Os rostos são novos, os poderes, não. X-Men: Apocalipse, filme que já está em cartaz no Brasil desde o dia 19 de maio, nasce com a missão de apagar o fim desastroso da primeira trilogia dedicada aos mutantes dos quadrinhos, encerrada com X-Men: O Confronto Final, lançado em 2006. Naquele longa, personagens grandiosos das HQs foram reduzidos a cinzas – alguns em um sentido mais literal do que outros -, e a franquia demorou para encontrar uma forma de voltar a usá-los. São os casos de Ciclope, Jean Grey, Tempestade, Noturno, Fera, Mística, Professor Xavier, Magneto.
Foram-se dez anos até que a trupe de personagens dos mais famosos das HQs estivesse pronta para voltar às telonas, como o fazem nessa reestreia em Apocalipse. Alguns deles, como Xavier e Magneto, ganharam suas novas versões sob as peles de James McAvoy e Michael Fassbender, repaginados a partir X-Men: Primeira Classe, em 2011, assim como Fera (Nicholas Hoult) e Mística (Jennifer Lawrence). O restante precisou ser apagado em Dias de Um Futuro Esquecido, lançado há dois anos, com uma mequetrefe justificativa de uma volta no tempo. Enfim, é chegada a hora de o restante do time de estudantes/heróis vestir a roupa de couro e salvar o mundo – desta vez, de maneira acertada.
É inegável que Bryan Singer, diretor nova-iorquino, colocou os X-Men nos cinemas em 2000, quando filmes de super-herói eram vistos com grande ressalva. Três anos antes, Batman & Robin, de Joel Schumacher, com aquele ar cômico, colorido e até um bat-cartão de crédito, havia enterrado o que hoje se conhece como gênero de super-heróis.
Singer sempre foi fã da equipe de mutantes. Há uma melancolia na busca por igualdade entre eles, aqueles com poderes ora especiais, ora tenebrosos, e os humanos. Há medo, há preconceito, há a luta de uma minoria por direitos igualitários. O mais angustiante talvez seja entender que a metáfora da vida real proposta por Stan Lee e Jack Kirby, quando eles criaram os X-Men em 1963, seja tão atual em 2016.
Ao dar início à empreitada heroica com o filme de 2000, Singer não apenas mostrou que personagens dos quadrinhos poderiam, sim, funcionar no cinema contemporâneo (e foi abre-alas para a máquina de fazer dinheiro que se tornou a ideia de transportar os personagens com capas esvoaçantes para a tela grande), mas como escancarou a necessidade de se encontrar saídas nos blockbusters para se discutir as mazelas da humanidade dos anos 2000. Singer, homossexual, sofreu grande parte da sua vida como alguém tratado com a indiferença ou, pior, o repúdio daqueles que o rodeavam. Assim como os seus X-Men.
Diante do carinho com esses personagens, o diretor levou ao cinema dois filmes dos heróis. O terceiro, o derradeiro dessa trilogia, O Confronto Final, seguiu sob a tutela Brett Ratner, arruinou o esmero na construção desses personagens. Singer havia abandonado o navio mutante para dirigir Superman: O Retorno, de 2006, um filme poético demais para aquele momento que exigia mais ação de filmes de heróis. Voltou para a franquia para reerguê-la. No caso de Primeira Classe, de Matthew Vaughn, ele era produtor e em Dias de Um Futuro Esquecido, que ele dirigiu, passavam a vassoura pela sujeira do terceiro filme da trilogia anterior e, com Apocalipse, Singer volta a estabelecer os personagens mais clássicos, caso de Cíclope, Jean Grey, Tempestade, como os protagonistas dos filmes que estão por vir.
Para isso, foi preciso tirar o protagonismo dos antigos líderes da trupe, caso de Xavier (McAvoy) e Mística (Lawrence), para que uma nova estrela pudesse brilhar. Apocalipse estabelece a dupla Jean Grey (Sophie Turner, a Sansa Stark, de Game of Thrones) e Scott Summers/Cíclope (Tye Sheridan), como o futuro dessa nova geração de mutantes.
De tal modo que o vilão da trama, o Apocalipse que dá o título a esse novo longa, interpretado por Oscar Isaac, nada mais é do que o fósforo em chamas jogado em um quarto embebido de líquido inflamável. Um personagem que, no fim das contas, funciona para colocar os novos rostos, mais jovens, para salvar os mais velhos. De quebra, X-Men se assume teen, adolescente, cheio de paqueras e climas de colégio, depois de anos vivendo dias mais sombrios.
Novo ‘X-Men’ tem efeitos demais para um roteiro ralo
O início recorda (ou cita) o clássico fechamento da pirâmide de Terra de Faraós, de Howard Hawks. Com a diferença de que a computação gráfica, se faz tudo mais fácil, também torna tudo artificial. Claro, cinema é artifício. Sempre foi, ao menos desde Méliès. Mas, em boa parte das vezes, é artifício que deseja esconder sua origem. Artifício que deseja passar por verdade.
Mas a que “verdade” pode aspirar um filme de super-heróis? Ora, trabalha-se aqui no campo da fantasia. Mas nem por isso essa fantasia pode se deixar ao luxo de funcionar sem estar atada, ainda que de leve, a certos princípios humanos básicos. Assim, os superpoderes podem ser, de um lado, o que mais atrai os fãs desse gênero. Mas o que pode dar algum fundamento aos “heróis” oriundos dos gibis são suas humanas fraquezas, quando não suas contradições. Suas limitações. Estas, digamos assim, fissuras, funcionam como âncoras, a emprestar credibilidade a uma trama que, de outra forma, não teria nenhuma.
Daí o relevo que se dá a um personagem contraditório como Magneto (Michael Fassbender), que perde a família e, como consequência, oscila entre o bem e o mal. Também não é à toa que, lendo os textos positivos sobre o filme seja sobre este personagem, e sua situação ambivalente, que os críticos mais se detêm. Não é difícil explicar. É que no personagem se concentra o material possível para encarar essa história como algo mais que um divertissement visualmente impactante. É pena, porém, que essa complexidade se mostre tão restrita no projeto de Bryan Singer. De fato, bem esmiuçada, não passa de mero detalhe. A ênfase, sem dúvida, é sobre a ação. E sobre uma ação turbinada por efeitos de computação e muito trabalho de som. Basicamente, X-Men: Apocalipse é isso. Uma soma infindável de lutas e destruições no combate dos heróis a En Sabath Nur, vulgo Apocalipse (Oscar Isaacs, irreconhecível sob a maquiagem espessa).
Ele desperta da sua catalepsia ancestral para um mundo dominado por superpotências equilibradas pelo terror nuclear. Como adicional às ações dos heróis, uma agente da CIA, Moira (Rose Byrne) marca presença. É outra tentativa de diálogo, portanto, entre o mítico, o imaginário depositado de forma primeira nos gibis e depois transpostos à tela, e a realidade dos anos 1980, era à qual aporta o Apocalipse recém-desperto.
Essas fusões podem soar como “samba do crioulo doido” (ver Sérgio Porto, ou Stanislaw Ponte Preta, por favor), caso fossem para ser levadas a sério. Mas não é bem assim. Com o visual lembrando às vezes o de escolas de samba do Grupo 2, o filme parece bastante deficitário em especial num ponto: o roteiro.
Nele, não se vê qualquer traço de criatividade. Menos ainda da complexidade, ainda que hipotética, que se encontra nos melhores exemplares da ficção científica -, porque X-Men pretende, também, estabelecer conexões com este gênero. Mas o faz de maneira bastante precária, pois não consegue criar verossimilhança interna, tornar crível o que seria apenas da ordem da hipótese científica (como, por exemplo, viagens no tempo).
Desta forma, a preguiça conceitual e a vocação de rotina dos blockbusters impõem sérias limitações ao projeto. O roteiro parece servir apenas de gancho para a torrente de efeitos especiais e destruição, enquanto atores e atrizes talentosas (como a gracinha Jennifer Lawrence) cumprem tabela numa produção aquém de suas possibilidades. Mas devem ter ganho um dinheirão. Para resumir: X-Men é muito barulho por nada.