No próximo dia 7 a Lei Maria da Penha, considerada pela ONU (Organização das Nações Unidas) uma das três melhores do mundo na prevenção e proteção da violência contra a mulher, vai completar 18 anos. Neste tempo a lei sofreu alguns aperfeiçoamentos que a tornaram mais eficiente, porém, poderes públicos e instituições ainda precisam se adaptar a ela para que a sua aplicabilidade seja mais efetiva. Além disso, conforme a sociedade muda, a lei ainda sofrerá mais mudanças.
Apesar de ter uma das três leis mais modernas do mundo, atrás apenas de Espanha e Chile, o Brasil ainda é o quinto país em que mais se mata mulheres. Somente no mês de junho, na região metropolitana de São Paulo, fora a Capital, foram três feminicídios registrados, que é quando a mulher é morta pela sua condição de gênero, metade do total de mulheres mortas no mesmo período.
Foram também 14 tentativas de homicídio, 935 queixas que chegaram às delegacias de polícia de lesão corporal, 1.046 casos de calúnia, injúria e difamação, 1.487 registros de ameaça, 31 casos de invasão e 150 episódios de danos causados por homens vitimando mulheres. Esses números são da Secretaria de Segurança Pública. Já no ABC os casos de violência sexual, foram 288 nos primeiros seis meses deste ano entre casos de estupro e estupro de vulnerável.
Garantia da integridade
Para a professora de Direito Penal da USCS (Universidade Municipal de São Caetano do Sul) Estela Bonjardim, a lei não é estática e muda junto com a sociedade. “A Lei Maria da Penha é uma ação afirmativa, que se adota para garantir a igualdade. Quando ela surgiu esperava-se que, com o seu surgimento, em pouco tempo já se pudesse conquistar essa igualdade material entre homens e mulheres e, ao longo do tempo, essa lei se tornasse desnecessária. Infelizmente o que nós vemos é o contrário, as mulheres precisam cada vez mais recorrer à Lei Maria da Penha para garantir a sua integridade”, analisa.
Um dos méritos da lei, segundo a professora da USCS, foi o de além de elencar todas as formas de violência a que a mulher pode ser submetida, não apenas a física, mas a psicológica, sexual e patrimonial. “Além desse mérito criou também as medidas protetivas de urgência que são uma forma de salvaguardar a integridade física, moral e a própria vida da mulher e de seus filhos, quando há indício grave de ameaça”, diz.
Estela Bonjardim considera que a legislação pode e deve ser constantemente melhorada. “Acho que ela vem sendo melhorada todos os dias, como com as Patrulhas Maria da Penha, as iniciativas do terceiro setor e de empresas em parceria com os governos; como a da empresa de cosmético que dá voucher em aplicativo de transporte para a mulher ter uma corrida de graça quando estiver em risco. Essas iniciativas mostram que a lei está em evolução. Gosto de destacar os botões de pânico. Na pandemia tivemos a explosão da violência familiar por conta do confinamento. Essa iniciativa foi bastante saudável; as prefeituras desenvolveram esses aplicativos que são acessadas por palavras código com possibilidade de deslocamento de uma patrulha em menor tempo”, completa a professora.
Quinto país que mais mata mulheres
Para a delegada titular da Delegacia de Defesa da Mulher de Diadema, Renata Cruppi, é necessária a compreensão para a melhor aplicação da lei que define o papel de cada ente público na rede de proteção. “Temos a terceira melhor lei do mundo, mas ainda somos o quinto país que mais mata mulheres e a maior parte destas mortes ocorrem no ambiente familiar.
Renata lembra que não é só quem aplica a lei, mas todos têm obrigação de também fazer alguma coisa, seja sendo testemunha, chamar a Polícia Militar, discar o 180 e reagir ao menor sinal, seja até uma piadinha no trabalho. “Mesmo se a mulher não está confinada em casa, porém está em sofrimento, tem algo errado. Tem que pensar que homens podem estar fragilizando essas mulheres e impedindo seu avanço”, avalia.
Violência psicológica
Para a feminista, socióloga e docente da FMABC (Faculdade de Medicina do ABC), Silmara Conchão, o melhor aperfeiçoamento da lei foi o que reconheceu toda a forma de violência contra a mulher. “A violência psicológica é muito castradora da liberdade e da saúde da mulher, então essa mudança vem chamar a atenção da sociedade. A medida protetiva é extremamente necessária, protege a integridade física e psicológica da mulher e precisa ser efetivada para garantir a proteção. É essencial para afastar o autor da agressão da mulher”, sustenta.
Segundo Silmara o avanço de medidas tecnológicas, como os diferentes tipos de botão de pânico, também ajudaram a conter os homens que, mesmo com medida protetiva perseguem as mulheres. Mas ela considera que a infraestrutura oferecida é pouca. Apesar do governo federal ter sancionado lei que diz que as cidades devem ter delegacias da mulher com funcionamento 24 horas por dia, na prática a lei não é cumprida.
No ABC as Delegacias de Defesa da Mulher funcionam das 8h às 19h, mas somente de segunda à sexta-feira, e ficam fechadas nas madrugadas, finais de semana e feriados, quando mais precisam. “Mulheres recorrem a delegacias comuns, e todas as delegacias, mesmo as da mulher, têm problemas de revitimização e isso acontece porque não houve processo de formação permanente dos profissionais que atuam nas delegacias”, diz a professora da FMABC.
Para Silmara, a Lei Maria da Penha é uma das três melhores leis do mundo segundo a ONU, tipifica a violência contra a mulher enquanto crime e foi um grande avanço. “Claro que ajustes devem acontecer nos processos de avanço da sociedade, mas ela é extremamente abrangente e chama a responsabilidade de todos para a violência doméstica, fala de uma rede de enfrentamento a violência. Nosso maior desafio é atualizá-la”, completa Silmara.
Faltam políticas públicas de proteção
Para a socióloga e ex-secretária de Políticas para Mulheres de São Paulo, Dulce Xavier, que também integra a Frente Regional do ABC de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher um avanço foi a prisão para o homem que descumprir media protetiva, outro foi o uso de tecnologia com os aplicativos do tipo botão de pânico. Mas falta, segundo ela, a aplicação de várias políticas públicas de proteção.
Dulce diz que a lei foi enfraquecida na sua elaboração quando colocou-se que estados poderiam criar juizados de violência doméstica, ao invés de colocarem que eles deveriam criar. Fica a critério de cada executivo estadual. “A lei tem um texto privilegiado, é uma das melhores do mundo, é resultado de processo de discussão das organizações de mulheres, mas a dificuldade é fazer com que as instituições incorporem o que preconiza a lei. A medida diz que a mulher tem que estar acompanhada por advogado ou advogada quando vai denunciar a violência, mas como uma mulher que não pode pagar advogado vai ter assistência jurídica se a Defensoria Pública tem pouca gente e não está em todas as cidades? A rede de proteção precisa ajudar essa mulher a se reestruturar, com programa de renda e aluguel social para mulheres em situação de violência doméstica. Juiz é que vai ver isso e é o município que vai ter que prover, porém é uma dificuldade operar isso”, diz a socióloga.
Segundo Dulce, não é só parar a violência, a mulher tem que se reestruturar para sobreviver economicamente e socialmente. Isso é muito difícil. Tem que ter casa abrigo até que se resolva essa situação de perseguição e ameaças de morte, às vezes a mulher precisa até mudar de Estado. “A gente quer chegar a um dia em que não se precise mais de casa abrigo e outros mecanismos de proteção. Mas estamos longe ainda esse ideal. Falta muito investimento em ações para divulgação dessa rede de proteção, pois a mulher não sabe onde procurar. Precisa informação para as meninas, pois os estupros de menores de 14 anos têm crescido muito. É preciso ter uma rede de saúde só para tratar dos casos de mulheres vítimas de violência sexual mas, ao contrário, serviços de aborto legal estão sendo fechados”, completa Dulce Xavier.