Num filme institucional de Gramado, que passava todas as noites antes da programação do festival, o crítico Rubens Ewald Filho, responsável pela seleção, brincava que o Brasil não tem Oscar, mas tem Kikito. Quatro Kikitos – melhor roteiro, fotografia, direção de arte e, cereja do bolo, melhor ator para Paulo Tiefenthaler. É uma pena que o Kikito não seja o Oscar, porque com quatro Oscars qualquer filme estoura na bilheteria e já se poderia antecipar O Roubo da Taça como um dos sucessos do ano. O filme estreia nesta quinta, 8, nos cinemas brasileiros. A curadoria de Gramado fez uma aposta na comédia, gênero em geral menosprezado nos festivais, e o júri avalizou.
O Roubo da Taça remete aos anos 1980, quando a Taça Jules Rimet foi roubada da sede da CBF, a Confederação Brasileira de Futebol. Para se apossar em definitivo do troféu, o Brasil ganhara três vezes a Copa do Mundo – em 1958, 62 e 70. Ganhou mais duas vezes depois, mas aí a taça era outra. Fora-se a lendária Jules Rimet, presumivelmente fundida e transformada em barra de ouro na Argentina. Há controvérsia sobre o roubo e o destino da taça. De cara, um letreiro informa que uma parte da história de O Roubo da Taça é real. O restante, e é quase tudo, é a versão do diretor e corroteirista Caíto Ortiz sobre o que pode ter ocorrido.
Um conceituado diretor brasileiro estranhou que Caíto tivesse feito uma comédia. Achava que o assunto poderia render um drama. O diretor arregala os olhos. Sua formação como cinéfilo fez-se por meio da comédia italiana, pelo simples fato de que a melhor amiga de sua mãe era italiana e adorava cinema. Garoto, Caíto via aqueles filmes de Mario Monicelli. Os Eternos Desconhecidos ficou gravado em sua lembrança. Um golpe à italiana. Ladrões fajutos, “gente torta”, como define o diretor. Foi assim que nasceram os golpistas de O Roubo da Taça. Atrapalhados, ineptos. A solução final vem por meio de um twist, uma reviravolta inesperada.
Os caras se acham espertos – a mulher é que é esperta. Paulo Tiefenthaler ganhou o Kikito, mas Taís Araújo, sem Kikito, arromba a festa. Faz a gostosa, e faz muito bem, com a exuberância que Deus lhe deu. Seus trejeitos em cena evocam a mítica Adele Fátima. Caíto diz que não se inspirou em Os Eternos Desconhecidos, mas reconhece que Monicelli estava no seu inconsciente. Taís, sim, inspirou-se em Adele, a mulata nota 100, cujas curvas inspiraram Oscar Niemeyer no desenho do Sambódromo, do Rio. “Totalmente”, ela diz. O filme só ganha com isso.
‘O Roubo da Taça’: uma neochanchada entre a mordacidade e a grosseria
O Roubo da Taça, de Caíto Ortiz, se inspira no famoso desaparecimento da Copa Jules Rimet da sede da CBF, em 1983. O Brasil a havia conquistado em definitivo no México, em 1970. Era o símbolo maior do outrora melhor futebol do mundo. Feita de ouro maciço para a primeira Copa do Mundo, foi roubada, vendida e, diz-se, derretida. O país que a conquistou em definitivo a aniquilou. Uma vergonha.
Tem coisas que só acontecem mesmo no Brasil. A taça exposta deveria ser uma réplica. Mas, por algum motivo, a cópia foi colocada num cofre e a original ficou exposta. Havia um vidro blindado a protegê-la, mas estava fixado em uma moldura com pregos, removíveis com facilidade. Se mambembes eram os ladrões, mambembes e meio eram os detentores da taça. Esse é o Brasil. Toda essa trapalhada é uma piada pronta – com travo amargo. Mas bons pontos de partida não dão, necessariamente, bons filmes. O estilo adotado por O Roubo da Taça é o da comédia gritada, com pé no grotesco, que rende alguns momentos de graça, mas, no todo, parece um tanto tediosa.
Tem qualidades
O protagonista, Peralta, é vivido por Paulo Tiefenthaler, que recebeu o Kikito de ator no Festival de Gramado. Um evidente exagero. Seu personagem é uma persona do próprio Paulo, famoso como chef em seu programa no Canal Brasil, o extinto Larica Total. Mas, se não o vemos na pele de um, digamos, Hamlet, é inegável que tem graça como o jogador compulsivo, malandro total, e marido da deusa Taís Araújo, esta no papel da gostosona clássica das chanchadas.
Aliás, é evidente a intenção do diretor em inspirar-se nas antigas chanchadas, que em seu tempo fizeram a alegria de milhões de espectadores e, posteriormente, foram reabilitadas pela crítica como produto vintage da nossa brasilidade maliciosa. Com o tempo, fomos descobrindo que não éramos tão espertos assim e malandros mesmo eram os outros, que julgávamos otários. Com essa consciência, as chanchadas entraram em desuso.
É, portanto, com a vocação de uma neochanchada que O Roubo da Taça entra em campo. Mas uma chanchada diferente dessas oportunísticas que andam por aí, faturando milhões com seu gosto de isopor. Aqui, a coisa é um tanto mais “suja”, o que fala em seu favor. As cores quentes da fotografia de Ralf Strelow, premiado com o Kikito, expressam esse tom anos 1980, quando talvez não tivéssemos (ainda) perdido de todo a inocência.
Pouco (ou melhor, nada) preocupado com o discurso politicamente correto, O Roubo da Taça faz alguma graça nessa região indefinida entre a mordacidade e a grosseria. Nem sempre o roteiro (de Caíto Ortiz e Lucas Silvestre, também premiado) segura a onda nessa zona cinzenta de onde brota o riso inteligente, mas tem alguns achados. Quando nada, expressa essa esculhambação generalizada, que durante tanto tempo ostentamos como logotipo nacional, coisa nossa e portanto desculpável. Mas, no fundo, até que é assim mesmo, ou não é?
Paulo Tiefenthaler fala da delícia de ser protagonista premiado
Cult na TV com seu programa de culinária no Canal Brasil, o Larica Total, Paulo Tiefenthaler veio, como se diz, comendo nas bordas no cinema. Fez papéis de coadjuvante. O Roubo da Taça é seu primeiro protagonista.
Qual a sensação de ser melhor ator em Gramado?
Estava achando ótimo o filme estar no festival e aí começou o falatório. Fica que você pode ganhar. Estou na novela (Haja Coração). Voltei para o Rio, para gravar, e retornei a Gramado. Vi o filme do Domingos (Oliveira), Barata Ribeiro. Achei que o Caio Blat ia ganhar. Desencanei. E aí ganhei. Foi ótimo.
Houve muita improvisação?
Eu improvisava muito no Larica. Caíto (Ortiz, o diretor) escreveu um roteiro sólido, a gente ensaiou, coloquei minhas rubricas. Então, improvisar mesmo, não improvisei muito. Algumas cenas. Aquela fala Dissolve (a taça) com carinho é minha. Caíto adorou. A liberdade estava na encenação. Tínhamos um grande steadycam, um francês que Caíto importou. A gente fazia um balé no set. Achei bacana. Está no filme.
Você é protagonista, ganhou prêmio e tudo, mas Taís (Araújo) é poderosa. Como se estabeleceu a química entre vocês?
Foi muito rápido, Taís é sensacional. Ela queria muito fazer o filme. Vestiu a Dolores (personagem). Já chegou com aquele poder nos ensaios. E eu fui junto. Foi muito gostoso.
Coadjuvante, nunca mais?
Cara, tô adorando essa história toda, mas nunca pensei que meus papéis de coadjuvante fossem menores. No Trinta, por exemplo. Cada personagem tem sua história, é ótimo ser protagonista, mas se o papel é pequeno e bom, que mal tem?
Saudades do Larica?
Foi muito legal. Eu fazia loucuras naquela cozinha. Já foi. Tenho outros projetos no canal (Brasil). Espero que deem certo.