ABC - segunda-feira , 29 de abril de 2024

Medidas de nova premiê britânica causam crise econômica e ameaçam seu governo

A primeira-ministra Liz Truss, do Reino Unido, fez campanha dentro do Partido Conservador para ser escolhida a líder do governo como candidata cortadora de impostos e defensora das empresas e empresários. Assim ela venceu a corrida para substituir seu antecessor, Boris Johnson. Agora ela entregou essa agenda de livre mercado – e isso pode afundar seu governo.

Quatro dias depois que os cortes de impostos e os planos de desregulamentação de Truss surpreenderam os mercados financeiros e jogaram a libra britânica em queda livre, o futuro político da primeira-ministra também parece cada vez mais precário.

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Seu Partido Conservador está dominado pela ansiedade, com uma nova pesquisa mostrando que o Partido Trabalhista, da oposição assumiu uma vantagem de 17 pontos porcentuais sobre os conservadores – a primeira vez que isso acontece em vinte anos.

Os trabalhistas estão aproveitando o momento para se apresentar como o partido da responsabilidade fiscal. Com alguns especialistas prevendo que a libra pode cair para a paridade com o dólar pela primeira vez desde o Brexit, economistas e analistas políticos disseram que a incerteza sobre o caminho econômico do Reino Unido continuará pairando sobre os mercados e o governo de Truss.

“É perfeitamente possível que ela seja substituída antes da próxima eleição”, disse Tim Bale, professor de política da Universidade Queen Mary de Londres, especialista no Partido Conservador. “Seria muito, muito difícil conduzir uma disputa de lideranças novamente, mas eu não descartaria isso no atual cenário”.

Que Truss se encontre nesta situação tão cedo depois de assumir o cargo é resultado do momento estranho para executar suas propostas radicais. Cortar impostos em um momento em que o Reino Unido tem uma inflação de quase dois dígitos pela primeira vez em décadas, quando o banco central britânico e de outros lugares estão aumentando as taxas de juros, é mais do que uma exceção econômica.

Mas o governo agravou o choque na sexta-feira passada, 23, quando o chanceler do Tesouro (o ministro da Economia deles), Kwasi Kwarteng, anunciou inesperadamente que o governo também aboliria a alíquota máxima de imposto de renda de 45% aplicada àqueles que ganham mais de 150 mil libras, ou cerca de R$ 869 mil por ano.

A proposta de Kwarteng não foi submetida ao escrutínio que um orçamento do governo normalmente recebe, aprofundando os temores de que os cortes de impostos, sem os correspondentes cortes de gastos, acabem com as finanças públicas do Reino Unido.

Na terça-feira, 27, a libra se estabilizou brevemente em relação ao dólar, assim como as taxas de 10 anos dos títulos do governo britânico (o quanto o mercado paga para emprestar dinheiro a um governo por meio da compra dos seus títulos, que havia disparado depois do anúncio). Mas ambas voltaram a subir no final do dia, depois que um alto funcionário do Banco da Inglaterra sinalizou um aumento agressivo nas taxas de juros.

O Fundo Monetário Internacional, que emprestou dinheiro para socorrer o Reino Unido em 1976, aumentou a ansiedade dos mercados ao pedir para o governo britânico reconsiderar os cortes de impostos. Em um comunicado, disse que eles exacerbariam a desigualdade e levariam a política fiscal e a política monetária a trabalhar com “propósitos conflitantes”, ou seja: o governo vai se endividar, a inflação aumentar, e o Banco Central teria de aumentar juros pra frear o descontrole.

O espectro de taxas de juros mais altas já estava causando o colapso do mercado imobiliário. Dois grandes credores hipotecários britânicos anunciaram que deixariam de oferecer novos empréstimos por causa da volatilidade do mercado. Taxas mais altas de juros prejudicarão centenas de milhares de proprietários de imóveis que precisam refinanciar hipotecas de prazo fixo – proprietários de imóveis, observaram analistas, que são a base do Partido Conservador.

“Não é como nos EUA, onde as pessoas têm hipotecas de 30 anos”, disse Jonathan Portes, professor de economia e políticas públicas do King’s College London.

Estima-se que 63% dos detentores de hipotecas tenham empréstimos de taxa flutuante, que sobem ou baixam de acordo com o aumento da taxa de juros nacional, ou empréstimos que expirarão nos próximos dois anos. O declínio acentuado da libra significa que as taxas de juros terão que subir ainda mais do que teriam apenas para conter a inflação.

Para Jonathan Portes, do King’s College, “Truss poderia ter adotado uma abordagem mais cautelosa: lançando medidas para permitir mais construções residenciais e aumento da oferta de imóveis e alterando as complicadas regras de planejamento residencial britânicas, que são obstáculos ao crescimento econômico”. Então, quando as pressões inflacionárias diminuíssem, o governo poderia ter cortado os impostos.

Mas isso nunca esteve nas cartas, disse o professor Portes, porque Truss e Kwarteng são “evangelistas do livre mercado” que acreditam ardentemente que o corte de impostos irá reacender o crescimento. E também porque eles têm pouco mais de dois anos para reverter a crise econômica antes de enfrentarem uma eleição geral.

“Isso é choque e pavor”, disse ele, em referência à tática militar de usar força avassaladora para dominar um campo de batalha rapidamente. “Truss, Kwarteng e as pessoas ao seu redor acharam que tinham de agir rapidamente. Quanto mais eles esperassem, mais a resistência aumentaria.”

Durante a campanha, Truss se inspirou em Margaret Thatcher, que também anunciou uma série de medidas de livre mercado assim que assumiu o cargo de primeira-ministra e passou por alguns anos turbulentos. Ao contrário de Truss, porém, Thatcher se preocupava em conter a inflação e fortalecer as finanças públicas; ela até aumentou impostos durante uma recessão em 1981 antes de reduzi-los em anos posteriores.

Mas Thatcher chegou depois de uma vitória eleitoral sobre um governo trabalhista exaurido, o que lhe deu mais tempo para enfrentar a crise e para que suas medidas desreguladora entrassem em vigor. Ela também conseguiu uma carona de popularidade depois que o Reino Unido derrotou a Argentina na Guerra das Malvinas em 1982, que desencadeou uma onda de patriotismo.

“Em 1979, Thatcher pensava que só precisaria dar aos eleitores algo que eles gostassem em 1982”, disse Charles Moore, ex-editor do The Daily Telegraph que escreveu uma biografia em três volumes da ex-primeira-ministra. “Liz Truss não tem tanto tempo.”

A melhor analogia com Truss, disse ele, é Ronald Reagan, com sua ênfase em cortes de impostos, bem como sua relativa falta de preocupação com seus efeitos sobre os déficits públicos. Como Thatcher, Reagan enfrentou uma recessão antes que os Estados Unidos começassem a crescer novamente em 1983. E, como ela, ele teve uma proteção antes de enfrentar os eleitores.

Truss, por outro lado, assumiu o cargo após 12 anos de governos liderados por conservadores e três anos do mandato de Johnson. Ela terá que convocar uma eleição até o início de 2025, no mais tardar. O Partido Trabalhista, que estava dividido por causa do Brexit e por disputas internas, foi galvanizado pelo início caótico do novo governo, em particular pelo plano de Kwarteng de cortar a alíquota máxima, o que permitiu aos trabalhistas estabelecer um contraste claro em questões de igualdade econômica.

Falando na conferência anual do partido em Liverpool na terça-feira, o líder trabalhista, Keir Starmer, declarou que os conservadores “dizem que não acreditam em redistribuição. Mas eles fazem – tiram dos pobres e dão aos ricos.”

A liderança trabalhista de 17 pontos porcentuais em uma nova pesquisa da empresa de pesquisa de mercado YouGov é a maior vantagem que em sobre os conservadores em duas décadas. Os conservadores conquistaram o apoio de apenas 28% dos entrevistados, levantando questões sobre sua capacidade de manter seu domínio do Parlamento, de acordo com o professor Bale.

Esse cenário político turbulento só aumenta o desafio enfrentado por Truss. Para que os cortes de impostos tenham um dos efeitos desejados – incentivar as empresas a investir mais -, os economistas disseram que as empresas precisariam de alguma garantia de que a política não será revertida por um novo governo em dois anos.

“Este é um governo muito inexperiente, que se arrisca em uma situação em que o Partido Trabalhista é forte favorito na próxima eleição, sem precisar se inclinar muito para a esquerda”, disse Kenneth Rogoff, professor de economia em Harvard. “Se alguém acredita que os cortes de impostos serão revertidos sob os trabalhistas, e que há uma grande chance do próximo governo ser trabalhista, por que eles fariam um investimento de longo prazo?”

O Reino Unido, disse o professor Rogoff, também estava remando contra forças muito maiores na economia global. Após anos de inflação baixa e taxas de juros extremamente baixas, a enxurrada de gastos públicos por causa da pandemia de coronavírus trouxe de volta o flagelo da inflação e uma mudança para taxas mais altas de juros. “O veredicto quase certamente será que os governos tomaram emprestado demais e deveriam ter aumentado mais os impostos sobre os ricos”, disse ele.

No curto prazo, Truss provavelmente se encontrará cada vez mais em desacordo com o Banco da Inglaterra, que deve aumentar as taxas de juros já em sua próxima reunião em novembro. Na terça-feira, seu economista-chefe, Huw Pill, disse que as novas políticas fiscais do governo exigiriam uma “resposta significativa da política monetária”.

Adam Posen, um economista americano que já atuou no comitê de política monetária do Banco da Inglaterra, disse: “As políticas do governo Truss não são apenas escandalosamente irresponsáveis, mas eles parecem não entender que o Banco Central tem que responder à essas políticas aumentando muito os juros”.

Posen, que é presidente do Instituto Peterson de Economia Internacional, comparou a perda de credibilidade do Reino Unido nos mercados à da que ocorreu no próprio país e com outros europeus na década de 1970, e dos países latino-americanos na década de 1980. O melhor caminho, disse ele, seria o governo reverter sua política fiscal, embora ele tenha dito que Truss e Kwarteng pareciam “voluntariamente comprometidos com isso”.

Certamente, eles não deram nenhuma indicação de que planejam recuar. Na terça-feira, Kwarteng disse a banqueiros e gestores de ativos que estava confiante de que o plano do governo funcionaria.

Após a turbulência que levou à deposição de Boris Johnson em julho e a longa disputa para substituí-lo, poucos no Partido Conservador têm estômago para agir contra Truss agora.

Mas analistas observam que a nova primeira-ministra tem um reservatório limitado de apoio entre os legisladores. Apenas um terço deles votou nela na votação final contra seu oponente principal, Rishi Sunak, e ela ganhou a votação subsequente entre os membros do partido por uma margem pequena.

Tomando nota da nova pesquisa do YouGov, Huw Merriman, um legislador conservador, pode ter falado por muitos de seus colegas quando escreveu em sua conta no Twitter: “Aqueles de nós que apoiaram Rishi Sunak perderam, mas esta pesquisa sugere que o vencedor está perdendo nossos eleitores com políticas contra as quais advertimos”.

“Para o bem de nosso país e a subsistência de todos em nosso país”, acrescentou, “ainda espero estar errado”. (COM AGÊNCIAS INTERNACIONAIS)

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