O fantasma da Idade Média

***Paulo Flores

Há algum tempo queria escrever um artigo sobre o aborto. Em princípio, minha idéia era alertar que o assunto estava posto apenas sob a ótica religiosa e que não havia sido feito um amplo debate no campo das ciências sociais e humanas que o mesmo merece. Entretanto, uma nota embasada em reflexões levantadas por uma ?Comissão em Defesa da Vida?, amplamente divulgada pela internet, lida ou citada durante as missas e por meio de panfletos distribuídos nas portas das igrejas e em vias públicas, acelerou a necessidade de oferecer uma contribuição para que alguns pontos sejam mais bem esclarecidos.

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O agravante é que a referida nota ? que tem entre seus principais defensores uma pessoa que foi candidato em São Paulo ao cargo de deputado Federal, por um partido que faz parte da coligação do PSDB ?, foi respaldada por bispos católicos de dioceses paulistas, mesmo contrariando decisão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) por sugerir voto contrário a um partido.

O tema aborto virou spam (pragas virtuais da internet) e passou a ser o assunto do momento. Continua sendo debatido apenas pela ótica religiosa e, mesmo nesta ótica, superficialmente. Mas, ao contrário do que alguns poderiam querer, abriu-se um enorme espaço para o debate do tema em profundidade, tanto na ótica religiosa quanto na social. Este artigo não pretende ser o ponto final do debate. A intenção é apenas apresentar algumas observações para dar mais qualidade a ele.

Igreja e política

Ao contrário do que muitas pessoas acreditam e do que outras tentam fazer acreditar, a Igreja sempre esteve metida em política. Na Idade Média, a Igreja é quem controlava o Estado, era ela quem impunha as leis. Quem fosse contra, era torturado e acabava na fogueira. Muitas mulheres morreram por utilizar temperos que deixavam a comida mais saborosa. Eram tidas como bruxas. Galileu Galilei descobriu que a Terra era redonda e foi condenado por isso.

Depois de matar muita gente, após muitos séculos, a Igreja pediu perdão pelos erros cometidos.

Além de mostrar que, apesar da Igreja, a sociedade muda, a história deixa claro que padres e bispos sempre estiveram envolvidos em política. Ao se envolver em política, eles tomam partido por um lado ou por outro. No entanto, a maioria das vezes há divisão no clero. No Brasil, por exemplo, durante a ditadura militar, alguns padres e bispos apoiaram as forças armadas, outros defenderam a organização popular de resistência e esconderam ativistas políticos procurados pela polícia. Ou seja, nem sempre o que um bispo fala é compartilhado pelos demais.

Manutenção dos valores sociais

Até o século XVII, aproximadamente, a Igreja era considerada a detentora da informação e o ?lugar do conhecimento?. A língua utilizada internacionalmente era o latim, que, além do clero, era conhecida somente pelas elites. Não havia livros, apenas manuscritos, que não estavam disponíveis a todos. As leituras eram feitas pelos monges em voz alta para que o interessado ouvisse. Tal forma de transmissão de conhecimentos não permitia uma reflexão aprofundada, com releitura e consulta dos escritos, como fazemos atualmente.

Quando a prensa foi inventada, no século XV, a Igreja foi contra a edição de livros, principalmente daqueles em línguas locais. Com a publicação de livros ela perderia o privilégio e o poder que o conhecimento proporciona. Com a impressão dos livros em línguas locais e a possibilidade de reflexão posterior, sem a necessidade de audição da leitura em latim, essa língua deixou de ser usual.

O livro somente foi colocado à disposição das massas no século XIX (cerca de quatrocentos anos depois da invenção da prensa) e a Igreja deixou de celebrar as missas em latim somente no século XX, após a realização do Concílio Vaticano II. Ou seja, a Igreja é uma instituição tradicional e, como tal, tem uma cultura cristalizada, que leva muito tempo para sofrer qualquer mudança.

Ao contrário do que muitos possam pensar, a manutenção da tradição é uma função muito importante exercida pela Igreja e necessária para a sociedade. Em grande medida é graças a isso, valores como a fraternidade, a compaixão, o respeito ao próximo e às características individuais são mantidos na sociedade. Graças à Igreja não somos ?jogados pelas ondas e levados para cá e para lá por qualquer vento de doutrina, presos pela artimanha dos homens e pela astúcia com que eles nos induzem ao erro? (Ef 4, 14).

Contrariando a CNBB

Nos últimos tempos, no entanto, com a consolidação da democracia, a CNBB tem evitado tomar partido. Os bispos preferem formar os cristãos para que eles saibam que ?Tudo é permitido. Mas nem tudo convém. Tudo é permitido. Mas nem tudo edifica?. (1Cor 10, 23). Não impõem regras para evitar a lembrança da Idade Média e da Inquisição. Pregam o ?livre arbítrio? e dão formação aos fiéis, para que eles, por meio da fé e sem imposição, tornem-se ?homens perfeitos?. (Ef 4, 13).

Não é isso o que temos visto nos últimos meses. Contrariando a posição já tradicional no período democrático brasileiro, bispos, padres e membros de movimentos religiosos da Igreja Católica utilizam o nome da CNBB para pregar voto contrário à candidata de um partido em específico, em benefício do candidato do outro partido. Claramente, quem faz isso, utiliza a boa-fé dos cristãos para tentar eleger o candidato que apóia.

A CNBB já emitiu nota desautorizando o uso de seu nome e proibindo o clero de utilizar o espaço das igrejas e suas posições eclesiásticas para fazer campanha contra ou a favor de qualquer candidato. Não foi respeitada.

A desculpa desses cabos eleitorais qualificados é um documento no qual o atual governo relata quais medidas estão sendo tomadas para que se regulamente a legislação e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Todos eles, tanto a lei, quanto os tratados, foram aprovados e assinados em governos anteriores. O que mais é utilizado são as afirmações sobre as ações que visam legalizar o aborto.

Em nenhum momento, é claro, esses cabos eleitorais afirmam que o candidato José Serra (PSDB), em 1998, quando ministro da Saúde, tomou postura semelhante à do atual governo, quando assinou a norma técnica específica sobre Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes de Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, que autoriza a realização de abortos no país. Em minha opinião, uma postura correta, mas contraditória ao discurso moralista da campanha de difamação da candidata do PT.

Ou seja, ambos os candidatos têm posição semelhante sobre o aborto e tomam medidas para regulamentar os tratados internacionais assinados pelo Brasil. Se ambos os candidatos são ?favoráveis ao aborto? e os bispos não autorizam o voto em candidatos ?abortistas?, por que então eles não pedem para que os fiéis votem nulo? Por que pedem somente para não votar em partido X?

Essa é uma posição anacrônica. O que parece é que, como ocorreu na Idade Média, a Igreja (pelo menos esses cabos eleitorais qualificados) acredita que ela é a única detentora da ?verdade absoluta?. Quem não a obedecer e se atrever a pensar será queimado vivo na fogueira. Nos dias de hoje, cabe à Igreja dar a formação adequada aos fiéis, para que eles tomem a decisão que achar adequada. Se, na opinião de certos líderes religiosos, os fiéis estão tomando a decisão errada, é a Igreja quem não está conseguindo cumprir sua missão formadora. Ao invés de trabalhar melhor a formação, tentam coagi-los.

A base da polêmica

O relatório mencionado na nota nada mais é do que um informe sobre as medidas que vêm sendo tomadas, desde que o Brasil ratificou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, para que as normativas deste documento internacional sejam respeitadas. É bom frisar, que o Brasil ratificou o Pacto em 1992, quando o PT não estava no governo e sequer tinha maioria no Congresso Nacional. É bom que se diga, que quem assina o Pacto é o presidente, mas quem o ratifica é o Congresso Nacional (deputados federais e senadores).

A polêmica sobre o aborto foi criada com base nas informações sobre as medidas tomadas para que o artigo 3º do Pacto (Igualdade de Direitos entre homens e mulheres) seja cumprido. Existem no relatório 21 parágrafos numerados (de 26 a 47) que falam sobre tais medidas.

Sobre o artigo 3º, o relatório inicia apresentando todos os artigos da Constituição que proíbem a discriminação baseada no gênero, assim como aqueles que visam a promoção da igualdade. Em seguida, versa sobre todas as convenções e tratados internacionais, dos quais o Brasil faz parte, que têm a intenção de eliminar e punir todo tipo de violência e discriminação contra as mulheres, bem como sobre a eliminação dos mecanismos do Código Penal e do novo Código Civil brasileiros que continham elementos patriarcais e machistas. Também fala sobre a criação da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres e do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres.

Em seguida, o relatório reconhece que, apesar dos avanços obtidos na área jurídica e no mercado de trabalho, as mulheres ainda enfrentam práticas violentas e discriminatórias, destacando-se entre elas a violência doméstica. Também persiste a exploração sexual de meninas.

Como se vê, o relatório, como o nome diz, relata o que vêm acontecendo na sociedade brasileira. Apresenta a realidade de conquistas obtidas pelas mulheres, por meio de suas entidades organizativas, assim como dos desafios ainda a serem vencidos.

Em seguida, o relatório discorre sobre projetos e reivindicações de ONGs e demais entidades representativas dos movimentos feministas com relação à igualdade de direitos e à violência contra mulheres. Por respeito à democracia, o atual governo resolveu atender a esses anseios e se comprometeu em atender o princípio da livre escolha no exercício da sexualidade, enviando para revisão a legislação repressiva sobre o aborto. É bom que se diga que são os deputados federais e senadores os responsáveis pela elaboração e revisão de leis federais e não a Presidência da República.

O que o relatório ressalta é que cabe ao governo oferecer informações e assegurar o acesso a meios contraceptivos (pílulas, preservativos etc.) de forma que as pessoas tenham condições de evitar a gravidez indesejada e possam realizar o planejamento familiar, já que esse é um direito garantido pela Constituição Federal de 1988. O relatório reconhece, no entanto, que o país ainda não conseguiu cumprir plenamente a lei, que assegura autonomia na decisão de se ter ou não filhos.

Diz o relatório: ?O difícil acesso a métodos anticoncepcionais e o pequeno número de serviços de atendimento às mulheres que foram vitimadas pela violência sexual têm sido funcionais à gravidez indesejada e à realização de abortos clandestinos os quais, por sua vez, predispõem as mulheres ao óbito materno. O aborto é, atualmente, a 5ª causa de óbito materno no Brasil?. Ou seja, morrem o feto e a mãe.

Traduzindo, o relatório diz que muitas mulheres não têm acesso a meios anticoncepcionais (como a pílula) e continuam sendo vítimas de violência doméstica e sexual, o que as leva à gravidez indesejada e, por vezes, à realização de abortos, motivados ou espontâneos. Informa ainda que os óbitos maternos decorrentes de abortos são a 5ª maior causa de morte de mulheres no país.

Descriminalização do aborto

De acordo com a legislação brasileira, o aborto é crime. Muitas entidades representativas das mulheres pedem para que o aborto deixe de ser considerado crime. Isso não quer dizer que tais entidades são a favor do aborto. Apenas ressaltam que, feitas em condições inadequadas, a prática pode deixar seqüelas físicas e psicológicas na mulher que precisa passar por tal intervenção.

As seqüelas psicológicas, inclusive, ganham maior dimensão no contexto religioso, onde se reforça que há vida a partir da concepção e, por isso, as mulheres são acusadas de homicídio. Para aquelas que não seguem nenhuma religião, pode até não haver seqüela psicológica ou ela ser mínima. Se fosse uma questão menos estigmatizada essas seqüelas diminuiriam muito.

Acredito que seja mínimo o número de pessoas que são favoráveis ao aborto. O que se reivindica é a liberdade de decisão. O que se reivindica é a descriminalização, para que o aborto possa ser tratado como questão de saúde pública, e não como crime.

Sendo considerado como crime, o governo não pode dar assistência e destinar recursos para que o aborto seja realizado com maior segurança e higiene sanitária, nem tampouco disponibilizar tratamento de saúde e psicológico para mulheres que precisem passar por tal intervenção e necessitem de atendimento.

Mulheres que têm aborto espontâneo também sofrem com a criminalização. É comum o preconceito e a desconfiança das equipes de saúde dos hospitais. Não querem ser considerados cúmplices, ou executores do ?crime?. Assim como acontece com aquelas que sofrem aborto induzido, muitas mulheres que sofrem aborto espontâneo também deixam de ser atendidas ou têm que rodar de hospital em hospital até que sejam atendidas, o que as coloca em risco de morte.

Quem defende a descriminalização do aborto não é propriamente a favor do mesmo, apenas quer que sejam garantidos os mecanismos que permitam ao governo atender adequadamente às mulheres, com instrumentos para se evitar a gravidez, e, caso ela ocorra, que seja dada orientação pertinente e, se a decisão da mulher for pelo aborto, que ela tenha direito ao atendimento com segurança e higiene e os médicos não tenham medo de atendê-las e serem ?jogados na fogueira?, juntamente com as ?bruxas? que os realiza. Por isso, dizem que o aborto é uma questão de saúde pública.

A permanecer como está, deixa de existir a ?igualdade cristã?. Apenas quem é bem instruído ou possui dinheiro tem acesso a métodos anticoncepcionais, pode realizar o planejamento familiar ou faz o aborto em clínicas clandestinas melhor equipadas e evita o risco de morte. Pobres e analfabetos, que não tenham informações sobre meios de se evitar a gravidez são punidos. Tanto no caso de optarem pelo aborto quanto se decidirem manter a gravidez.

No entanto, apesar de discordar da ocasião, do método e do motivo pelo qual o tema foi colocado em discussão, acredito que a sociedade ganhou uma grande oportunidade para realizar um debate aprofundado sobre o aborto, sem hipocrisia nem ?caça às bruxas?.

**** Jornalista, com especialização em Marketing Político e Propaganda Eleitoral pela ECA/USP. Membro do GT de Educação do Instituto Paulista de Juventude e assessor de grupos de jovens da Igreja Católica.

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