ABC - quinta-feira , 2 de maio de 2024

Violência policial torna propícias mudanças no treinamento da PM

Atual desgaste da imagem da polícia já foi vivenciado na década de 1990. (Foto:Fotos Públicas – Du Amorim/ A2 FOTOGRAFIA)

Casos recentes de abuso da força policial têm levantado questionamentos quanto ao preparo da Polícia Militar para lidar com grupos minoritários. No ABC, a atuação da PM na dispersão da Parada Gay de Santo André, no início de julho, teria motivado, segundo organizadores, a segurança do Grand Plaza Shopping a agir com truculência contra participantes que tentavam se abrigar no estabelecimento. Para Estela Cristina Bonjardim, mestre em direito das relações sociais da Universidade de São Caetano do Sul (USCS), os ocorridos demonstram que a PM vive momento ideal para investir em um melhor tratamento às minorias.

Na ocasião, Marcelo Gil, presidente da Ação Brotar pela Cidadania e Diversidade Sexual (ABCD`s) teria dito à imprensa que a PM iniciou a dispersão dos participantes às 18h quando o combinado era às 19h. “A PM não deu tempo de o pessoal ir embora. Quando terminei minha fala em cima do trio elétrico, os policiais já vieram para cima do público, empurrando para que todos saíssem”, disse. O tumulto teria levado pessoas a buscarem abrigo no shopping e foi então que a segurança do centro comercial agiu para impedir a entrada dos participantes da parada. Nos vídeos que circulam pelas redes sociais, pode-se ver os seguranças imobilizando homens e mulheres, alguns carregando a bandeira LGBT, para impedi-los de entrar no estabelecimento. Os agredidos acusam os seguranças de homofobia.

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A assessoria do Grand Plaza afirmou que o bloqueio do acesso de pedestres em uma das portarias se deu pela preservação do patrimônio e dos clientes diante do registro de tumulto na área externa do shopping. A PM, por sua vez, esclareceu que a dispersão ocorreu às 17h45, mas que não transgrediu qualquer acordo com os organizadores. “Independente de tais fatos, foi instaurada uma Investigação Preliminar para apurar a existência de eventuais irregularidades”, diz a PM, em nota.

Histórico

O momento é considerado oportuno para a PM investir mais pesado na formação humana dos policiais, pois, como em 1997, a corporação tem sofrido considerável desgaste de sua imagem. Na época, tal desgaste resultou em parceria com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e com o Ministério da Justiça para a criação do Programa de Integração das Normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos e Princípios Humanitários aplicáveis à Função Policial. Naquele ano, percebeu-se que a imagem da polícia estava prejudicada por conta das ocorrências na Candelária, em Diadema, no Carandiru e outros locais, por isso o projeto foi criado e tornou o Brasil referência no assunto, como explica André Vianna, coronel da Reserva da Polícia Militar de São Paulo e consultor do CICV.

Em abril deste ano, imagens da transexual Verônica Bolina desfigurada por conta de agressões atribuídas a agentes da PM geraram grande repercussão na mídia e foi uma das pautas principais da Parada LGBT na capital Paulista. Outra transexual, Laura Vermont, morreu depois de ser agredida por cinco rapazes e ter socorro negligenciado pela PM – dois agentes foram acusados de mentir nos depoimentos à Polícia Civil, omitindo que um deles atirou em Laura para impedi-la de roubar uma viatura da polícia; a dupla teria ainda orientado uma testemunha a omitir o disparo. Além disso, pesquisa do Data Favela indica que 59% da população de favela teme violência policial. Casos famosos como o do pedreiro Amarildo Dias de Souza, desaparecido depois de ser abordado pela polícia do Rio de Janeiro, e do menino Eduardo de Jesus Ferreira, de dez anos, morto por um policial do Batalhão de Choque no complexo do Alemão, causam indignação em grande parcela da sociedade e prejudicam a imagem da corporação.

Nessas circunstâncias, de acordo com Estela Cristina Bonjardim, a polícia poderia iniciar treinamentos mais específicos para o tratamento de algumas minorias, como idosos, crianças e LGBTs. “Poderia haver a formação de multiplicadores, para aos poucos conseguirmos uma mudança mais profunda nas mentalidades”, opina. “O ideal é que a polícia toda veja cidadão como cidadão, e não como inimigo”.

André Vianna afirma que o treinamento recebido pelos agentes é “genérico” no que diz respeito aos tratos com as minorias. Segundo o profissional, os PMs são orientados a não discriminar nenhum grupo social, sem qualquer especificação para aqueles que já sofram violências e preconceitos na sociedade.

“A preocupação com os direitos humanos é muito recente, há 20 anos não se questionava a violência da forma como se faz hoje, por isso a polícia não tem ainda esse preparo”, pondera a especialista Estela Bonjardim ao explicar o porquê da PM estar defasada nesta questão. De acordo com a professora, todo o caráter violento e repressivo da polícia pode ser resquício do regime ditatorial iniciado em 1964 e encerrado e 1988. “Não faz muito tempo que entramos no estado democrático de direito, então vai demorar para nos desassociarmos inteiramente desse passado”, explica.

Bonjardim, porém, analisa que mudanças já estão em andamento por meio de treinamentos realizados com os policiais para a promoção dos direitos humanos e diminuição da truculência e da violência policial. “Só é preciso entender que essa é uma mudança cultural que tem a educação como base, então demora para ter efeitos. O que não se pode fazer é ignorar que a violência exista”, defende a professora.
 

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