
Nos últimos cinco anos houve um aumento substancial de matrículas de crianças e adolescentes diagnosticados no transtorno do espectro autista (TEA) em escolas regulares no Brasil, mas, neste Dia Internacional de Conscientização do Autismo (2/4), a percepção é de que a luta pela inclusão escolar ainda engatinha. Apesar da maior presença, os principais desafios persistem, como a melhora na formação de professores, a flexibilização de materiais e a oferta de recursos humanos para o auxílio na sala de aula. Isso sem falar na negativa ou limitação de matrículas, medidas que ainda ocorrem na rede privada, apesar de ilegais.
Segundo o último censo escolar, mais de 294,3 mil alunos com autismo cursaram os ensinos infantil, fundamental ou médio das redes pública e privada em 2021. A alta é de 280% se comparada a 2017, quando havia puco mais de 77,1 mil. Números que chamam a atenção, mas, segundo educadores e terapeutas, representam apenas uma parcela do universo que deveria frequentar a sala de aula – No Brasil, seriam mais de 2 milhões de pessoas, segundo estimativas.
Se ainda se percebe problemas no acesso, na aprendizagem não é diferente. A máxima de que cada aluno é individual e, por isso, deve ter suas especificidades levadas em conta desde o primeiro dia de aula deve ser elevada à última potência no caso dos autistas, que são diferentes uns dos outros. “Conhecer as características de cada um é essencial. Nem todos dentro da mesma especificidade são beneficiados pela mesma estratégia. Inclusão envolve diversificar estratégias e não repetir modelos”, diz o administrador de empresas Rodrigo Hübner Mendes, que se especializou em diversidade e fundou um instituto dedicado ao tema que leva seu nome.
Especialização, aliás, é palavra-chave quando o assunto é educação inclusiva. Segundo a psicóloga Salete Regiane Monteiro Afonso, que é mestre em educação e trabalha na área há mais de 20 anos, o trabalho não pode ser atribuído apenas à professora regente da sala. “O atendimento educacional especializado é um direito dos alunos com deficiência. E é um serviço que deve perpassar todas as modalidades de ensino, do infantil ao superior e profissionalizante e atuar de forma colaborativa.”afirma Salete e explica que esse professor especializado é quem deve fazer a ponte com os demais professores da escola e auxiliar na adaptação dos materiais, na forma de apresentar o conteúdo aos estudantes autistas e, quando recomendado, com aula no contraturno, nas chamadas salas de recursos.
Responsável pelo espaço na escola municipal de ensino fundamental (Emef) Adolpho Otto de Laet, a professora Ivana Tavares explica que a sala de recursos oferece maior variedade de equipamentos que podem ajudar na aprendizagem, como brinquedos educativos e materiais de diferentes texturas e cores. “Devemos ter um olhar para as especificidades. Não existe um algoritmo que sirva a todos, sabe? A inclusão passa por respeitar o tempo de cada um. Aqui trabalhamos a adaptação e flexibilização do conteúdo. Às vezes, uma pequena mudança na forma de apresentar a atividade já traz resultado”, diz.
Em sala, na segunda-feira, Ivana usava ilustrações para ajudar Diogo Gonçalves Araújo, de 6 anos, a compreender a diferença entre figuras grandes e pequenas, entre o maior e o menor. Ao lado dele, na sala de aula regular, a professora contava também com a ajuda dos demais alunos na tarefa. Já na sala vizinha, Hugo Monteiro, de 7 anos, fazia a lição passada na lousa pela professora ao lado da estagiária Simone Moraes, de 35, que o auxilia na rotina de atividades. “A convivência com os pares é essencial para o desenvolvimento dos alunos com deficiência. A questão do espelhamento é muito importante nesse processo. Percebemos os avanços no dia a dia”, diz Ivana, que afirma “tirar” os estudantes da sala regular, para passar um tempo fora da classe, só mesmo quando necessário.
De acordo com o grau de suporte (atuala nomenclatura para definir os níveis de cada um), autistas podem ter dificuldade em permanecer sentados ou mesmo dentro da sala e “escapes” são essenciais para que se organizem.
Parceria
Outra medida prática considerada essencial é integrar a escola à equipe de terapia do aluno, quando dispõe de acompanhamento multidisciplinar – geralmente psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e, de acordo com as necessidades, também um fisioterapeuta. “O psicólogo, por exemplo, ajuda a professora a ler as questões comportamentais do aluno com TEA, especialmente quando ele não é oral, auxilia ainda na montagem de uma rotina de atividades visual que faça o estudante compreender a sequência”, ressalta Salete, que também destaca a importância de a escola receber dicas de um terapeuta ocupacional. “Autistas são muito sensoriais. Fatalmente uma questão sensorial mal resolvida trará um padrão comportamental nem sempre funcional. E uma orientação profissional às vezes pode ajudar a evitar essa situação.”, afirma.
Mas, mesmo com consenso sobre os resultados do trabalho conjunto entre educação e saúde, muitas escolas particulares são resistentes em receber essa ajuda. O receio é de que o profissional de fora interfira no currículo definido ou identifique falhas na inclusão oferecida. “Recentemente tentei agendar uma observação de um paciente na sala de aula e no intervalo, sem sucesso. Ele tem estado muito agitado, com o comportamento de se morder e essa observação me ajudaria a propor o que chamamos de “dieta sensorial” para ele na escola, a fim de tentar reduzir esses comportamentos. Mas me disseram que eu iria atrapalhar o andamento da sala por já haver uma auxiliar no espaço. Reuniões online são geralmente mais bem recebidas”, diz Thalita Sanchez, que é terapeuta ocupacional.
Diretora da Emef Adolpho Otto de Laet, Ana Paula Fortes diz que as escolas, públicas ou privadas, precisam entender que a parceria é produtiva e não interfere na autonomia da escola. “A gente não quer só matrícula e permanência. A gente quer aprendizagem. Inclusão é isso, e compartilhar experiências ajuda no processo de compreensão das necessidades daquele aluno. A escola tem que ter as portas abertas, agregar profissionais e não excluir quem quer que seja”, ressalta.
Recurso Humano
Quem tem filho autista ou com qualquer outro tipo de deficiência que impeça a autonomia para atividades simples, como ir ao banheiro ou segurar o lápis, relata preocupação da porta da escola para dentro. Os motivos são óbvios: na ausência dos pais, alguém precisa assumir o papel de cuidador. Mas, neste aspecto, o número de profissionais de apoio não acompanha a evolução observada no total de matrículas.
Na rede estadual, por exemplo, há cerca de 5,5 mil profissionais de apoio no autocuidado (responsável por prestar assistência com locomoção, higiene e alimentação) para um universo de 68 mil alunos com deficiência – desses, 15,5 mil estão dentro do TEA. Não são todos os que precisam, mas a sua ausência pode impedir que alguns frequentem a escola.
O diretor do Centro de Apoio Pedagógico (CAPE) do Estado, Jefferson de Paulo, reconhece que há uma fila de espera nessa área e afirma que, a partir de 2023, o governo vai incrementar essa rede de auxílio, com a contratação de profissionais de apoio dentro das salas – hoje, quando há oferta, é só dos cuidadores.
Organizada por meio de um documento orientador publicado somente em 2011, a política de educação especial do Estado promete um salto no próximo ano com a ampliação de salas de recursos nas unidades da rede. “Ela era fixa em uma escola só de determinada região. Depois, virou itinerante e agora a ideia é utilizar espaços ociosos de cada escola para isso. Elas serão, portanto, espalhadas pelas diretorias de ensino e não mais concentradas”, diz. Com mais salas, a promessa é de contratação de mais professores especialistas – hoje, são 2.385, sendo 342 voltados exclusivamente para o atendimento de autistas.
A rede estadual tem mais de 5 mil escolas e ainda matricula crianças e adolescentes com TEA em instituições particulares especiais. Hoje, são 2.814 estudantes nessa situação, que, segundo educadores, deve representar uma exceção. O censo escolar de 2021, no entanto, apontou quase 97 mil alunos com deficiência em salas ou escolas especiais.
Mais avançada, a inclusão escolar de São Paulo já conta com estagiários de pedagogia dentro das salas para atuar diretamente com alunos com deficiência, mas não atende toda a demanda. Há 853 vagas abertas na rede, que possui 20 mil estudantes com deficiência, sendo 6 mil autistas.