Longa ‘Il Boemo’ resgata músico checo do século 18

Il Boemo é uma grata surpresa. Aliás, nem bem é surpresa. Fui advertido da sua existência ao ouvir, como de hábito, o tradicional programa de crítica Le Masque et la Plume, da France Inter. Os críticos, de modo geral muito exigentes, colocaram o filme nos cornos da Lua.

Justificável. Obra de época, Il Boemo, cinebio do músico checo Josef Myslivecek (1737-1781), dribla uma armadilha frequente, a do academicismo. Pelo contrário, nada tem de bolorento ou museológico. É cheio de vida, de música, de paixão e rivalidades. Um destaque: o encontro do adulto Myslivecek com Mozart, ainda um menino precoce. O checo toca um tema que está desenvolvendo e, para seu pasmo, assiste ao prodígio desenvolvê-lo e desdobrá-lo ao piano, como se a obra fosse dele.

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Há vários temas encadeados na história de Myslivecek. Um deles, o da vida trágica do artista. Já começa assim, com o músico lutando para sobreviver, enquanto vende relíquias a preço de banana para pagar o aluguel e refeições miseráveis. Depois dessa introdução, a trajetória do músico é reconstituída em flashback. De sua chegada a Veneza, onde pretende estudar e fazer sucesso; onde dá aulas e procura um espaço na sociedade.

Há as relações com a corte e as mulheres. Homme à femmes, Myslivecek envolve-se com várias mulheres, de nobres a cantoras. Tem um grande amor, mas ela é casada.

GENTE INFERIOR

A nobreza trata os artistas como empregados de segunda categoria. Ou mais abaixo ainda. Pode admirar a música, mas coloca o músico no escalão inferior da pirâmide social. Há uma cena interessante (e escatológica) com o rei de Nápoles defecando diante de um pasmo Myslivecek, que é convidado, em seguida, a admirar a excelência das fezes reais.

Em outra sequência, Myslivecek, depois de um concerto bem-sucedido, é visitado pela direção do teatro e avisado de que será substituído por outra estrela – Mozart, no caso. A conversa sinuosa dos diretores, elogiando e ao mesmo tempo avisando que vão dispensá-lo, tudo dito com palavras suaves e implacáveis, lembra o discurso dos executivos de RH de hoje quando vão despedir um velho empregado. É um elo entre passado e presente. Mais um.

Myslivecek foi ainda ferido pelo destino ao contrair sífilis em um bordel napolitano. A doença não tinha cura e os enfermos eram condenados a definhar e enfrentar deformações físicas. Com o rosto devastado, Myslivecek era obrigado a reger e a dar aulas com a face coberta por uma máscara.

A sua música – lírica em especial – é fabulosa. E o diretor tem o bom senso de colocá-la de forma abundante ao longo das 2h23 minutos de duração do filme. Ficamos querendo mais. Myslivecek é um músico a ser redescoberto. E Petr Václav, um cineasta a ser seguido. A trilha sonora de Il Boemo está disponível no Spotify e outros agregadores.

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