Durante a pandemia da covid-19 a bicicleta foi muito utilizada como meio de transporte e lazer, já que houve períodos de isolamento social e muitos tiveram medo de se arriscar no transporte coletivo. Passada a emergência de saúde, o uso da bike caiu bastante e as lojas e bicicletarias, que chegaram a ficar sem produtos para atender a demanda há dois anos, agora estão em crise. A explicação é a de que não há estímulo para o uso da bicicleta, nem para o lazer, nem como meio de transporte.
As bicicletarias, em geral, são negócios de família e não é raro encontrar estabelecimentos que funcionam ininterruptamente por 30 anos ou mais. É o caso da J.F.R.A. que está no mercado há 40 anos. A loja que fica na rua Bruno Spinosa, 340, no bairro da Vila Nogueira, em Diadema (telefone: 4076-2245), é exemplo. Aos 66 anos, o proprietário Joaquim Francisco Ramos de Araújo trabalha com a esposa e o filho, e explica como foi o período mais difícil da pandemia e como está o seu movimento agora. “Na pandemia vendemos muita bicicleta para pessoas irem ao trabalho. Agora o movimento está ruim. Até quem tem bicicleta já não faz a manutenção preventiva”, conta.
Ciclovias falhas
O filho, Wagner de Oliveira Araújo, de 40 anos, aponta outro fator, crescimento do ramo de motocicletas e a preferência do público por esse meio de transporte que relegou à bicicleta apenas a função de equipamento de lazer. O próprio Wagner aproveitou a tendência e montou, na mesma rua, uma oficina de motocicletas. “Falta infraestrutura para o ciclista, ciclovia só dentro dos bairros, que não se interliga com outras não ajuda. Não tem um lugar bom para se pedalar na cidade. Na pandemia o nosso movimento aumentou 400%, agora, mesmo com os preços reduzidos o movimento está fraco. Quanto aos acessórios temos uma concorrência muito grande das vendas online, produtos importados e baratos. Então tem bicicletarias que optaram por vender pela internet com um lucro baixíssimo para poder concorrer”, explica.
Outro exemplo de negócio de família é o caso da Vera Cruz Bike Shopp, na avenida Robert Kennedy, 1583, em São Bernardo (Whatsapp: 4341-8857). O proprietário Roderlei Vicente está no ramo também faz tempo, há 35 anos. Cuida de uma loja e a filha com o genro trabalham em outra loja, também na cidade. Vicente conta que enfrenta uma queda no movimento de clientes de 50%, desde o ano passado e que o motivo não é o preço das bicicletas ou acessórios. “Os preços até caíram, mas não está vendendo, desde a eleição para cá está muito fraco”, diz.
A lugar nenhum
Segundo Vicente, a infraestrutura é culpada da falta de interesse do público pela bicicleta. “Fazem ciclovias e ciclofaixas que levam a lugar nenhum, começa e acaba sem uma integração. Fizeram uma na João Firmino, que termina na Anchieta, isso não ajuda em nada”, aponta. Diz que também faltam ações de educação no trânsito, porque o risco de acidentes entre veículos e bicicletas afasta o público da bike. “Tem de ter educação no trânsito, essa é a chave, as pessoas precisam entender que essa correria insana dos motoristas de carro, de caminhão e de motos não dá certo, só causa acidentes e morte”, opina.
Apesar do movimento em baixa, Roderlei Vicente diz que não pensa em desistir do negócio. O ramo sempre teve altos e baixos, foi nele que sustentou a família. O comerciante também diz que falta incentivo para a formação de jovens para trabalhar no segmento. “Eu fiz Senai em 1984 me formei como ajustador mecânico, mas a garotada de hoje não quer se esforçar, prefere mexer com computador e celular, por isso que aqui estou trabalhando sozinho agora, pois falta pessoal preparado”, completa.
Mário de Souza Cruz é ciclista e pedala diariamente 2h de sua casa em Santo André até o bairro de Santo Amaro, na Capital, trecho que ele faz por vezes em ciclovias, mas em várias partes do trajeto divide espaço com os carros. Conta que hoje, apesar de muitas ciclovias serem mal planejadas e mal conservadas, é melhor do que não ter. Também diz que as pessoas se desmotivam a pedalar por falta de segurança na rua.
Cruz relata que tem muita ciclovia em São Paulo, algumas bem cuidadas e outras mal cuidadas, são boas para os ciclistas, porém tem muita ciclofaixa que começa num lugar e termina em outro nada a ver, uma não se interliga com a outra, não sabe se é falta de planejamento ou falta de verba. “Algumas não têm manutenção, fiscalização é pouquíssima, pego ciclofaixa onde entram motoboys, o que pode causar acidente, os entregadores de lanche que entram na contramão ou encostam em você com a caixa esbarrando em você. Eu acho que a falta de ciclista é pela falta de segurança e de planejamento. Estive na Espanha e Portugal, e pegamos trechos com e sem ciclofaixa, lá existe respeito. Lá é bem cuidado e a gente trafega com segurança porque é bem sinalizada”.diz.
Os comerciantes ouvidos pelo RD e o ciclista dizem que quem pedala muitas vezes negligencia a manutenção preventiva da bicicleta, o que movimentaria o setor e ainda traria mais segurança para o usuário. Além disso, a manutenção preventiva evita a quebra de peças mais caras e prolonga a vida útil do equipamento. “Quando eu não entendia de bike, só levava para arrumar quando dava problema. Quem não usa todo dia não faz manutenção preventiva”, diz o ciclista que tem empresa voltada à organização de passeios de ciclistas, os chamados “pedais”. “Se eu faço dois pedais seguidos, mesmo que minha bicicleta não tenha problemas eu a levo no mecânico para uma revisão. Hoje eu já tenho experiência e é obrigatório fazer. É necessário a bike estar em dia com a manutenção de itens como pneu, freio, cambio e alinhamento. Se ele vai deixando, quando o problema aparece ele pode até sofrer um acidente porque a manutenção não está em dia”, afirma.
Cruz admite que os preços no e-commerce são atraentes. “Isso é complicado, na internet você pode encontrar uma pastilha de freio por R$ 10 e na loja física o mesmo produto custa R$ 30. Se você tem um conhecimento para fazer tudo bem, mas se não tem vai ter que procurar o mecânico e o custo pode ser maior”, afirma.
O ciclista diz que faltam incentivos governamentais e fiscais para que as bicicletarias sigam prestem serviços, vendam e gerem emprego e renda. “O lojista tem de vender peças, bikes e serviços bem mais caro. Tenho um parceiro, que está no e-commerce e está na loja física, atende os dois públicos, então se não vende de um lado vende do outro, mas nem todo o lojista pode fazer isso. É preciso de decisões que parte de quem está no poder”, completa.