A expectativa para 2020 era alta no setor aéreo. O presidente da Gol, Paulo Kakinoff, previa que seria o melhor ano para as empresas desde 2010. Com a saída da Avianca Brasil do mercado e a consequente redução da concorrência, as companhias tinham elevado os preços das passagens em 2019 e viam a situação de seus caixas melhorar. A Azul prometia elevar a oferta em 20%, enquanto Gol e Latam, entre 6% e 9%. Mas não poderia ser mais diferente do que aconteceu. Com a covid-19 e o distanciamento social, o setor teve o pior ano de sua história, com uma queda de demanda que chegou a 94,5% no pior momento.
“No pré-covid, as coisas estavam indo super bem. Os voos estavam cheios. Seria um ano recorde para nós. Aí, de repente, tudo parou”, lembra o presidente da Azul, John Rodgerson.
A paralisação dos voos foi global e o setor acabou sendo um dos mais atingidos pela crise do coronavírus. O impacto foi tão profundo que, rapidamente, governos passaram a resgatar empresas aéreas privadas. Nos Estados Unidos, inicialmente, US$ 25 bilhões foram destinados às companhias do setor – mais US$ 15 bilhões foram aprovados no fim do ano. Na Alemanha, € 9 bilhões socorreram a Lufthansa.
Por aqui, as discussões por uma ajuda estatal foram travadas com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BDNES) e fracassaram. O modelo proposto pelo banco, que financiaria 60% do empréstimo – 10% deveriam vir de um sindicato de bancos e 30%, levantados no mercado – foi considerado caro e ineficiente pelas companhias.
Isso porque os títulos das empresas já são negociados hoje no mercado. As companhias teriam, portanto, de oferecer juros mais elevados para essa nova dívida se tornar atraente. A esse preço mais alto, bancos privados poderiam fornecer o crédito.
A saída encontrada por Gol e Azul acabou sendo recorrer ao mercado financeiro. Já a Latam entrou em recuperação judicial (chapter 11) nos EUA.
Além do pedido de recuperação em Nova York, a Latam adotou outra saída inesperada e fechou uma parceria de “code share” com a Azul para as empresas realizarem voos de forma conjunta.
Até o ano anterior, as companhias viviam disputa acirrada pelas autorizações de pouso e decolagem no aeroporto de Congonhas (SP) deixadas pela Avianca Brasil, que havia falido. A briga levara os presidentes das empresas a trocarem acusações publicamente e ainda fez com que a Azul deixasse a Abear, a entidade que representa o setor.
“Não consigo imaginar, e duvido que a Azul imaginasse, um ‘code share’ entre Latam e Azul se não estivéssemos em uma crise como essa. Mas, neste momento, faz sentido, porque tanto eles como nós queremos vender mais e aumentar a receita. Se uma forma de elevar a receita é vender um voo operado por eles, tudo bem”, diz Jerome Cadier, presidente da Latam no Brasil.
A parceria surgiu após uma reunião virtual de relacionamento entre o presidente da Azul, John Rodgerson, e o presidente do grupo Latam, Roberto Alvo, que havia assumido o cargo em abril, no meio da crise.
O acordo entre as empresas garantiu a sobrevivência de algumas rotas que poderiam desaparecer por causa da queda da demanda. Mas não de todas elas.
“A crise cria uma deseconomia de escala. Voos que tinham um certo número de passageiros acabam não sendo mais viáveis. As empresas vão sair menores depois disso tudo. O mercado não vai se recuperar totalmente”, diz André Castellini, sócio da consultoria Bain & Company e especialista no setor.
Segundo a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), o total de passageiros no mercado doméstico em outubro era metade do registrado um ano antes. Castellini prevê que o número só volte ao patamar anterior à crise em junho de 2023.
Segmento corporativo
No mercado internacional, que hoje se aproxima dos 15% do que tinha em dezembro de 2019, a recuperação total só deve ocorrer daqui a quatro anos, estima o consultor. Já para o segmento corporativo, que paga as tarifas mais caras e é uma importante fonte de receita para as empresas, não é possível nem fazer previsões concretas.
“Entre 25% e 35% da demanda de negócios deve acabar porque o setor vai perder uma parte não desprezível da demanda no pós-pandemia por causa das soluções de videoconferência. Mas esse número ainda é impreciso”, acrescenta Castellini.
Diante desse cenário e das incertezas, os presidentes das companhias aéreas afirmam não poder cravar que o pior ficou para trás com o fim de 2020.
Apesar de sentirem uma recuperação mais sólida na demanda desde setembro, destacam que não respirarão tranquilos enquanto a população não estiver vacinada e dizem, ainda, que a saída dessa crise pode ser tão complexa quanto o início dela.
A saída da crise não será óbvia’, diz diretoria Latam
Era fim de fevereiro quando voos da Latam que saíam de São Paulo com destino a Milão, na Itália, começaram a esvaziar. Não é que os passageiros desmarcavam suas viagens, eles simplesmente não apareciam na hora do embarque, muitos deles chegavam a fazer o check-in e desistiam pouco antes de o voo sair.
Com a explosão de casos de covid no norte da Itália, eles acabavam mudando de ideia em cima da hora e abrindo mão da viagem.
“Lembro que teve um fim de semana em que olhei o ‘no show’ (termo usado para os passageiros que não se apresentam no embarque) e tinha batido 40%”, recorda o presidente da Latam no Brasil, Jerome Cadier. Naquele mesmo fim de semana, voos entre Nova York e Milão foram suspensos porque tripulantes da American Airlines se recusavam a viajar para a Itália.
Cadier lembra que, no início da crise, em fóruns que reuniam o setor, ele era visto como “terrorista”, porque costumava dizer que seriam necessários anos para as empresas se restabelecerem, enquanto muitos apostavam que em poucos meses a situação estaria resolvida. A expectativa “pessimista” do executivo não era à toa.
Como cerca de 50% da operação da Latam era internacional, a companhia seria a mais impactada entre as que atuam no mercado doméstico. Além de reduzir a jornada e o salário dos tripulantes, a empresa começou a estacionar a frota – o que envolve uma série de procedimentos para reduzir gastos com manutenção.
Em recuperação judicial desde meados do ano, a empresa espera sair do processo até o fim de 2021, quando deverá ter conseguido refinanciar o empréstimo de US$ 2,4 bilhões que conseguiu este ano. Apesar da melhora na demanda, a empresa ainda tem um grande entrave pela frente.
Ela pretende reduzir o salário dos tripulantes de forma permanente e, como não consegue chegar a um acordo com o sindicato, o assunto está sendo mediado pelo Tribunal Superior do Trabalho.
Em meio à crise, já demitiu 2,7 mil tripulantes e outros 3,8 mil funcionários. Também entregou seis andares de um prédio que alugava em São Paulo.
Os 900 funcionários que atuavam no local foram divididos entre os escritórios no aeroporto de Congonhas e centro de treinamento. “A entrada na crise foi violenta, mas a saída também não será óbvia.”
‘Espero que o pior do deserto tenha passado’, diz diretoria da Gol
Duas semanas antes do carnaval, a diretoria da Gol se reuniu em um auditório na sede da empresa, ao lado do aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Sentados em cadeiras iguais a assentos de avião, os executivos começaram a se preparar para atravessar o deserto, como chamaram, então, a crise da covid-19.
“Nessa reunião, que ficou histórica para nós, a figura que adotamos e que se mostrou acertada foi a de que iniciaríamos a travessia de um deserto, cuja extensão e temperatura eram imprevisíveis e, como acontece na travessia de qualquer deserto, na qual só poderíamos contar com os suprimentos que tínhamos no começo da jornada. No meio do deserto não tem posto de gasolina, hospital ou supermercado”, lembra o presidente da companhia, Paulo Kakinoff.
Com o plano de travessia traçado, os investimentos, como campanhas de publicidade, foram suspensos. Era um modo para garantir que a água – dinheiro no caixa, nesse caso – não acabasse antes de que se atingisse o fim do deserto. Também com esse objetivo foi desenhada a proposta de reduzir a jornada e o salário dos tripulantes.
No fim de março, os trabalhadores já tinham aceitado o corte de até 75% na remuneração para os meses seguintes. Cerca de 1.000 funcionários foram desligados durante o ano.
Foi essa época em que o passageiro “sumiu”. Kakinoff diz que a empresa tinha se preparado para uma redução significativa da demanda, mas não imaginavam que a queda seria tão brutal – chegou a 93% em abril e maio.
No mês passado, a Gol foi a mercado para captar R$ 1 bilhão e dar continuidade à travessia do deserto, que só deve ser concluída quando a população estiver vacinada.
“Enquanto a covid não estiver resolvida, você jamais vai ouvir da gente que a situação está sob controle”, diz o presidente da empresa. “Mas espero que o trecho mais quente do deserto tenha ficado para trás. De qualquer modo, nem isso a gente crava, porque o cenário é muito volátil.”
A aposta de Kakinoff é que a retomada já verificada no segmento de lazer se mantenha nos próximos meses, enquanto o segmento corporativo continuará penando.
Ele prevê que as viagens realizadas a trabalho alcancem entre 60% e 70% do que se tinha antes da pandemia apenas no segundo semestre do ano que vem. O segmento corporativo é o que rende maiores receitas para as aéreas, dado que as passagens são compradas com menor antecedência e a preços mais elevados.
‘Vejo uma luz no fim do túnel’, diz direção da Azul
Os primeiros alertas da gravidade da crise da covid-19 chegaram à Azul pela United Airlines, que detém 8% de participação da empresa. Em uma reunião do conselho de administração em 9 de março, o representante da companhia americana informou que, no exterior, a crise já era grave e que a United vinha sofrendo. Apesar do recado, a direção da Azul pensou que, no Brasil, dado o clima tropical, a situação poderia ser diferente.
Três semanas depois, a receita da empresa caiu a quase zero e um evento que estava agendado para o fim de março, em que a Azul inauguraria um novo hangar em Campinas e anunciaria que havia sido eleita a melhor companhia aérea do mundo pela plataforma de viagens Tripadvisor, foi postergado.
“Gastamos dinheiro preparando um grande evento e, de repente, nem podíamos fazer a festa. Até agora não fizemos a inauguração do hangar”, diz o presidente da empresa, John Rodgerson.
Para os funcionários da área administrativa, a Azul instaurou, então, um regime de home office, mas a diretoria continuou indo ao escritório para discutir as medidas para preservar o caixa.
No prédio em Barueri, em São Paulo, em que costumam trabalhar 1.500 pessoas, houve dia em que eram apenas 13 funcionários – membros do comitê executivo, da área de recursos humanos e do planejamento de frota e malha.
Logo, a companhia começou a negociar dívidas e pagamentos com credores, fornecedores e funcionários. “Nosso plano foi simples: todo mundo tem de ajudar. Se você depende da Azul na sua vida, terá de ajudar. Eu falei: ‘se você der prazo, vai receber 100% do que é devido, mas, se eu tiver de ir para recuperação judicial, você vai receber bem menos’. É o clássico sanguessuga: se todo mundo que depende da gente tira todo nosso sangue agora, vai morrer um mês depois.”
Com os funcionários, o acordo foi que a maioria entraria em licença não remunerada. Dos 13,8 mil, 11,7 mil ficaram sem trabalhar e sem receber por pelo menos um mês. A empresa não diz quantos ainda estão nessa situação nem o número de demitidos.
Em novembro, a Azul captou R$ 1,7 bilhão emitindo debêntures conversíveis em ações. A injeção de capital veio pouco depois de a empresa sentir os primeiros sinais de melhora no setor. “Não estamos a cinco anos de uma vacina. Estou vendo luz no fim do túnel.”