Uma década depois da criação do termo “nova classe média”, essa parcela da população no Brasil voltou a crescer de 2017 para 2018 – passando de 50% a 51% da população, uma adição de mais de 2 milhões de pessoas – após uma queda brusca nos dois anos anteriores. Embora ainda não tenham recuperado tudo o que perderam durante o período em que a economia recuou 8%, as famílias da classe C estão otimistas com o que está por vir e pretendem voltar a comprar bens de maior valor agregado, como eletrodomésticos e materiais de construção, segundo pesquisa do Instituto Locomotiva. Mas a busca por essas metas não será a qualquer preço: o consumo-ostentação dos tempos de bonança foi substituído pela exigência de um claro custo-benefício.
Essa nova relação com o consumo é “caminho sem volta”, segundo Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, especializado em estudar os hábitos da classe C. Com o aumento ainda tímido – de 0,9% – da renda desse contingente no ano passado, para convencer os 106 milhões de membros da classe média a gastar o dinheiro que têm em mãos – montante estimado em R$ 1,57 trilhão para 2019 -, as empresas terão de suar. “As marcas vão precisar saber muito mais sobre os hábitos desses consumidores para convencê-los a abrir a carteira”, diz Meirelles. “O consumo agora não vai estar mais ligado ao acesso a qualquer custo, à ostentação, mas sim à performance e à relevância de cada produto.”
Otimismo
Esse retorno ao consumo é pautado muito mais pela expectativa do que por avanços econômicos consistentes. Isso porque tanto o emprego quanto a renda ainda estão longe de recuperar os níveis anteriores à crise. Apesar da queda da inflação e do juro básico no patamar mínimo de 6,5% ao ano, o desemprego está na faixa de 12%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Para este ano, no entanto, as expectativas de crescimento do PIB ainda se situam em cerca de 2%, apesar de reduções recentes nas estimativas, o que pode ter um efeito positivo especialmente para a classe média. Segundo cálculos da consultoria MacroSector, a renda da classe C poderá crescer 3,5% em 2019, sobre o ano passado. A consultoria também projeta alta de 3% para as vendas no varejo este ano.
Todas essas perspectivas, no entanto, dependem de fatores ainda não concretizados – como a aprovação das reformas estruturais no Congresso. “Há uma expectativa de crescimento respaldada na aprovação das reformas. Caso isso não ocorra, podemos entrar numa crise pior do que a de 2014”, afirma José Ronaldo Souza Júnior, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Mais escolarizada, classe média ainda recorre a ‘bicos’
A nova classe média chega ao fim de sua primeira década de existência presa em um paradoxo embalado pela desaceleração da economia a partir de 2014. Apesar de essa população estar mais escolarizada – o total de pessoas de renda média com ensino superior subiu dez pontos porcentuais, para 48% -, o número de indivíduos vivendo de “bicos” cresceu, segundo pesquisa do Instituto Locomotiva.
Em 2008, 41% da classe C tinham emprego formal, enquanto 35% declaravam estar na informalidade ou trabalhar por conta própria. No ano passado, 40% tinham carteira assinada e 38% viviam de “bicos” ou atuavam por conta própria. Embora a crise tenha tido papel inegável no aumento das pessoas trabalhando na informalidade, o presidente do Instituto Locomotiva, Renato Meirelles, diz que há fatores sociais por trás do empreendedorismo entre os integrantes da classe C.
Apesar de a trajetória dos brasileiros de classe média ter sido parecida com a de uma montanha-russa – com forte crescimento até 2014 e uma freada sem precedentes de 2015 a 2017 -, o especialista diz que o acesso a novas categorias de consumo trouxe confiança a esses brasileiros. “Uma coisa é certa: paladar não regride e o brasileiro não quer abrir mão das conquistas.”
Assim, as pessoas estão mais dispostas a correr atrás dos próprios objetivos. O levantamento mostra que, quando questionados sobre a responsabilidade pela melhora de suas vidas, o esforço individual aparece em primeiro lugar isolado – citado por 65% dos entrevistados – e bem à frente de “agentes externos”, como a igreja, o governo ou a ajuda de familiares.
Segundo Meirelles, essa confiança na própria capacidade também se reflete na valorização de suas características, em vez da tentativa de se “mesclar” a outros grupos. Por isso, há muito mais membros da classe média que se identificam como negros. Entre 2008 e 2018, o total de negros da classe C passou de 41% para 59%.
Correndo atrás
A busca por melhores condições de vida pauta o dia a dia da família Pires, que vive no Jardim Miriam, na zona sul de São Paulo. Boa parte da renda da casa vem de atividades informais. Flávio Neves Pires, de 46 anos, ganha dinheiro no conta-gotas, vendendo doces feitos pela mãe – Maria, de 73 anos – em eventos e no Parque do Ibirapuera. “Vendi muito bem no carnaval”, comemora.
Flávio equilibra o trabalho de ambulante com serviços esporádicos de construção civil – a combinação de ambos lhe rende cerca de R$ 1,5 mil mensais. O restante do dinheiro da família vem da venda de salgadinhos, que também saem da cozinha de Maria. O principal objetivo de Flávio é ver a filha de 19 anos formada na universidade.
‘Consumidor da classe C está mais amadurecido ‘, diz especialista
Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, especializado em classe C, vê a retomada do consumo a partir deste ano, mas sem a euforia do passado recente. Mesmo com a lenta retomada da economia, essa faixa da população está disposta a gastar, mas sem ostentar. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Como a classe C vai gastar mais, se a taxa de desemprego ainda é alta e a recuperação da economia está lenta?
Há uma demanda reprimida. A crise já teve situações bem piores do que a se tem hoje. Essas pessoas foram adiando o sonho de consumo. No primeiro sinal de restabelecimentos, elas vão começar a comprar aquelas coisas que adiaram.
Diferente de 2010 e 2011?
Não vamos observar nenhum boom de consumo como houve em 2010 e 2011. Por três razões: gato escaldado tem medo de água fria. Os que se endividaram, aprenderam a dor de perder o que conquistaram. Outro motivo é porque não houve ainda melhora da economia. A terceira razão tem a ver com experiência. O consumidor da classe C cresceu na última crise buscando preço, procurando melhor relação custo-benefício, reclamando dos produtos que não eram de boa qualidade. Ele amadureceu. Esse amadurecimento é um caminho sem volta e vai ditar como vai ser nos próximos anos.
Como é essa nova classe C?
Essa nova/velha classe média continua sendo o principal mercado consumidor do Brasil para uma série de categorias. Isoladamente, é o maior consumidor de bens e consumo, mais do que as classes A, B, D e E juntas. Antes, a classe C pensava mais parecida. Hoje, é mais empreendedora e consciente do consumo.
As marcas talebans sumirão?
Sim. As “B brands” (marcas de segunda linha) passaram a ser feitas pelas indústrias que produzem as marcas líderes. O desafio das empresas agora vai ser como elas vão se reapresentar aos consumidores. Para retomar liderança, vão ter de investir fortemente em inovação e ter nova proposta de valor aos consumidores.
Então, as empresas também tiveram de fazer mudanças?
Sim. Nas crises anteriores, o consumidor para não abrir mão de uma categoria de produto, abria mão da marca. Só que as marcas mais baratas eram de qualidade duvidosa. Não à toa, quando tinha respiro da economia, o consumidor voltava para marcas líderes. Agora, nesta última crise, ao migrar para outras marcas, encontraram produtos com quase a mesma qualidade das marcas líderes. Perder é muito mais que deixar de ganhar. Os consumidores, ao encontrar essas marcas boas, não precisam voltar para líderes para ter qualidade. O consumidor, agora, não acha mais chique pagar mais caro. Chique é a melhor relação custo-benefício.
O que o consumidor deixou de compra na crise?
Máquinas de lavar. Geladeira de duas portas. Se quebrava, mandava reformar. Além de smartphone. O consumidor passou a comprar aparelhos usados. O mercado de segunda mão cresceu com a crise.
O consumidor vai mudar a maneira de gastar dinheiro?
Não tenho dúvida de que vai pensar melhor onde aplicar o dinheiro. O consumidor esta mais maduro.
Em que sentido?
Esse consumidor entende melhor quando deve comprar no atacarejo ou no mercadinho do bairro. Está mais informações sobre as marcas. O poder está com ele. E agora ele sabe o que está comprando, situação diferente da de 2010.
E usa a tecnologia a seu favor?
As novas tecnologias impactaram a forma do consumidor gerar renda. No passado, a pessoa que tinha comprado um carro em 60 meses, venderia o veículo em momento de aperto. Hoje, vira Uber. Se tem um produto que não usa mais, vende na internet. E usa a tecnologia a seu favor.