Quando o coordenador de manutenção Cesar Santana colou adesivos nos vidros em uma das linhas de envase de cosméticos da fábrica da Natura em Cajamar, Região Metropolitana de São Paulo, a operadora Geicica Cruz estranhou. “Está parecendo uma árvore de Natal”, reclamou. Mal sabia que, em pouco tempo, estaria se perguntando por que não pensaram nisso antes. Os adesivos são parte do mecanismo que torna possível o uso da realidade aumentada – tecnologia que sobrepõe objetos virtuais no mundo real. A Natura começou a testar o recurso há cerca de dois meses.
A chegada da tecnologia, que ganhou fama no ano passado após a “febre Pokémon Go” e ainda dá os primeiros passos em empresas pelo mundo, mudou a rotina dos operadores. Em vez de consultar manuais antes de fazer a manutenção, agora eles só abrem o aplicativo e “escaneiam” um adesivo. O app, então, dá início a um passo a passo sobre como uma peça deve ser trocada. Animações surgem na tela para demonstrar como proceder. Agora, em vez de registrar a atividade num papel ou planilha, basta tirar uma foto. “Os operadores de outras máquinas ficam curiosos”, diz Santana. “Querem saber quando vão poder usar.”
“A realidade aumentada é uma das tecnologias que fazem parte da nova realidade da indústria”, diz a diretora industrial da Natura, Angela Pinhati. “Podemos sonhar um mundo de aplicações e não tenho dúvidas de que ela vai reduzir custos e aumentar a produtividade.”
O investimento na realidade aumentada faz parte do esforço da fabricante de cosméticos em se preparar para um futuro no qual máquinas, profissionais e produtos vão trocar informações em tempo real, tendência conhecida como Indústria 4.0. “As indústrias estão começando agora a testar a tecnologia em seus processos”, diz Roberto Frossard, líder do centro de inovação da consultoria Accenture no Brasil.
“A velocidade de adoção está aumentando, pois a tecnologia está mais acessível.”
O projeto de realidade aumentada na Natura é fruto de um acordo com a startup paranaense GoEpik, que desenvolveu uma plataforma para levar a tecnologia para a indústria (ler mais abaixo). Com pouco mais de seis meses de existência, a startup faturou R$ 200 mil e tem grandes clientes.
A Natura não é a única a fazer testes com a startup. Em sua planta em São José dos Pinhais (PR), a montadora Renault experimentou o recurso num evento de prevenção de acidentes. Os funcionários andavam pela fábrica com um celular na mão e podiam interagir com os equipamentos de proteção exigidos em cada setor. “Treinamentos de segurança nunca geram interesse. Dessa vez, a repercussão foi grande”, conta o responsável pelos sistemas de manufatura da Renault para a América Latina, Edson Giesel. “O sucesso foi tamanho que desistimos de construir salas de treinamento de segurança.” Hoje, a tecnologia já é usada pela Renault em Portugal e há planos de expansão para outros países.
Além da economia, o projeto ajudou Giesel a provar para a direção que a tecnologia não é mero entretenimento. O resultado deu tão certo que a Renault já faz outro projeto com realidade aumentada: o do especialista remoto. Se um operador não consegue consertar uma máquina, ele usa óculos especiais para se tornar os olhos de um especialista que está em outra planta.
Ressurreição
Os testes com óculos de realidade aumentada ainda são raros no País – em geral, são usados em celulares ou tablets para acessar as plataformas. Em Canoas (RS), porém, a multinacional de equipamentos agrícolas AGCO resolveu começar a testar o Glass, óculos de realidade aumentada criados pelo Google. Antes considerado símbolo da vida pós-smartphone, o Glass parou de ser vendido em 2015, mas ressuscitou em julho, numa versão para empresas.
Três inspetores de qualidade usam os óculos na linha de montagem dos monoblocos, espécie de chassi dos tratores. “Os óculos leem o código de especificação e identificam o produto”, diz o diretor de manufatura da AGCO, Guilherme Pinto. “Depois, um software guia a inspeção.” Se um aspecto está fora do padrão, o inspetor tira fotos, grava vídeos e pode até chamar um engenheiro.
Os testes no Brasil são uma expansão de um projeto de sucesso iniciado pela multinacional nos EUA em 2015. Em sua planta em Jackson, Minnesota, mais de 200 pares de óculos estão em uso. A empresa não revela o valor do investimento. Até agora, colhe bons frutos: o tempo de inspeção de qualidade na fábrica dos EUA caiu em 30% e o tempo de produção das peças, 25%. “Os números podem ser ainda melhores no futuro”, diz o diretor de manufatura da AGCO.
GoEpik foi eleita a startup mais atraente para empresas em 2017
O paranaense Wellington Moscon, de 33 anos, não tem medo de correr riscos. Formado em Tecnologia da Informação e autônomo desde os 18 anos, ele afirma que nunca teve emprego com carteira assinada. Mas faltava alguma coisa. “De uns anos para cá me deu vontade de ter meu próprio negócio”, conta Moscon. “Sempre vi um potencial gigante na área de realidade aumentada.”
O sonho demorou algum tempo para virar realidade, mas em outubro do ano passado ele se juntou a outros três sócios – incluindo sua mulher -, para criar uma plataforma de realidade aumentada e resolver problemas de manutenção de máquinas no chão de fábrica, um dos fatores que prejudicam a produtividade das indústrias.
O projeto deu origem à GoEpik, uma das poucas startups a explorar esse mercado no Brasil até agora. Em pouco mais de seis meses de vida, a empresa já tem uma lista de grandes clientes, que incluem Natura, Renault, Bosch e Porto Seguro.
Desde fevereiro, a GoEpik faz parte do conjunto de empresas que estão no programa da Oxigênio, a aceleradora de startups da Porto Seguro, em São Paulo. No total, a empresa tem 14 funcionários, que se dividem entre Curitiba e a capital paulista.
Foi na aceleradora que a empresa recebeu seu primeiro investimento de US$ 50 mil, feito pela Porto Seguro em parceria com a Plug and Play Tech Center, uma das principais aceleradoras do Vale do Silício. Cada uma das empresas têm 5% de participação na GoEpik. Depois disso, a startup recebeu também capital – de valor não revelado – de investidores-anjo.
Em abril deste ano, a GoEpik também ganhou o título de startup mais atraente do ano para empresas, de acordo com o ranking do movimento 100 Open Startups. O ranking é elaborado a partir de 4 mil avaliações feitas por uma rede de aceleradoras, investidores e grandes empresas brasileiras com base em uma lista de 2,8 mil startups inscritas no programa.
Colaboração
Por ser uma tecnologia nova, que ainda está em fase inicial em indústrias de todo o mundo, a GoEpik depende fortemente da colaboração dos clientes. “Fazemos muitas reuniões com o pessoal da startup para discutir como a tecnologia pode ser aprimorada”, conta Cesar Santana, coordenador de manutenção da Natura. “Essas melhorias também beneficiam os outros clientes deles, de outros segmentos.”
Segundo Moscon, a empresa tenta se diferenciar ao “errar rápido”, usando metodologias ágeis. Comprovar resultados, porém, costuma demorar algum tempo – na Natura, por exemplo, ainda não há números que comprovem o benefício da plataforma da startup.
“Além do custo mensal de manutenção da plataforma”, diz Moscon, “nossa receita vem de um porcentual sobre a redução de custos que as empresas conseguem.” Em seis meses de operação, a GoEpik diz ter faturado R$ 200 mil. O plano, segundo Moscon, é fechar 2017 com receita superior a R$ 1 milhão.
Novas tecnologias são desafio à capacitação
Com a chegada da realidade aumentada na indústria, a vida dos profissionais do chão de fábrica tende a ficar mais fácil. No caso dos operadores de máquinas, a papelada vai acabar; para os gestores, a grande quantidade de dados gerados vai ajudar a melhorar a produtividade. Para que isso se torne realidade, porém, as empresas têm um desafio e tanto para qualificar os funcionários que vão trabalhar com as novas tecnologias.
“A realidade aumentada vem num pacote de novas tecnologias, que incluem Big Data e internet das coisas”, diz Rafael Lucchesi, diretor-geral do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). “A educação profissional tem de estar sempre à frente dessas mudanças.”
No caso da realidade aumentada, por exemplo, o Senai oferece livros didáticos com o recurso desde 2010, para permitir o primeiro contato com a tecnologia. O aluno aponta a câmera do celular para o livro e vê na tela as figuras impressas projetadas em 3D. É possível também movimentar projeções de peças na tela do smartphone.