“Este depoimento é, quando pouco, um documento que me fará mais tarde relembrar os grandiosos dias que São Paulo viveu de julho a outubro de 1932 e os dias que também vivo como soldado”, diz o prólogo do diário de Nilo Porto. Guardado como relíquia pela família, a peça reúne algumas das tantas histórias do front contadas às filhas Célia e Cynthia, advogadas aposentadas, respectivamente com 63 e 60 anos.
Nesta segunda-feira, 9, os restos mortais de Porto serão transladados para o Obelisco Mausoléu aos Heróis de 32, no Ibirapuera, zona sul de São Paulo. As cinzas de outros sete ex-combatentes também serão levadas para o local, que já reúne vestígios de 853. Como aponta o presidente da Sociedade de Veteranos de 1932, coronel Mário Fonseca Ventura, o mausoléu reúne todas as facetas da revolução, desde o ex-governador (Pedro Toledo) até pessoas que trabalhavam na retaguarda, incluindo imigrantes.
Um dos que levarão os restos mortais da família para o mausoléu é o engenheiro aposentado Ricardo Pires Campos, de 76 anos, que fará o translado dos pais e do avô materno. A mãe, Guiomar, foi voluntária no Lunch Express, iniciativa que preparava marmitas para os combatentes. Já o avô, Edmundo Correa Pacheco, fez o policiamento civil, enquanto o pai, Rubens Pires de Campos, participou de batalhas. Dos três, o último a morrer foi a mãe, em 1975, que costumava falar muito daquele período e guardava as fotografias em um álbum, ainda preservado pelo filho. “Ela ficaria muito contente que isso está acontecendo”, diz.
Além de Guiomar, outras duas mulheres terão as cinzas levadas ao mausoléu, dentre as quais está Remédios Domingues Calandriello, morta em 2014. No local, já está seu marido, Américo. “Os pais permitiram que ela fosse ajudar. Apesar de ser jovem, gostava do que São Paulo estava fazendo”, recorda o filho, o engenheiro Diógenes Calandriello, de 77 anos.
A terceira mulher que terá as cinzas levadas para o mausoléu é Barbara Maria Barbosa, morta em 1979, e que trabalhou como enfermeira durante a revolução. “Ela tinha muito orgulho de ter participado”, conta o neto Edson Galvão, comerciante de 72 anos e descendente de 20 revolucionários.
No mausoléu, já estão as cinzas de seus pais, Rosa e José Galvão Nogueira, que participaram da revolução quando ainda eram adolescentes. “Meu avô paterno liderou o primeiro combate em Cunha (SP). Foram 11 fuzileiros que colocaram 400 fuzileiros navais para correr.”
Parte dessas histórias está no livro que escreveu sobre o tema, “Heróis desconhecidos – Revolução Constitucionalista de 1932”, lançado em 2014, no qual descreve sua história como a de “uma família unida em uma epopeia”.
Desafio
Não foi fácil incluir o nome de José Grant entre os oito ex-participantes que serão transladados. Inicialmente, a família tinha só uma fotografia do veterano em Cunha e precisou pesquisar. “Tudo o que tínhamos eram histórias que irmãos dele contavam”, diz a terapeuta ocupacional Mônica Rolim, de 52 anos, sobrinha de Grant.
Caso semelhante é o da pianista Conceição Branco, de 64 anos, que liderou a ideia de transladar os restos mortais de seu tio paterno Antônio da Paixão Branco Filho para o mausoléu. “No nosso País, essa história é esquecida, meu pai que nos ensinava sobre a revolução.”
‘Trincheiras foram a pia batismal da democracia’, afirma poeta
Os ideais dos combatentes de 1932 continuam vivos, apesar da derrota dos paulistas no campo de batalha. Foi um movimento espontâneo, uma luta de voluntários que se mobilizaram para derrubar o ditador Getúlio Vargas, e não uma conspiração da elite, como pretendia provar a propaganda oficial.
“As trincheiras de 1932 foram a pia batismal da democracia”, afirma o poeta Paulo Bomfim, de 92 anos, ao avaliar o legado da Revolução Constitucionalista. Ele tinha 6 anos de idade e acompanhou a guerra dos paulistas como escoteiro, em uma equipe coordenada pelo escritor Mário de Andrade.
O cientista político Bolívar Lamounier atribui ao movimento constitucionalista de São Paulo o sucesso da luta pela democratização do Brasil. “Demonizam 1932, mas é preciso lembrar que, sem a Revolução, não teríamos a Constituição de 1934”, observa Lamounier. “Foi uma conquista, apesar do autogolpe de 1937”, quando Getúlio instituiu o Estado Novo. O Manifesto dos Mineiros, que exigia a deposição do ditador em outubro de 1943, certamente se inspirou nos ideais de 1932.
Na mesma linha, o jornalista e historiador Luiz Octavio de Lima, autor do recém-lançado livro 1932 – São Paulo em Chamas, considera a Revolução Constitucionalista um movimento nacional, e não só paulista, pois teve apoio de grupos dissidentes de Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso, Minas, Pernambuco, Amazonas e Rio. “Existia um papo separatista radical em 1932, mas logo desapareceu”, diz. “O Brasil tem de se lembrar hoje do passado, quando Getúlio impôs censura à imprensa, perseguiu os adversários e tolerou a ação de milícias que agiam à margem da lei.”
Lima salienta a participação voluntária de jovens e adolescentes que insistiram em se alistar para defender São Paulo contra a ditadura, sem terem ligação com grupos ou partidos políticos. “Todas as classes participaram da mobilização, não foi só a elite.” Os primeiros paulistas a morrer foram os jovens que deram as iniciais de seus nomes à sigla MMDC: Miragaia, Martins, Dráusio e Camargo. Eles morreram em consequência de um tiroteio entre manifestantes constitucionalistas e partidários do governo federal, em 23 de maio de 1932.
São Paulo achou então que a luta armada era a única saída para derrubar Getúlio Vargas. Entre os líderes civis da Revolução estavam Armando de Salles Oliveira, Julio de Mesquita Filho e Paulo Nogueira Filho. A revolução deveria ser iniciada no dia 14 de julho, mas foi antecipada para o dia 9, por causa do risco de traição entre conspiradores.
Anistia
Presos após a derrota, os principais líderes foram deportados para Portugal. Eram 48 oficiais do Exército, 3 oficiais da Força Pública e 53 civis, entre os quais Julio de Mesquita Filho e seu irmão Francisco Mesquita, Armando de Salles Oliveira, Paulo Nogueira Filho, Pedro de Toledo, Antônio Mendonça e Guilherme de Almeida. Voltaram em 1933, com a anistia decretada por Getúlio.