Devido a desinformação de que a varíola dos macacos tem como principal transmissor os homens homossexuais, a comunidade LGBTQIA+ tem sofrido maior discriminação. A visão retrocedente traz de volta o mesmo estigma dos anos 1980 a 1990 durante a epidemia da HIV/Aids quando, incialmente, a doença era vista como exclusividade da comunidade LGBTQIA+.
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), o risco da monkeypox não está limitado a pessoas que são sexualmente ativas ou homens que fazem sexo com homens, qualquer pessoa que tem contato com alguém com sintomas está em risco. O entendimento distorcido sobre os fatores de transmissão gera intolerância por parte da população.
Com a repetição dos mesmos estigmas, Marcelo Gil, presidente da ONG ABCD’S (Ação Brotar pela Cidadania e Diversidade Sexual), se entristece com o retrocesso. “Parece que damos 10 passos avantes, mas recuamos. Não podemos voltar ao que era ao passado e pensar que essa doença é só para um determinado público”, aponta.
O presidente da organização ainda se preocupa sobre como a desinformação pode trazer uma onda de violência aos LGBTQIA+. “Com a Aids nos anos 1980, todos criaram uma revolta de que os gays eram culpados pela doença. Chegaram até a assassinar alguns homossexuais por conta disso”, lamenta.
Varíola dos macacos traz preconceito
A alta incidência da varíola dos macacos (monkeypox) entre “homens que fazem sexo com homens” (HSH) e o pedido da Organização Mundial da Saúde (OMS) para que gays e bissexuais reduzam contatos e parceiros sexuais criaram um problema que a ciência e as autoridades tentaram evitar. Pacientes com a doença apontam para uma onda de comentários preconceituosos e homofóbicos, desinformação, paranoia e medo, ao mesmo tempo em que outra parcela da comunidade LGBT+ se nega a encarar os fatores de risco e acredita ser alvo da mesma perseguição motivada pela epidemia do HIV na década de 1980.
Com 30 anos e vivendo com HIV, o influenciador e comunicólogo Lucas Raniel descobriu que estava com a varíola na segunda semana de julho, quando começou a ter febre e, em seguida, as feridas características da doença. Após o diagnóstico, ele começou a contar sua rotina e dividir detalhes do tratamento nas redes sociais, onde acumula mais de 70 mil seguidores. “Desde que comecei a falar, a quantidade de mensagens é insana”, diz Raniel. Ele conta que é procurado tanto por pessoas com medo de terem se infectado, mandando fotos de possíveis lesões, “quanto gays morrendo de medo e achando que vão se infectar e morrer amanhã”. O preconceito dá as caras, com frases como “tá vendo, quem mandou ser gay e sair transando com todo mundo”.
Os primeiros casos notificados na Europa foram em festas e saunas voltadas ao público gay, no início de maio. As comemorações do Orgulho LGBTI+ no mês seguinte e o fato de que essa comunidade tem uma “rede interligada” de contatos fizeram com que o vírus se espalhasse rapidamente entre “homens que fazem sexo com homens”. “A comunidade LGBT+ acaba negligenciando essas questões porque já somos inflamados sobre muitas coisas. Quando nos entendemos como gays, já pensamos se o HIV vem nesse combo ou não”, afirma Raniel, que vê parte da comunidade tentando se esquivar dos avisos e riscos.
DJ e modelo de 22 anos, Doug Mello diz que quando falou sobre seu diagnóstico nas redes sociais também recebeu mensagens de carinho, apoio e desejos de melhora, mas não só. “Fiquei abismado com a ignorância de muitos, que não procuram saber o que é e nem se informar. Teve uma parte que veio me atacar, dizendo que seria ‘a nova doença dos gays’. Fico apreensivo, porque podem achar que só pega por sexo”, conta.
COMUNICAÇÃO
A ciência ainda não decifrou se a varíola dos macacos é transmitida pela penetração ou pelo sêmen, mas o comportamento similar ao de uma DST fez com que ela fosse relacionada a uma possível promiscuidade dos pacientes. O preconceito se agravou após Tedros Adhanom, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, pedir para que os homens que fazem sexo com homens diminuíssem contatos e parceiros sexuais. A fala foi criticada pela comunidade LGBT+, ainda que ele tenha esclarecido que o enfoque era para prevenção e prioridade na vacinação, na tentativa de frear a doença. “O estigma e a discriminação podem ser tão perigosos quanto qualquer vírus e alimentar o surto”, disse.
“Nos preocupamos com esse enfoque (na comunidade HSH), em razão do que vivemos com a aids. Um dos atributos do estigma é essa rotulação, que afasta a população das buscas por tratamento”, aponta Anderson Reis, doutor em Enfermagem e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), com foco na saúde masculina.
ALERTA
“Tem o ponto correto de tornar visível que homens gays estão sendo afetados desproporcionalmente, e isso é bom para a comunidade estar alerta; mas o ponto ruim é que volta para a mesma questão do HIV”, afirma o pesquisador da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo Daniel Barros. “Se tivéssemos tomado uma ação rápido o suficiente e pensado que as vidas e a saúde de homens gays e bissexuais são importantes o suficiente para tirarmos vacinas do freezer e colocá-las nos nossos corpos, nem estaríamos nessa conversa”, disse Keletso Makofane, da Sociedade Internacional da Aids.