversidade nas suas redes escolares. Apenas São Bernardo, Diadema e Santo André responderam.

São Bernardo informa que garante formação técnica para educadores para lidar com os temas. “Toda a equipe de orientação técnica participa das formações contínuas, com cursos voltados ao enfrentamento da violência contra a criança e adolescente, garantia de direitos da criança e adolescente, educação inclusiva, habilidades sócio emocionais e outras temáticas que sejam pertinentes à atuação técnica na Educação.

Na prática, a equipe de orientação técnica atua em duas frentes, uma delas voltada à formação da equipe escolar a respeito das especificidades multidisciplinares, com foco no acolhimento de pais, alunos e profissionais e em aspectos voltados para relações interpessoais, conteúdos que transversalizam o desenvolvimento infantil e que abordam alunos com deficiência e transtorno do espectro autista e situações de violência contra a criança e adolescente. Na outra frente, a equipe atua com profissionais, pais e alunos, com orientações e intervenções pertinentes às necessidades do aluno no contexto escolar e encaminhamentos a outros serviços sócio assistenciais e de saúde, caso necessários”.

Racismo ou LGBTfobia

Diadema diz que os alunos ou responsáveis, em caso de racismo ou LGBTfobia, devem procurar a direção escolar, coordenação pedagógica e levar ao Núcleo de Educação Étnico Racial da Secretaria, que apurará a situação e adotará as medidas necessárias.”O aluno ou responsável deve procurar a Coordenadoria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (que fica na Rua Almirante Barroso, 264; e-mail: marcia.silveira@diadema.sp.gov.br), e, caso envolva LGBTfobia, a Coordenadoria de Políticas de Cidadania e Diversidades (no mesmo local; e-mail: robson.carvalho@diadema.sp.gov.br e coordenadorias@diadema.sp.gov.br). Essas instâncias vão acionar suas ouvidorias, que acompanham os casos e propõem medidas, como palestras e outras ações educativas. São realizadas, rotineiramente, encontros de formação com servidores das secretarias, inclusive de Educação, sobre racismo e LGBTfobia”.

Santo André diz ter canais de atendimento e além de preparar os profissionais para lidar com o tema. “O município dispõe do Documento Curricular da Rede Municipal de Santo André que norteia as unidades escolares e estabelece diretrizes para o ensino de história, cultura afrobrasileira, africana e indígena na educação infantil e ensino fundamental. Dentre os princípios está o reconhecimento, valorização e afirmação de direito e nesta vertente implica criar condições para que estudantes não vejam menosprezadas suas culturas, religiões e antepassados. As escolas estão orientadas para encaminhamentos, com trabalho preventivo. As famílias insatisfeitas têm o canal da Secretaria de Educação para esclarecimentos, contudo compreendem que há legislações vigentes já prevêm punição para práticas discriminatórias de todas as formas. As escolas contam com serviço dos psicólogos do programa Conviver Bem que abordam temáticas em acordo com a necessidade. A Secretaria de Educação realiza ações voltadas aos profissionais da rede, como palestras, cursos, diálogos pedagógicos, formações continuadas bem como o acompanhamento das ações do trabalho realizado nas unidades escolares”, diz nota do Paço.

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