
Ainda não foi identificada a pessoa que teria disparado e-mails com conteúdo misógino e racista contra a vereadora Ana Nice (PT) de São Bernardo. A parlamentar denunciou a situação na tribuna da Câmara na quarta-feira (28/05) e uma semana após o episódio vir à público a petista ainda não recebeu resultado ou relatório nem polícia, já que um boletim de ocorrência por injúria racial foi registrado no 1° Distrito Policial da cidade, nem da própria casa legislativa.
“No momento em que eu denunciei os fatos, recebi bastante acolhimento de todos os colegas independente da bandeira partidária, chegaram até a cogitar abrir uma comissão para investigar a situação, mas depois não falaram mais do assunto. Também não recebi nenhuma atualização sobre a apuração da Câmara. Também da polícia ainda não tive nenhum retorno”, declarou Ana Nice.
A vereadora reproduziu na tribuna algumas das frases do e-mail recebido: “Mercado de escravos… Qual foi o seu preço, Ana? O capitão do mato (vai) te capturar e prender no pelourinho. Corre cabeção!”, reproduziu. Além das frases racistas, o texto faz vários xingamentos à parlamentar.
Além do episódio envolvendo Ana Nice, também na última semana, as deputadas estaduais de São Paulo também receberam e-mails com ameaças de morte e de estupro. Um homem de 28 anos é investigado. Todas as 24 deputadas estaduais foram copiadas no e-mail.
A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, também sofreu ataques durante uma audiência no Senado, da qual era convidada. Na terça-feira (27/05) a ministra foi à comissão de Infraestrutura daquela casa legislativa e acabou atacada pelo senador Marcos Rogério (PL-RO), presidente do colegiado, que cortou o microfone da ministra em diversos momentos. Ao ser confrontado por Marina, o senador disse: “Me respeite, ministra, se ponha no teu lugar”. Na mesma sessão o senador Plínio Valério (PSDB-AM) disse que “a mulher merece respeito, a ministra não”. Marina então exigiu um pedido de desculpas, que não foi atendido, então ela se retirou da reunião.
Para o cientista político e professor da UFABC (Universidade Federal do ABC) Diego Sanches Corrêa, esse fenômeno dos ataques contra mulheres, principalmente mulheres negras que ocupam posição de destaque na política, tem dois fatores; o primeiro é o crescimento de setores muito conservadores que veem com restrição a participação de mulheres na política, o outro fator tem a ver com um racismo estrutural. “A sociedade brasileira se modernizou mas ainda tem raízes machistas e racistas. Por mais que esses conservadores neguem esse passado, o voto da mulher tem menos de 100 anos e se a sociedade evoluiu com a mulher ocupando seu espaço, a cultura do povo muda muito mais lentamente”, analisa.
Corrêa considera que esses ataques podem assustar mulheres que pensam em atuar como militantes ou agentes políticas. “Esse é um desafio e pode por potenciais candidatas a pensarem duas vezes. Nas eleições os espaços de fecham por várias razões, há resistências nos partidos que colocam mulheres sem capacidade de se elegerem e não disponibilizam recursos, deixando claro que aquilo é apenas para cumprir a cota eleitoral. Até pouco tempo o Congresso não tinha nem banheiro feminino, o que é um absurdo, agora a ameaça e o racismo são crimes que precisam ser punidos com rigor, pois a punição é também uma forma de educar a sociedade”, aponta.
Intimidação
Ana Nice diz que a intenção dos ataques é clara e vai no sentido de intimidar e fazer com que as mulheres se afastem da política. “O propósito é esse, o de afastar as mulheres da política, nos desqualificar para que nos desestimulemos. Eu não vejo outro motivo para os ataques contra mim do que o ódio contra mulheres e pessoas pretas ocupando um lugar na Câmara. Quando a gente se torna uma pessoa pública ficamos mais expostos e vulneráveis, mas isso não vai me intimidar. Esses ataques são são apenas contra mim, são contra a Democracia. Eu acredito que isso não foi por acaso, a cada episódio que acontece as pessoas com esse perfil misógino e racista, se sentem mais fortalecidos”, destaca a vereadora.
Apesar de garantir que não desistirá da atuação política por causa das ameaças, Ana Nice, diz que é muito mais desgastante para uma mulher negra conquistar e garantir seu espaço na política. “A gente não quer precisar ser guerreira o tempo todo para ser respeitada”, completa.
Para Fernando Luiz Monteiro de Souza, doutor em Ciências Sociais, mestre em Ciência Política e professor da USCS (Universidade Municipal de São Caetano do Sul) as ações violentas contra as mulheres da política é uma reação de grupos que são contra os postos importantes conquistados por elas. “Há predominância dos homens no sistema político brasileiro e por isso o movimento feminista, há anos, vem lutando na busca por maior representatividade. Uma sucessão de grupos de mulheres feministas tem brigado, a partir de suas experiências, por espaço de representação política e pelo reconhecimento dessa representatividade e força política. Por outro lado a gente assiste a uma reação conservadora a esse avanço do pensamento dessas mulheres e presença delas em espaços que eram de predominância masculina”, aponta.
Para o cientista político o esforço da mulher é muito maior para alcançar o posto político e que só é conquistado diante da participação de coletivos de mulheres e alianças. “A gente vê no Congresso a dificuldade da eleição de mulheres, principalmente de mulheres pretas. A gente percebe o quanto é difícil essas candidatas terem apoio efetivo dos partidos e não estarem lá apenas para cumprirem uma cota, daí é interessante ver essas mulheres burlarem esse sistema machista que boicota a presença delas. Elas vencem essas barreiras porque se organizam em busca de base política e de apoio. É uma fantasia achar que elas conseguem quebrar esses espaços de poder machistas de forma individual. O avanço delas é resultado de muita luta e organização desses movimentos de base onde estão. Chegar a um espaço político não é uma luta para eleger uma mulher, são várias mulheres que têm lutado há gerações para a conquista deste espaço, para se fazerem ouvir e fazerem valer sua vontade”, completa.
Decoro
Em Ribeirão Pires, a única mulher, negra e parlamentar de oposição, Fernanda Henrique (PT), disse que não recebeu textualmente ameaças, mas diz que é constantemente confrontada. Ela relata que ao falar durante as sessões tem o som do seu microfone cortado. Ela disse que se solidarizou com as deputadas estaduais e com a vereadora e colega de partido Ana Nice. Para ela essas situações consecutivas vistas nos últimos dias não são coincidentes.
“Isso não é um movimento isolado, coisas assim estão acontecendo no Brasil todo, provavelmente orquestradas por grupos racistas e machistas. Cresceu muito a ousadia destes grupos desde o golpe que depôs a presidente Dilma Rousseff (PT)”, rebate a parlamentar ribeirãopirense.
Em uma ação preventiva, a parlamentar anuncia que vai apresentar um projeto de lei para qualificar a violência política de gênero como quebra de decoro parlamentar o que pode ensejar a cassação do mandato do autor.
Até o fechamento desta matéria a Câmara de São Bernardo não se pronunciou sobre a apuração do caso envolvendo a vereadora Ana Nice. Assim que a Casa se pronunciar esta matéria será atualizada.