Entre 1929 e 30, Cecília Meireles escreveu uma série de artigos para “O Jornal”, importante periódico diário que circulou no Rio de Janeiro. Não se tratava, porém, da poesia que a tornou uma das principais autoras brasileiras – com aguda sensibilidade, Cecília sabia transportar as emoções que rodeavam seu cotidiano para o universo das palavras. Assim, aqueles artigos traduziam, em refinada prosa poética, a dor que a poeta sentia por viver um momento difícil: a convivência com a depressão do marido, o escultor e pintor português Fernando Correia Dias. Os textos estavam esquecidos até serem encontrados no início do ano e reunidos no volume “Episódio Humano” (176 páginas, R$ 35), que as editoras Batel e Desiderata lançam agora conjuntamente.
Em nenhuma linha o problema é exposto, mas Cecília consegue transformar a dor em algo quase palpável. “Por causa da depressão, meu avô se enclausurava; assim, para enfrentar um problema que na época não tinha um tratamento adequado, para se consolar de sua incapacidade de fazer algo, Cecília escrevia”, comenta Alexandre Carlos Teixeira, neto da poeta e agente literário de sua obra.
De fato, a angústia que, para os leitores despontava apenas como inspiração para a poeta, surge em diversos trechos dos artigos, enigmáticos, codificando seu verdadeiro pesar. Sensações expressas em trechos como “Tão longe andarás de mim que não poderei mais imaginar que algum dia estivesses perto”. Ou em “Esperas intermináveis foram desfazendo o tênue elemento da tua figura. De que era feito teu rosto quando aparecia na minha memória? De nuvem? De cinza? De aroma?”. E ainda: “Aprende-se a morrer.”
Apesar de identificados como “crônica”, tais textos apresentam uma estrutura diferente. Nem sua linguagem é leve e descompromissada, como marca o gênero. Ao contrário – ali está, em prosa, a mesma densidade lírica e simbólica que Cecília utilizava em seus poemas.
Teixeira conta que os avós se admiravam e se amavam profundamente. Todas as figuras femininas na obra de Fernando Correia Dias tinham a mulher como musa inspiradora – é o caso do desenho que ilustra a capa de “Episódio Humano”, assim como do perfil que está na contracapa. “Acredito que essa reunião de crônicas pode ser comparada a um dos livros mais famosos de Cecília, Cânticos”, diz Teixeira. “No texto em prosa, ela exterioriza sua perplexidade, enquanto na poesia dos Cânticos ela parece incentivar o marido a não desistir.”
Uma última tentativa aconteceu em 1934, quando Cecília Meireles foi convidada pelo governo português a fazer uma série de conferências em cidades como Lisboa e Coimbra. O convite reanimou o casal, especialmente Correia Dias, na expectativa por voltar à terra natal. “O efeito, porém, foi contrário”, conta Teixeira. “Cecília foi muito festejada pelos portugueses, que não receberam com o mesmo calor seu conterrâneo.”
O resultado foi trágico – de volta ao Brasil, Fernando aprofundou-se em sua crise até se matar, em 1935. As crônicas, portanto, terminaram como um testemunho de Cecília em seu ímpeto de eternizar seu presente. Em 1939, quando fazia dez anos do início de sua colaboração ao “O Jornal”, a poeta decidiu recuperar seus artigos e os organizou com a disposição de editá-los em livro. Preparou até uma introdução, em que revela uma dor persistente.
“Relendo-os, verifico, dez anos depois, que ainda me comovem essas páginas. Nelas está minha vida, em toda a sua pureza, numa fase amargurada de construção. Amo essa tristeza conformada da minha disciplina”, datilografou ela.
A introdução, assim como 20 recortes, foram encontrados em sua biblioteca, ainda hoje intacta, no casarão onde morou, no bairro do Cosme Velho, no Rio, até 1964, quando morreu dois dias depois de completar 63 anos. “Em sua recomendação, Cecília comentou ainda que desconfiava da existência de outros artigos, que encontramos nos arquivos da Biblioteca Nacional”, conta Carlos Barbosa, editor da Batel, que, entusiasmado com a descoberta, assumiu a edição da obra em livro.
Cecília Meireles comentou ainda, em sua carta, que excluía do conjunto os dois primeiros textos da série (“Roerich” e “Taj Mahal”), considerados por ela “peças de circunstância”. Pelo mesmo motivo, Barbosa e Teixeira não relacionaram “O Homem-Grande”, encontrado na Biblioteca Nacional. “Embora não estejam editados no grupo dos textos aprovados por ela, decidimos incluir os três textos no final do volume, pois se tratam de escritos inéditos em livro”, explica Barbosa.
Reaberta depois de conturbada disputa familiar, a biblioteca de Cecília Meireles guarda, no entender de Teixeira, mais tesouros inéditos. “Ela cuidava bem de sua obra, deixando até sugestão de ilustração para a capa dos futuros livros.” (AE)