Em ‘Leite Derramado’, Alvim sentiu-se influenciado por situação do País

Chico Buarque, que pretende assistir à estreia de Leite Derramado na sexta-feira, 14, não participou diretamente da transposição da obra para o teatro. Tampouco auxiliou na trilha sonora original, mas liberou o uso de alguns de seus clássicos, como Deus lhe Pague. “Trocamos muitas ideias ao longo do processo, que começou no ano passado”, conta o diretor Roberto Alvim que, ao trabalhar em sua versão, sentiu-se irremediavelmente influenciado pelos acontecimentos turbulentos que vêm marcando a sociedade brasileira nos últimos anos. “A reinvenção do País em várias direções tornou a peça uma ferramenta capaz de catapultar diferentes formas de se pensar a nação”, afirma. “Como o personagem Eulálio, cujos delírios fazem confundir o consciente com o inconsciente, também o Brasil passa por um momento de destruição e reconstrução.”

Firme em suas convicções, Alvim pretende, com a montagem, escancarar sombras. “É preciso mostrar que o Brasil não existe – o que existe são os brasileiros”, argumenta. E é esse país em constante modificação que se vê simbolicamente na figura de Eulálio, cujas nuances, tanto de um homem acostumado a mandar como a de um velho agora totalmente dependente dos outros, são perceptíveis no trabalho de interpretação de Juliana Galdino. Com a postura de um homem enfraquecido, mas que ainda busca sustentar a majestade, fumando freneticamente e com um tom de voz que exibe débeis vestígios de um passado glorioso, a atriz é um dos grandes trunfos da peça, promovendo com talento a fusão da figura de Eulálio e sua representação do Brasil atual.

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Inicialmente, Alvim pretendia comandar um elenco de 14 atores e dez músicos, mas o constante refazer e enxugar do texto (uma versão chegou a ter 80 páginas) o levou a mudar a escala da produção.

O que sempre pontuou o projeto era a melodia especialmente composta para o espetáculo por Vladimir Safatle. Filósofo e encenador trabalharam juntos em 2014 na peça Caesar – Como Construir um Império, um estimulante debate sobre o jogo das palavras. Ali, Safatle não se limitou a criar apenas uma trilha incidental, mas canções que também antecipavam a ação dos personagens.

Em Leite Derramado, o compositor desejou trabalhar com a ideia de plasticidade temporal e de presença espectral. “A música partirá de uma concepção de tempo própria ao romance Leite Derramado e que, a meu ver, é uma expressão maior da temporalidade histórica brasileira”, contou Safatle ao Estado, no início deste ano.

“O romance explora a sobreposição e a contração de tempos, a multiplicidade de velocidades que ocorrem simultaneamente, isso a fim de mostrar a experiência de um tempo que nunca passa por completo, que parece sempre retornar, como se o passado estivesse sempre a assombrar os vivos. Neste sentido, o romance expõe este tempo de pedra que parece ser a marca do Brasil. Eu queria ser fiel a tal compreensão formal, fazendo da música um tecido de tempos em imbricação, de velocidades simultâneas. Um tecido no qual mortos e vivos convivem em uma espessura espectral”, continuou.

Em cena, além de Juliana Galdino, estão também Renato Forner, Diego Machado, Taynã Marquezone, Caio DAguilar, Marcel Gritten, Luis Fernando Pasquarelli e Nathalia Manocchio. Juntos, eles buscam, no entender de Alvim, “a imperiosa tarefa de presentificar em nossa brutal contemporaneidade a exata, impossível e transfiguradora encenação da poesia”.

LEITE DERRAMADO
Teatro Anchieta. Sesc Consolação. R. Dr. Vila Nova, 245, tel. 3234-3000. 5ª a sáb., 21h; dom., 18h. R$ 12/ R$ 40. Até 13/11.

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