A classe artística sofre com falta de espaço nas políticas públicas em todo País. Durante a pandemia, os artistas também foram fortemente impactados com o fechamento dos locais de trabalho e a retomada das atividades tem sido lenta para o setor. Em São Bernardo, artistas falam sobre a preocupação com a descaracterização das bibliotecas e a falta de diálogo e leis de incentivo ao setor, fatos que dificultam e desvalorizam a cultura da cidade.
O escritor Manuel Filho teve a vida transformada pela biblioteca municipal Monteiro Lobato, onde nasceu a paixão pela literatura. “A minha carteirinha é a número um. Na minha escola não havia biblioteca e livros disponíveis, foi então que descobri que do outro lado da rua havia uma biblioteca. A minha vida tem uma relação muito forte com esse equipamento”, conta. Dos sete aos 10 anos, o autor saia da escola e ia direto para biblioteca, todos os dias.
Por conta da relação com a literatura, Manuel Filho acompanha de perto as políticas públicas realizadas com as bibliotecas da cidade, mas não tem visto com bons olhos as atuais iniciativas e aponta que há um desmonte e descaracterização dos locais. “Hoje temos uma administração que parece não ter apreço pelas bibliotecas. Por exemplo, a Guimarães Rosa, no bairro Assunção, era um centro cultural muito bonito e possuía um espaço infantil totalmente adequado aos pequenos, com móveis e banheiros planejados para crianças. Esse espaço foi desmontado e agregado ao espaço comum aos adultos”, aponta.
Manuel Filho reclama, ainda, da alteração do estacionamento, que era livre e foi integrado à Zona Azul. “Essa foi a primeira biblioteca a ser descaracterizada. Outra unidade é a Manuel Bandeira, inaugurada em 1979. O local teve parte cedida à Secretaria de Esportes e terá um espaço dedicado aos jogos eletrônicos. A biblioteca perde espaço e a parte de games, para funcionar, é preciso que se invista em equipamentos modernos, para não se tornar obsoleto rapidamente”, afirma o autor.
Outro ponto de crítica é a transferência da biblioteca Malba Tahan para um outro prédio em frente ao Teatro Lauro Gomes. “O prédio que sediava a biblioteca foi repassado para abrigar o Centro de Audiovisual e parte do acervo da biblioteca foi distribuído a outras unidades. Entende-se como um desmonte, as bibliotecas devem ser preservadas, modernizadas e utilizadas como espaço para pequenas apresentações culturais, como contação de histórias, peças de teatro e apresentações de músicas”, defende ao apontar que há muitos artistas e interessados em fazer atividades. “Mas não há interesse público e diálogo”, diz.
Escritor há 17 anos, Manuel Filho é autor de uma das obras que integram a coleção Vagalume, o livro O Ouro do Fantasma, e acredita que as bibliotecas são espaços essenciais para transformar a vida das pessoas. É por meio delas que moradores, principalmente os que vivem em situação de vulnerabilidade, podem ter acesso à literatura. “O livro é um bem precioso. Há histórias de pessoas que não têm acesso a nada e encontram livro no lixo e levam para casa, ou que cresceram acompanhando a mãe diarista e admirava a estante de livros. As bibliotecas públicas garantem esse acesso”, defende.
Manuel Filho aponta a necessidade de manter os espaços e fomentar com a compra de novos acervos, a manutenção dos livros já existentes, bem como pensar em atividades que atraiam novos públicos. “O perfil do público mudou, é preciso acompanhar e trazer obras mais atuais para despertar interesse”, diz.
Músicos apontam a falta de diálogo
O compositor e produtor musical MC Eduardo Xavier da Silva, de 39 anos, trabalha com a vertente do rap. Morador de São Bernardo, Dukes acompanha de perto a cena cultural da cidade, e sua principal crítica é a falta de diálogo do poder público com artistas do rap e da cultura urbana.
Estigmatizado, o rap tem perdido espaço na cidade, mas encontra na união dos artistas a força para manter atividades. “Quem está de fora acha que são um monte de maloqueiros, mas são jovens inseridos em uma cultura. São Bernardo é considerado um dos berços. Há 10 anos tínhamos mais apoio e atenção, o pessoal era chamado para conversar com o poder público. Hoje existe um desânimo, um afastamento, o que faz com que a administração perca credibilidade diante de um público expressivo”, afirma Dukes.
Um das demandas apontadas pelo compositor é a falta de apoio efetivo com a Batalha da Matrix, que não consegue parceria com a Prefeitura para obter mais estrutura e organização. “É uma das maiores batalhas do Brasil e acontece toda terça-feira, das 19h às 22h. Já pedimos estrutura de banheiro, por exemplo, e apoio da GCM, mas a guarda atua de forma truculenta”, diz. A Batalha da Matrix reúne mais de mil pessoas em cada edição, na praça da Matriz.
Coletivo de músicos se unem para fomentar o rock
Formado em 2015, o Coletivo Rock ABC reúne bandas, produtores, donos de casa de shows, bares, estúdios, zines/webzines, técnicos, fotógrafos, público, entre outros da vertente, para discutir ações de fomento ao rock na região.
Nas reuniões semanais, a participação dos membros varia entre 30 e 100 integrantes, enquanto os eventos realizados pelo Coletivo atingem cerca de 5 mil pessoas e outras 200 trabalham com venda de produtos, staff, montagem de eventos, entre outras atividades.
O grupo conta que participou ativamente da discussão do sistema municipal de Cultura, iniciado em 2015, mas o projeto não chegou a ser implementado. “Ficamos um bom tempo sem conseguir dialogar com a Secretaria de Cultura. Mas após alguns anos de hiato, retomamos o diálogo e estamos concretizando algumas parcerias e ações em conjunto com o poder público”, afirma Chrys Clenched, ao representar o grupo.
Mesmo com diálogo aberto com a Prefeitura, o Coletivo afirma que a conversa deveria ser ampliada para uma discussão mais aberta com a população sobre outros pontos de atuação. “É preciso conversar com a população que utiliza os espaços públicos e que participa dos projetos ou deles é diretamente interessada, como em pontos polêmicos, como a transferência do CAV”, afirmam os membros. “Ou com a população que usa as bibliotecas, que vêem com tristeza os espaços fechados. Num país tão carente de referências e conhecimento, os espaços dedicados à leitura e ao conhecimento são fundamentais”, diz.
Para o Coletivo, é por meio de debate aberto que é possível entender as demandas dos artistas e da população que utiliza os espaços.
Fomento à cultura é um problema nacional
O ator e cineasta Diaulas Ullysses vê a falta de incentivos para o desenvolvimento da cultura como uma problema em todo País. “Não há apoio aos artistas. O presidente destruiu toda cadeia produtiva do cinema, que já vinha afundando há anos. O desmonte teve início com a exclusão do Ministério da Cultura”, afirma.
Para Ullysses, as leis de incentivos perdem força a cada esfera de poder. “O Estado às vezes ajuda e tem iniciativas como o Pontos MIS, que leva programação a diversos municípios. Mas, na esfera municipal, não vemos editais para fomento da Cultura, principalmente do cinema”, aponta o cineasta.
Além da falta de incentivos, Ullysses fala sobre a falta de diálogo e transparência, como a utilização da verba do aluguel do Pavilhão Vera Cruz, concedido para gravações do programa MasterChef. “Seria importante sabermos se a verba adquirida pela locação deste espaço cultural será destinada ao fomento da cultura com compras de novos equipamentos para o Centro de Audiovisual ou com a abertura de editais”, diz.
O cineasta faz parte do grupo Fórum Aberto de Cultura e Artes, que reúne artistas de São Bernardo para dialogar com o poder público e participar da construção de políticas públicas culturais. É unânime entre os artistas o apelo por um debate mais aberto e acolhedor, bem como estratégias direcionadas a agentes culturais e população. “A cultura é item básico na nossa vida. Não entendo o motivo das pessoas falarem tão mal da cultura, se durante a pandemia foi ela que ajudou as pessoas a permanecerem em casa, consumindo filmes, séries e internet”, defende.
Para Manuel Filho, a cultura faz parte da vida das pessoas, mesmo que não percebam. “Está nas roupas que você usa, no piso da sua casa, na televisão, no jogo de videogame. Tudo que nós usamos saiu das mãos de um artista, designer, arquiteto. A cultura está intimamente ligada à vida das pessoas”, defende.
Prefeitura responde
Em nota, a Prefeitura de São Bernardo informa que está em processo de atualização do sistema municipal de políticas culturais do município. Até dia 29 de julho, a população poderá contribuir na construção de diagnóstico que servirá como base para a implantação das ações públicas a partir de 2023. O marco inicial da retomada das discussões e processo de implementação do sistema será em 21 de agosto, a partir das 10h, no Teatro Elis Regina, por meio de debate público com a sociedade civil. Após esse processo, serão eleitos novos membros do conselho na cidade.
Em relação às bibliotecas, a Prefeitura informa que os equipamentos passam por reorganização para melhorar o atendimento, ampliar o incentivo e a democratização da leitura, e tornar os espaços culturais mais atrativos à comunidade. O espaço da biblioteca Malba Tahan passa por reorganização para receber o Centro de Audiovisual, a ser finalizada nos próximos meses. “A ideia é que os títulos da biblioteca Malba Tahan sejam incorporados aos demais equipamentos culturais do município para ampliar o acesso da população. A biblioteca Monteiro Lobato incorporou a Gibiteca e Espaço Braile”, continua a nota.
No caso da Biblioteca Manuel Bandeira, o equipamento passa por processo de reorganização para contar, também, com um centro de referência em jogos eletrônicos, fruto de parceria entre as secretarias de esportes e lazer e cultura e juventude, afirma a Prefeitura.