
Os limites entre os municípios quase sempre expõem jogo de empurra-empurra entre as administrações responsáveis. Como muitas vezes nem mesmo as prefeituras se entendem sobre onde começa e termina seus territórios, problemas simples, como manutenção em pontes, recapeamento de vias e canalização de esgoto se tornam martírio para quem vive nestas ‘faixas de Gaza’ do ABC. Contabilizando apenas cinco das sete cidades da região, 57 áreas fazem limite com outros municípios.
Em São Bernardo, moradores da avenida São Bernardo, divisa com Santo André, no Jardim Santa Cristina, convivem com a rede de esgoto constantemente estourada e com a falta de manutenção no asfalto local. A vendedora Vera Gonçalves conta que a região é tão abandonada que os próprios moradores é que se responsabilizam pela limpeza da via.
“A Prefeitura só vem aqui quando ameaçamos denunciar para a imprensa ou para os vereadores”, desabafa.
Outro morador, José Marcilio Souza dos Santos, afirma que a calçada cheia de buracos e o esgoto que escorre pelo local todos os dias impedem a passagem das crianças e até já causou acidentes. “Já tive de ajudar muitas pessoas que caíram”, conta.
Na rua José Fernando de Medina Braga e na estrada João Ducim, no Jardim Oriental, também divisa entre São Bernardo e Santo André, o problema é agravado com a existência do córrego Taioca, entre os dois municípios. A ponte que liga as cidades já caiu algumas vezes por causa das chuvas e o fato de as prefeituras não chegarem a acordo sobre quem tem a responsabilidade do conserto acarretou na inacessibilidade do local por quase seis meses.
A atendente Lucinéia Silva de Lima reclama que a rua não recebe com frequência o serviço de coleta de lixo. “Além disso, quando vieram limpar o rio deixaram todo o lixo na encosta, ninguém veio retirar. Quando chove, a sujeira corre toda para o rio novamente”, lamenta.
Viela abandonada é armadilha
Próxima à estação Utinga da CPTM, divisa entre São Caetano e Santo André, a viela é muito utilizada por estudantes da USCS (Universidade de São Caetano) e UniABC, mas o local é armadilha para assaltos. A rua possui quatro casas em um extremo e o córrego Utinga em outro. “O único poste na viela não é suficiente para iluminar a área, que fica escura. Com o matagal alto, cresce a chance de violência”, reclama Michele Macedo, estudante e moradora de Santo André, que passa todos os dias pela rua.
Stefanny Silva estuda no período noturno e fica indignada com o descaso do poder público. “É o caminho mais curto para a estação de trem e à noite há muitos pedestres, mas nem isso nos tranquiliza, porque o perigo está presente”, completa. A estudante relata ter conhecimento de vários assaltos ocorridos na rua.
Quem mora no local acrescenta a problemática do córrego. “A margem dele cai constantemente”, conta Áurea Aparecida Araújo, dona de casa. O medo da moradora é que a situação coloca em risco a residência. “Não é porque são quatro casas apenas ou porque é divisa entre duas cidades que a rua não merece atenção”, lamenta.
Em São Bernardo, bairro Chácara Sergipe, divisa com Diadema, a reclamação é o córrego Ribeirão dos Couros. Nazareth Lopes mora há 24 anos no local e ainda aguarda a canalização. “Outro problema são os ratos e os pernilongos, que vêm do rio direto para as nossas casas”, destaca a aposentada.
A limpeza do córrego deixa a desejar. Na divisa, próximo à rua Guaricica, logo abaixo da placa da alerta de multa para lixo no local, a equipe de reportagem do Repórter Diário encontrou uma pilha de lixo. Jeane Lisboa, auxiliar de limpeza e moradora de São Bernardo, trabalha em Diadema e passa todos os dias pelo local. “Nunca vi esta calçada sem lixo”, reclama. Segundo Nazareth, apesar de o córrego estar na divisa, é São Bernardo que geralmente toma providências. “Mas nem sempre resolvem”, lamenta.
Região tem 57 ‘faixas de Gaza’
O ABC tem mais de 60 áreas que fazem divisa com municípios que compõem a região e São Paulo. O levantamento realizado pelo Repórter Diário compreende cinco municípios (São Bernardo, São Caetano, Diadema, Mauá e Ribeirão Pires). Apenas Santo André e Rio Grande da Serra não apresentaram dados sobre as ‘faixas de Gaza’ da região. Os municípios com maior número de áreas limítrofes são Mauá e São Bernardo. Cada um possui 15 bairros que dividem com municípios vizinhos.
Ao todo, Alves Dias, Anchieta, Baeta Neves, Centro, Cooperativa, Alvarenga, Independência, Jordanópolis, Montanhão, Paulicéia, Rudge Ramos e Taboão somam 458,3 mil moradores em São Bernardo. Segundo o Sumário de Dados do município, isso representa 56% da população. Também é de São Bernardo outro dado peculiar. A cidade possui três divisas rurais: Alto da Serra, Varginha e Zanzalá, com cerca de 3 mil habitantes e próximas a Santo André.
Na outra ponta do ranking está Diadema. A cidade tem cinco bairros (Taboão, Canhema, Piraporinha, Casa Grande e Eldorado) que fazem fronteira com o restante do ABC, além de outros dois próximos a São Paulo, casos de Eldorado e Vila Élida.
Boa vizinhança
Quando o assunto é solução de problemas em conjunto com uma ou mais cidades, o comportamento de cada município é similar. Prevalece a política da boa vizinhança.
“Acordo entre as partes envolvidas (municípios) resulta em uma decisão e eventual responsabilidade quanto a qual município caberá a execução do serviço solicitado”, informa a Prefeitura de São Bernardo, por meio de nota.
A cidade e a vizinha Santo André passaram por situação similiar, com a queda da estrada João Ducin. Após entendimento entre as duas partes, Santo André finalmente se incumbiu de realizar a intervenção no local que liga os municípios.
Parlamentares pedem mediação
Em meio a problemas fronteiriços, quem também se envolve diretamente nos problemas do dia a dia de cada cidade, incluindo as fronteiras, são os vereadores. Elos de ligação entre o morador e o Poder Público, os parlamentares apontam o Consórcio Intermunicipal Grande ABC como entidade capacitada para atuar como mediadora de conflitos de duas ou mais cidades.
“É inevitável ter uma entidade regional, que aglomere problemas em comum do ABC. Isso é necessário e uma região como a nossa tem de apresentar essa visão”, afirmou Tunico Vieira (PMDB), vereador de São Bernardo.
“Seria muito mais fácil resolver problemas dessa natureza, mas sinto que ele, como entidade, surte ainda pouco efeito. Falta mais interesse de cada prefeito na minha visão”, criticou Antônio Muraki (PTB), parlamentar de Ribeirão Pires. O Consórcio foi procurado pela reportagem, mas não se pronunciou sobre o assunto.
Montanhão virou símbolo de desentendimento
São Bernardo e Santo André protagonizam uma briga que se tornou emblemática sobre até que ponto pode chegar o desentendimento entre cidades vizinhas. A Estrada do Montanhão virou motivo de disputa judicial envolvendo os dois maiores municípios do ABC. O embate ainda não chegou ao fim.
No dia 15 de dezembro, o Semasa (Serviço Municipal de Saneamento Ambiental de Santo André) fechou a estrada, cumprindo determinação judicial. No dia 22, São Bernardo conseguiu habeas corpus com pedido de liminar que determinou a reabertura da via. A própria Prefeitura de São Bernardo acabou retirando os bloqueios que haviam sido instalados pelo Semasa.
O processo que resultou no fechamento contou com reclamações dos dois lados: integrantes da gestão Marinho consideraram que o governo Aidan não teve boa vontade em reverter a situação. Já a decisão do governo petista em retirar os bloqueios não agradou o governo andreense.
A reabertura da via trouxe alívio para as mais de 220 famílias do bairro Baraldi, que é cortado pela Estrada. O bloqueio, que durou menos de uma semana, mudou completamente a rotina dos moradores por alguns dias.
“Foi horrível não só para nós que moramos aqui embaixo, mas principalmente para que mora lá em cima e precisa fazer tratamento no posto de saúde. Eu via pessoas com cadeiras de roda tendo de passar pelo barro, idosos e crianças andando a pé”, afirma a comerciante Márcia Alencar. “Todos que moram aqui tem hora para chegar no trabalho. Quando a estrada foi fechada, cada um teve de se virar, inclusive por causa da falta de ônibus”, conta o porteiro Joveniano Lima Vieira.
Os moradores esperam que a abertura da via seja definitiva. O caso está sendo analisado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que vai decidir se a Estrada continuará liberada ou será interditada.
Falta de comunicação
Não é preciso passar pela Estrada do Montanhão para chegar à conclusão de que São Bernardo e Santo André precisam melhorar a comunicação. Os motoristas que passam pela região, que compreende as avenidas Lauro Gomes e Winston Churchill (em São Bernardo) e Bom Pastor e Atlântica (em Santo André), enfrentam o problema de falta de sincronização dos semáforos.
O Departamento de Trânsito de São Bernardo sinalizou, no final do ano passado, que procuraria o setor responsável pela área em Santo André para melhorar o sincronismo na região. O encontro, porém, ainda não aconteceu.
Consórcio articulou projeto de piscinão
Apesar de reunir prefeitos e representantes dos sete municípios para debater e buscar soluções regionais, o Consórcio Intermunicipal Grande ABC não trata especificamente de questões entre limites de municípios.
Porém, um típico exemplo de ação tratada pelo Consórcio que beneficia a região e que envolve áreas limítrofes é o piscinão Jaboticabal, que será instalado na tríplice fronteira entre São Caetano, São Bernardo e São Paulo. Com capacidade para rever até 750 mil m³ de água das chuvas, o reservatório – ainda em fase de licitação e sem data para ter as obras iniciadas – é a aposta de São Caetano para resolver ao menos parte do problema das enchentes.
Faixa de Gaza
Se na região é comum haver o jogo de empurra-empurra entre as administrações sobre quem tem responsabilidade sobre determinado território e, consequentemente, quem deve se responsabilizar pelos problemas, no Oriente Médio a história se inverte. A faixa de Gaza, localizada dentro de Israel, é um dos lugares mais conturbados e disputados do mundo.
Na década de 1940, o Egito passou a dominar o território, mas anos mais tarde, em 1967, Israel conquistou a faixa de terra após uma guerra. A partir daí colonos israelenses foram encaminhados até o local, que possui população de quase 1,5 milhão de pessoas, sendo parte delas de refugiados. No entanto, todos os soldados e colonos deixaram o local em 2005, quando a Autoridade Palestina, formada principalmente por nacionalistas do partido Fatah, assumiu o controle.
Em 2006 o Hamas venceu as eleições nos territórios palestinos e formou um governo na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Um ano mais tarde, Hamas e Fatah formaram um governo de união nacional, mas não durou muito, pois o líder do Fatah, Mahmoud Abbas, dissolveu o governo. Sob a ameaça de um golpe, em 2007 o Hamas assumiu o controle de Gaza à força.
Em maio do ano passado Fatah e Hamas assinaram um acordo de reconciliação que estabelece a formação de um governo de transição para preparar as próximas eleições palestinas e reconstruir a faixa de Gaza.