No dia 2 de maio de 1519, morria, aos 67 anos, em Amboise, na França, Leonardo di Ser Piero da Vinci. O legado do pintor transcende a barreira entre arte e ciência, como comprovam seus desenhos e experimentos, o que justifica que as homenagens aos 500 anos de sua morte se espalhem por museus de distintas vocações.
A Itália, terra natal do artista, é palco de uma série de exposições. Em Roma, A Ciência Antes da Ciência, dedicada à produção científica de Da Vinci, vai até 30 de junho na Scuderie del Quirinale. Reúne mais de 200 peças, incluindo esboços que foram considerados prelúdios do paraquedas, helicóptero e tanque de guerra. Em Veneza, até 14 de julho, a exposição O Homem É o Modelo do Mundo, na Galleria Dell’Accademia, traz a público 24 desenhos raramente expostos, com destaque para O Homem Vitruviano, que será emprestado no segundo semestre para o Museu do Louvre, em Paris.
Em Florença, cidade em que Leonardo produziu algumas de suas maiores obras, a mostra Verrocchio, o Mestre de Leonardo, até 14 de junho no Palazzo Strozzi, exibe telas do homem que o ensinou, Andrea del Verrocchio, ao lado de trabalhos de seus aprendizes Pietro Perugino, Domenico Ghirlandaio e Da Vinci. No Palazzo Vecchio, também em Florença, até 24 de junho, a mostra Leonardo a Firenze expõe trechos do Codex Atlanticus, um documento de mais de mil páginas escrito entre 1478 e 1519, em que o artista fez anotações sobre matemática, astronomia, biologia, química, entre outros estudos. Uma exposição recente e semelhante foi a do Codex Leicester na Galeria Uffizi. A obra reúne textos, esboços e desenhos datados de 1508 a 1510. O documento, que foi comprado por Bill Gates em 1990 por US$ 30 milhões, apresenta estudos de temas como o movimento da água, fósseis e a luz da Lua.
O Museu Galileu, também de Florença, sedia até fevereiro de 2020 a mostra Leonardo da Vinci: Visões – Os Desafios Tecnológicos do Gênio Universal, expondo projetos de ferramentas, objetos e instrumentos que estavam à frente de seu tempo. Uma carruagem autopropulsionada, um leão mecânico e planos de como alçar voo estão entre os itens.
A exposição Desenhando o Futuro, em cartaz até 14 de julho no Museu Real de Turim, conta com mais de 50 desenhos artísticos e científicos de Leonardo, como seu Retrato de um Homem Velho, tido como seu autorretrato, e estudos de obras célebres como Cabeça de uma Mulher, A Virgem dos Rochedos e A Batalha de Anghiari. A 50 quilômetros do local de nascimento de Da Vinci, o Museu Leonardiano mostra o impacto da paisagem de sua infância em seu trabalho, incluindo desenhos emprestados pela Galeria Uffizi das montanhas de Montalbano. Em Milão, onde Leonardo morou entre 1482 e 1499, o Museu Ambrosiana promove, na cripta da Igreja do Santo Sepulcro, uma exposição que coloca lado a lado Da Vinci e o artista pop Andy Warhol.
França
Da Vinci morreu em Amboise, onde o presidente francês Emmanuel Macron deve se encontrar com o presidente da Itália, Sergio Mattarella, no dia 2 de maio. O Castelo Real de Amboise, onde está a tumba do artista, inaugura nesse dia uma exposição sobre os últimos anos de Leonardo, em cartaz até 31 de agosto. Junto com o Homem Vitruviano, o Museu do Louvre deve receber de empréstimo no segundo semestre as obras Cabeça de Mulher, A Anunciação e São Jerônimo, em uma negociação que gerou atrito entre os governos italiano e francês. A condição para que as peças fossem à França foi de que o Louvre cedesse para Roma algumas obras de Rafael, que morreu um ano depois de Leonardo, e será homenageado na capital italiana em 2020. As peças emprestadas somam-se à já valiosa coleção do Louvre, que conta com quase um terço das pinturas de Da Vinci: São João Batista, A Virgem e o Menino com Santa Ana, A Virgem dos Rochedos e La Belle Ferronière, além, é claro, da Mona Lisa.
Inglaterra
A Rainha Elizabeth II é dona da mais importante coleção de anotações de Leonardo, com mais de 500 desenhos, dos quais 144 estão hoje expostos em 12 mostras simultâneas em várias cidades do Reino Unido. A partir de 24 de maio, essas peças serão reunidas a outras da coleção real no Palácio de Buckingham, em Londres.
Brasil. O Instituto Italiano de Cultura de São Paulo será o principal veículo de celebrações de Leonardo da Vinci no País. A programação, que teve início em 15 de abril e deve prosseguir pelo resto de 2019, já teve um recital de música renascentista e uma conferência sobre o mestre. Uma instalação multimídia do artista italiano radicado no Brasil Cesare Pergola cria representações das obras Dilúvio e A Batalha de Anghiari na fachada da instituição, em Higienópolis.
Emirados Árabes
Salvator Mundi, a obra mais valiosa do artista, não faz parte das mostras. Em novembro de 2017, a tela foi arrematada anonimamente em um leilão por US$ 450 milhões. O Louvre de Abu Dhabi anunciou que a tela estaria no museu como parte das homenagens. A exposição, que teria início em setembro passado, foi cancelada e o museu não confirma o paradeiro da peça, de acordo com o jornal The New York Times. Desde então, especialistas levantaram a hipótese de que o quadro pode não ser de autoria do pintor ou uma falsificação. O comprador da obra, que, ainda de acordo com o Times, seria ligado ao príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, da Arábia Saudita, não se pronunciou sobre a questão, ainda nebulosa. Nos 500 anos da morte de Leonardo da Vinci, o mundo infelizmente não poderá apreciar sua obra mais cara.
Vegetariano, Leonardo teve de conviver com carniceiros para construir sua obra
Para quem teve patronos tão politicamente incorretos como Ludovico Sforza, que envenenou o sobrinho para usurpar a coroa ducal de Milão, ou César Bórgia, que esfaqueou o próprio irmão e virou o modelo de Maquiavel em O Príncipe, Leonardo da Vinci, lembrado pelos 500 anos de morte no dia 2 de maio, era até bem-comportado. Um pouco escandaloso, é certo, mas também isso os poderosos desculpavam por ter como protegido um gênio das artes, da ciência e até da engenharia militar. Graças a uma encomenda de Sforza, Da Vinci pintou A Última Ceia (1495-1498) no refeitório do convento de Santa Maria delle Grazie em Milão. Bórgia não só reconheceu no pintor um inventor e engenheiro militar de gênio como conseguiu para ele um passaporte e salvo-conduto que concediam ao portador direito irrestrito de inspecionar o que quer que fosse em seus domínios, de fortes a castelos.
Resumidamente, Da Vinci foi não só o autor da pintura mais famosa do mundo, o retrato de Mona Lisa (1503), a suprema atração do Louvre, como um dos homens mais influentes de toda a Itália, graças às obras-primas que pintou, além de suas invenções, que foram bastante úteis a César Bórgia – muitas de suas vitórias e conquistas foram frutos da habilidade de Da Vinci como engenheiro, como o hodômetro, usado para medir longas distâncias, ou os originais mapas desenhados por ele, como o de Ímola, onde esteve com César Bórgia e Maquiavel.
Para compensar essas bélicas companhias, o vegetariano Da Vinci, que definia as guerras como “loucuras imensamente desagradáveis”, encontrava a paz nos braços de um garoto bem mais novo que ele, Salai (de ‘salaino’, diabinho), um malandrinho retratado várias vezes pelo pintor, com e sem roupa. O andrógino Salai, com seus cabelos ondulados e olhar malicioso, viria a ser o modelo do São João Batista (1508-1516) de Da Vinci – ele pode ser visto ao natural, de frente e de costas, em desenhos reproduzidos na biografia que o norte-americano Walter Isaacson produziu há dois anos, publicada no Brasil pela editora Intrínseca.
Isaacson não foi o primeiro a analisar a relação mais duradoura (30 anos) de Da Vinci (até o biógrafo Vasari menciona o assistente do pintor e, depois dele, Kenneth Clark). Sua vida privada, afinal, nunca foi segredo: o pintor foi acusado (e depois absolvido) de sodomia pelas autoridades florentinas (em 1476) quando ainda trabalhava na oficina de Verrocchio. Visitou a delegacia local em mais de uma ocasião (há registros de ocorrências em Florença). O motivo era invariavelmente o mesmo: as festas que promovia em sua casa, onde não faltavam diabinhos como Salai, ou Gian Giacomo Caprotti, filho de um camponês que, aos 10 anos, em 1490, foi morar com o pintor – Da Vinci tinha 38.
Uma das habilidades de Salai, batedor de carteiras nato, era roubar pertences de amigos de Leonardo que visitavam sua casa. Isso deixava o pintor furioso, impotente diante das travessuras e dos maus modos do amiguinho, glutão, mentiroso, teimoso e desajeitado que, além de tudo, quebrava galhetas e derramava vinho nos jantares mais finos. Outra de suas habilidades era interferir de forma jocosa na obra do amante – é quase certo que seja o autor da ereção de O Anjo Encarnado, versão pornográfica do Anjo da Anunciação que imita o gesto do São João Batista de seu mestre. Lá pode ter o dedo de Salai (que acabou herdando a Mona Lisa com a morte de Da Vinci) ou de algum outro auxiliar que se apropriou do caderninho do pintor, como suspeita o biógrafo Walter Isaacson.
Seja como for, Da Vinci não teria pudor em dessacralizar um anjo. Quando jovem, em Florença, desenhou o corpo humano seguindo os conselhos do livro Da Pintura, do artista e engenheiro Leon Battista Alberti, que recomendava despir um homem antes de vesti-lo, para saber onde fica cada músculo e nervo nesse corpo. Da Vinci foi além: dissecou corpos para conhecer o seu funcionamento, eliminando a fronteira entre arte e ciência. O Homem Vitruviano (c. 1490), que pode ser um autorretrato de Da Vinci aos 38 anos, é apenas um exemplo da precisão científica do pintor, assim chamado por colocar em dúvida alguns mandamentos anatômicos de Vitrúvio (Vitruvius Pollio), como o da altura de um homem, que seria seis vezes o comprimento do seu pé segundo o arquiteto romano – Da Vinci discordou e concluiu que são sete vezes.
Inserida num círculo e num quadrado, duas formas geométricas irreconciliáveis, a figura do homem vitruviano é o símbolo máximo do Renascimento italiano, um ícone visto pelos estudiosos da obra de Da Vinci como uma combinação perfeita entre matemática, filosofia e arte. Para o exigente mestre nascido em Vinci, pequeno povoado perto de Florença, a perfeição não era monstruosa, mas uma meta a seguir como filho ilegítimo de um notário separado da mãe aos 5 anos. Tanto que só chegaram até nós pouco mais de 20 pinturas atribuídas a ele. O próprio Da Vinci definiria as três principais, ao levar com ele para a França, em 1516, a Mona Lisa, o óleo sobre madeira A Virgem e o Menino com Santa Ana (c. 1503) e São João Batista. Lá, a convite do rei Francisco I, o pintor viveu os últimos anos de sua vida. Não imaginaria que uma das pinturas atribuídas a ele por especialistas, Salvator Mundi, que retrata Jesus Cristo, seria a obra de arte mais cara do mundo (ela alcançou US$ 450 milhões num leilão da Christie’s, em 2017). Se vivesse hoje, certamente Da Vinci não precisaria andar em companhia de carniceiros como Ludovico Sforza e César Bórgia.