A insegurança jurídica envolvendo o espólio musical de João Gilberto (foto) está dificultando a natural onda de relançamentos que costuma se erguer no mar da indústria fonográfica após a morte de um ídolo. Com a disputa entre os “herdeiros”, nenhuma gravadora se arrisca a reeditar os trabalhos do mestre. Álbuns antológicos, verdadeiras joias da MPB e do jazz universal, permanecem restritos a lançamentos das décadas de 70, 80 e 90, isso sem falar da trilogia inaugural da Bossa Nova, composta por Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e A Flor (1960) e João Gilberto (1961), completamente interditada por causa da demanda judicial envolvendo a antiga gravadora Odeon.
As dúvidas judiciais não se restringem à discografia de João Gilberto, morto em julho deste ano. Elas também amedrontam quem tem o desejo de colocar no mercado gravações até agora inéditas, algumas até circulam na internet, principalmente shows feitos no Brasil e no exterior, momentos raros, como uma das últimas apresentações dele em São Paulo, no Auditório Ibirapuera, em 2008.
Quem perde, claro, é o público, especialmente as novas gerações, impossibilitadas de travar um contato mais físico (para além do mundo dos serviços de streaming) e direto com a obra de João Gilberto.
Pelo menos por enquanto, as gravadoras Universal e Warner, que detém a maior parte do catálogo de João Gilberto, não têm planos de reedições, muito menos de colocar em lojas físicas e plataformas digitais material inédito (sim, há gravações inéditas de João esperando para serem lançadas). A informação foi confirmada por fontes do mercado fonográfico: não há segurança jurídica neste momento. A Universal é a detentora da maior parte dos registros de João Gilberto em estúdio. Depois da fusão com a EMI, a gravadora passou a ter em seu poder dez discos dele, gravados originalmente para os selos Odeon, Verve e PolyGram. Outras pepitas do acervo da Universal, que também incorporou o catálogo da antiga Copacabana, são as faixas Quando ela Sai e Meia-Luz, do primeiro 78 rotações que João fez – em 1952, seis anos antes da gravação de Chega de Saudade -, e álbum inédito ao lado de Caetano Veloso e Gal Costa, registrado no estúdio da TV Tupi, em São Paulo, em 1971.
A Warner tem em seu poder os discos gravados entre 1977 e 1986. No Spotify, estão disponíveis apenas os álbuns com Stan Getz, Amoroso (1977), João (1991), João Voz e Violão (2000) e algumas coletâneas. No Deezer, é possível ouvir Brasil (1981), com Caetano Veloso e Gilberto Gil, e João Gilberto in Tokyo (2004).
Outros registros lançados no exterior jamais chegaram ao Brasil. É o caso de Getz/Gilberto ’76, lançado em 2016, e o Blu-Ray com um show no Japão. No ano passado, a Polysom relançou Amoroso em vinil, mas ainda não há uma previsão de novos títulos nesse formato clássico. Se, por um lado, a insegurança jurídica restringe a divulgação da obra “joãogilbertiana”, de outro, faz aumentar a mitologia em torno de João Gilberto: um gênio que, mesmo depois de morto, continua alimentando polêmicas e disputas.
Filho de João Gilberto, João Marcelo diz que o pai desejava morar com ele nos EUA
Filho mais velho de João Gilberto, de seu relacionamento com a cantora Astrud Gilberto, o baixista e produtor carioca João Marcelo Gilberto, de 58 anos, vive em Nova Jersey, nos EUA – país para onde se mudou com a mãe ainda criança. Casado com Adriana Magalhães, é pai de duas filhas, Katryna, de 26, e Sofia, de 3, e tem uma enteada, Alice, de 17. Aliás, na página do Facebook de Sofia é que foi possível acompanhar as últimas imagens de João Gilberto, que morreu no dia 6 de julho. Quase quatro meses após a partida do cantor, João Marcelo diz que ainda não conseguiu ter acesso, por exemplo, ao testamento de seu pai ou aos detalhes de suas finanças. Leia a seguir trechos da entrevista feita por e-mail.
Como era relação com seu pai?
Sempre foi de muito amor e carinho. Tinha contato constante com meu pai quando ele vinha aos EUA ou quando eu ia ao Rio. Meu pai também morou nos EUA por um tempo, cerca de uma década, e morei um tempo em criança no Leme, Rio, períodos em que ficamos bem próximos. Recentemente, ele conseguiu um apartamento em Ipanema pra eu morar no Rio, queria que eu ficasse um tempo próximo. Ele sentia que estava frágil e ameaçado por pessoas próximas a ele naquele momento. Passei praticamente 3 anos no Rio, mas tive que voltar aos EUA para resolver umas coisas antes de retornar novamente ao Rio. Meu pai atualmente me ligava e dizia: meu filho, quero que você coordene tudo da minha vida. Falava sempre do amor que sentia por mim e dizia que queria vir para ficar comigo, com as netas e com Astrud aqui nos EUA. Ele falava: estou indo ‘praí’ meu filho, me espera.
Quem são essas pessoas pelas quais ele se sentia ameaçado?
As pessoas que “tentavam administrar” sua vida.
Você nunca pensou em se mudar para o Brasil quando a saúde de seu pai se mostrou frágil?
Como disse, passei alguns anos morando no Brasil recentemente, mas tive que voltar para cuidar de algumas coisas aqui nos EUA. Minha vontade e a de meu pai era que ele viesse para estar aqui com a nossa família, para isso construí uma suíte para ele em minha casa. Mas infelizmente não pudemos concretizar esse sonho. Não posso contar os reais motivos desse impedimento, pois tenho uma gag order (ordem da mordaça) contra mim nesse momento, em que não posso falar livremente pra imprensa. Estou impedido de contar minha própria história de vida.
Nos últimos dias de vida de seu pai, vocês postaram fotos dele com Maria do Céu. Como era a relação dela com João?
Maria do Céu cuidou do meu pai no último ano de vida dele, mesmo que muitas vezes não cooperasse para um ambiente de paz. Ela só foi para a casa dele porque perdeu seu apartamento. Postamos imagens carinhosas de família, inclusive meu pai gostou muito e estava ciente de tudo. Maria nos apoiou por aparecer em fotos melhorando a imagem dela aos olhos do público. Nós e o advogado a apoiamos nesse sentido para tentar melhorar a imagem dela e ela estava feliz e solidária com isso. Meu pai pagava as contas para ela, mas nunca quis assumi-la como esposa ou companheira, sempre deixou isso muito claro para os filhos. Passei alguns anos no Brasil recentemente, indo e vindo, e eu ia muito na casa do meu pai e ele vinha na nossa casa, e ele sozinho, sem estar acompanhado por qualquer uma de seus relacionamentos. No único testamento que meu pai fez, ele fez questão de deixar claro que não tinha união estável com ninguém. Maria pediu recentemente para eu e Adriana assinarmos cartas para ela tentar conseguir uma união estável e acabamos fazendo, apesar de isso não ter sido a vontade do meu pai. Fiz somente porque havia pessoas tentando afastá-la dele naquele momento, para poder tirar meu pai de seu apartamento, e achei que Maria poderia ajudar para que isso não acontecesse. Naquele momento, a coisa mais importante para mim era manter meu pai em sua própria casa. Juridicamente, Astrud é viúva do meu pai, pois nunca se divorciaram.
Por que você não conseguiu ir ao velório de seu pai?
Por questões burocráticas, não tinha vontade de encontrar com algumas pessoas que estariam lá, mas falei com meu pai minutos antes de sua morte e diariamente até esse momento, e falamos coisas essenciais, de muito amor, isso pra mim é o que importa.
Surgiram notícias de que, já durante o velório, houve pedido de gestão do inventário por parte de Bebel e Maria do Céu. Como ficou essa situação?
Como disse, não posso falar abertamente por estar impedido, mas duas pessoas deram entrada pra ser inventariantes ainda durante o velório. Soube que, no pedido de inventário, que foi dado entrada durante o velório, por maldade escreveram no pedido que eu não poderia ser inventariante porque não tinha uma boa relação com meu pai. Sempre disseram, na interdição de meu pai, e agora no seu inventário que está em andamento, mentiras maldosas com o intuito de me excluir. Já Maria assinou papéis com os advogados literalmente durante a cerimônia do velório, em pleno Theatro Municipal. Achei particularmente de mau gosto, mas o importante agora é cuidar da imagem do meu pai e de sua obra.
Como está o acervo pessoal que ele mantinha no apartamento?
Gostaria muito que um de seus violões ficasse com minha filha Sofia, que mostra interesse pelo instrumento, mas acho que um bom lugar para estarem é no Museu da Imagem e do Som do Rio, assim como a pulseira que não saía de seu braço. Fiquei sabendo que seu Grammy assim como outros pertences dele foram colocados secretamente, sem permissão dele nem de seus filhos, em um guarda-móveis. Isso tem que ser resgatado urgentemente e preservado.
Como está a questão do testamento? Maria do Céu foi excluída?
Meu advogado tenta notícias sobre tudo e não consegue, mas imagino que sim. Continuam dificultando as informações.
Você acha que em algum momento você e suas meias-irmãs poderão se conciliar?
Sempre desejei uma boa relação com todos, mas fui intencionalmente excluído. E nunca foi me apresentado um exame de DNA da Luisa (filha de Claudia Faissol). Fiquei sabendo recentemente que, por causa da hérnia que meu pai tinha, dificilmente ele poderia ter tido mais filhos, mesmo na época do nascimento da Luisa. A história que me foi contada foi que o pai anterior da Luisa, quando ela tinha cerca de 3 anos, pediu um DNA para ver se ela era mesmo filha dele e foi descoberto que não era. Por que meu pai também não pode ter sido enganado como foi com outros assuntos profissionais? Fica a dúvida, mas não é tarde para comprovarmos.
Bebel entrou judicialmente contra você? Por qual motivo?
O absurdo é que com esses processos ela tenta tirar meu direito de contar minha própria história. Os processos contra mim têm o intuito de eu não poder falar livremente com a imprensa, com isso não posso contextualizar as histórias da minha própria vida com meu pai. Eu poderia ter feito o mesmo, ou seja, entrando com processos contra ela, para poder impedi-la de falar na imprensa também, mas não o fiz por não ser meu estilo.
Como está o processo movido contra a Universal, antiga EMI?
Esse caso vai ter que ser revisto e estou juntando um time para ver a melhor forma de fazer isso. Meu pai sempre teve confiança em mim como consultor técnico de som dele. Adotei cedo tecnologias de áudio digital, sendo capaz de fazer o laudo técnico e a análise científica de áudio que provou definitivamente a remasterização e ganhou o processo contra a EMI. Gostaria de terminar bem essa negociação com a EMI e liberar esses trabalhos novamente para o público, com a qualidade que meu pai desejava.
Como foram os últimos dias de vida de seu pai?
Meu pai passou a vida sem querer ir a médicos. Uma pessoa deve ter a soberania do próprio corpo e ter permissão para recusar o tratamento, se for seu desejo. Era o seu modo em toda sua vida. Ele gastou um de seus últimos dias de vida tendo que fazer, contra a vontade dele e a minha, um exame de sanidade mental que o deixou muito triste. Eu nunca disse que queria ter controle total sobre os assuntos do meu pai, mas gostaria de ter sido ouvido. Nos seus últimos meses de vida, Sofia ia pra casa dele quase que diariamente, o que lhe trouxe um pouco de alegria e amor. Fico feliz com isso.
Com a palavra, os outros lados da história
Procurada para comentar as afirmações de João Marcelo Gilberto, a cantora Bebel Gilberto se manifestou por meio de sua advogada, Simone Kamenetz. “Quanto à entrevista de João Marcelo, Bebel não tem interesse algum em responder a qualquer referência que ele tenha feito a ela. Bebel está em turnê, retomando a vida pessoal e profissional, depois de deixar tudo suspenso pelos quase dois anos em que se dedicou a cuidar do pai.
Entendo que seja sua obrigação profissional buscar ouvir o outro lado, quando há menção sobre essa outra parte, e aprecio seu contato. No entanto, não há necessidade de enviar perguntas, pois Bebel não vai desperdiçar tempo e energia em assuntos de pouca importância. O que importava para ela, que era tentar dar qualidade de vida ao pai em seus últimos anos, apesar dos óbices e dificuldades que enfrentou para isso, teve seu fim com a partida de João.”
Advogado de Claudia Faissol, mãe de Luisa, Leonardo Amarante respondeu sobre temas tratados com João Marcelo, como a herança deixada pelo músico. “Não deixou bens imóveis, mas apenas os direitos autorais sobre a sua obra, e a ação judicial contra a EMI. A partilha será feita no inventário já aberto em partes iguais – 1/3 para cada herdeiro.” Em relação às dívidas, ele afirma que “serão pagas segundo ‘as forças da herança'”. “Muitas delas já foram pagas e ainda há algumas sendo discutidas na Justiça.”
Questionado sobre a afirmação de João Marcelo de que nunca foi apresentado a ele um exame de DNA da Luisa, Leonardo Amarante disse que não vai se posicionar sobre o que ele chamou de “tamanhas aberrações”.
Representando Maria do Céu, o advogado Roberto Algranti Filho diz que ela e João Marcelo “sempre tiveram uma relação muito boa”. Algranti reforça o que Maria do Céu afirmou, em entrevista ao jornal O Globo, que ela e João Gilberto nunca se separaram. “Eles nunca se separaram nos mais de trinta anos de relacionamento contínuo e notório. Este relacionamento ininterrupto encontra-se muito bem retratado em muitas dezenas de documentos que, no momento oportuno, serão levados ao Poder Judiciário”, diz. “A união estável entre eles é inequívoca e, como disse, está fartamente documentada.” Sobre a participação dela no testamento, ele diz: “Esta questão está sendo analisada pelo Poder Judiciário, e a nossa opinião é que a validade do testamento feito em favor de Maria do Céu será seguramente reconhecida judicialmente. Questão de tempo e de se vencer preconceitos”.