Em Cannes, obras com temas urgentes

Os filmes que disputam a Palma de Ouro do 76º Festival de Cannes, que termina neste sábado, 27, espelham discussões quentes da sociedade. Firebrand, por exemplo, longa de Karim Aïnouz que se passa na corte de Henrique VIII e conta a história de Catherine Parr, mostra um rei tirânico e violento e uma mulher lutando contra a invisibilidade. Um história que remonta à Inglaterra dos anos 1500, mas que se repete hoje – em todos os lugares do mundo.

Homofobia, bullying, intolerância religiosa, racismo e exploração dos povos indígenas também ganharam a atenção dos cineastas que, mesmo voltando a tocar em assuntos já explorados por diversos ângulos – caso do Holocausto -, conseguiram apresentar uma história original que “arrepiou” a crítica. The Zone of Interest, de Jonathan Glazer, por exemplo, que discute a banalização do mal, é um dos favoritos à Palma de Ouro.

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ASSASSINATOS

A história de Killers of the Flower Moon, de Martin Scorsese, se passa na década de 1920, em Oklahoma, nos Estados Unidos. Mas poderia ser hoje. O povo indígena osage, que tem a maior renda per capita do país depois de descobrir petróleo nas terras recebidas depois de serem removidos de suas áreas originais, está sendo dizimado aos poucos, em assassinatos misteriosos.
Os culpados são os brancos. Além de estarem por trás dos crimes, são guardiões dos osages considerados incapazes (quase todos) e casados com mulheres desse povo, de olho nos títulos de propriedade.

Scorsese incomoda ao falar de morte de indígenas donos de terras com petróleo

Em Killers of the Flower Moon, de Martin Scorsese, Ernest (Leonardo DiCaprio) volta da Primeira Guerra Mundial e é abrigado pelo tio, o poderoso William Hale (Robert De Niro). Ernest se casa com a forte e doce Molly (Lily Gladstone), que integra o povo osage e vive uma grande tragédia familiar.

Homecoming, da francesa Catherine Corsini, acontece na França de 2023. Na história de segredos familiares envolvendo Khédidja (Aïssatou Diallo Sagna) e suas duas filhas adolescentes, a diretora inclui a desigualdade social – a mãe volta à ilha da Córsega para trabalhar como babá de uma família rica, branca e progressista – e o racismo.

As jovens reagem de maneiras diferentes. Jess (Suzy Bemba) é a estudante modelo e filha comportada, que acredita em se adequar ao sistema. Farah (Esther Gohourou) é rebelde e não hesita em confrontar ao ser tratada de forma racista.

A diretora, porém, viu-se envolvida no debate de como os filmes e séries de TV muitas vezes exploram indevidamente os corpos de atores, especialmente mulheres e mais jovens. Ela foi acusada de abuso verbal e físico e de filmar uma cena de sexo com uma menor de idade que não estava prevista.

Em Firebrand, sua primeira produção em língua inglesa, o brasileiro Karim Aïnouz (A Vida Invisível de Eurídice Gusmão) volta a falar de uma mulher invisibilizada: Catherine Parr (Alicia Vikander), a última casada com o rei Henrique VIII, da Inglaterra, a sobreviver a ele.

TIRANO

Parr foi a primeira autora a publicar um livro na Inglaterra usando o próprio nome e não um pseudônimo e educou três dos filhos de seu marido, incluindo a futura rainha Elizabeth I.

Mas quase ninguém conhece sua história. No filme, a personagem está constantemente em alerta para defender suas ideias sem causar a ira de Henrique, que mandou decapitar duas de suas mulheres e se divorciou de outras duas. Flertar com outras na frente dela é a violência mais leve que ele comete contra Catherine Parr. Por muito tempo, Henrique VIII foi considerado um bufão, quando, na verdade, era um tirano não só com as suas mulheres, mas com todo o reino.

Em Monster, Hirokazu Kore-eda (dos ótimos Ninguém Pode Saber e Assunto de Família) faz um filme dividido em três partes, com pontos de vista diferentes. Saori (Sakura Ando) percebe o comportamento estranho do filho Minato (Soya Kurokawa). Ela confronta a escola, suspeitando que um professor bateu nele. O melhor amigo de Minato é Yori (Hinata Hiiragi), embora ninguém saiba disso dentro do colégio.

Lá, Yori prefere passar tempo com as meninas por sofrer bullying – os garotos o maltratam por causa do seu jeito suave. Em casa, é espancado pelo pai. É com a delicadeza de sempre que Kore-eda fala de bullying, masculinidade tóxica alimentada desde a infância e homofobia. Como disseram Kurokawa, de 13 anos, e Hiiragi, de 11, na entrevista coletiva em Cannes, “não há nada demais gostar de outro menino, é uma coisa natural”.

INTOLERÂNCIA

Em Rapito, o italiano Marco Bellocchio inspira-se em um caso real que aconteceu em Bolonha, no século 19, quando o menino Edgardo Mortara, judeu, foi batizado na Igreja Católica à revelia de seus pais e sequestrado a mando do papa para receber uma educação cristã.

Edgardo e sua família, na verdade, são vítimas de algo além da intolerância religiosa: uma disputa política entre o papa, que controlava grande parte do território italiano, incluindo Bolonha, e as forças do Reino da Itália, que buscavam a unificação do país. Rapito trata da perseguição aos judeus e do uso da religião para fins políticos.

Além de Homecoming, o documentário Youth (Spring), do chinês Wang Bing, também trata do tema. O cineasta acompanha um grupo de jovens que migra das províncias de economia agrária, na China, para uma região conhecida pela indústria têxtil. Lá, garotos e garotas trabalham até 15 horas por dia em pequenas oficinas, moram em alojamentos pouco salubres e falam sobre sua vida e seus sonhos nada ambiciosos, o que coloca em dúvida o futuro.

Faz dez anos que Jonathan Glazer lançou Sob a Pele (2013), com Scarlett Johansson no papel de uma alienígena que se alimenta de homens. Seu novo longa é bem diferente. Em The Zone of Interest, baseado no romance do recém-falecido escritor Martin Amis, Hedwig (Sandra Hüller) está felicíssima com sua nova casa. Ela tem espaço para criar seus seis filhos, um jardim com piscina, muitos funcionários e faz passeios agradáveis ao rio. Ela doa as roupas extras que recebe para seus empregados. De vez em quando, um barulho de tiro ou um grito corta o ar.

BANALIDADE

O marido de Hedwig, Rudolf Höss (Christian Friedel), é comandante de Auschwitz, e sua casa fica colada ao muro do campo de extermínio onde morreu mais de 1 milhão de pessoas. O que choca aqui é a banalidade: Hedwig e Rudolf não se incomodam nem um pouco com o que acontece ao lado, nem com a fumaça, nem com o cheiro. Por que não ficar com o casaco de pele de uma pessoa assassinada se ele não vai mais ser usado? O muro? É só esconder com plantas. Na reunião de trabalho, o extermínio de milhares de judeus húngaros é discutido como se fosse a operação de distribuição de um produto qualquer de uma empresa comum.

O nazismo é um caso extremo, mas o filme serve de lembrança sobre como o ser humano é capaz de se dissociar de suas atitudes más, legitimando-as ou normalizando-as. E é assim que dá para justificar o machismo e o racismo, a homofobia e o bullying, a desigualdade social e o extermínio de pessoas.

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