Teto entra no foco das campanhas

A PEC “Kamikaze”, que ampliou o valor do Auxílio Brasil e criou novos benefícios, emparedou de vez o teto de gastos e, segundo analistas, tornou insustentável a permanência da regra fiscal nos moldes atuais. Agora, os investidores não se perguntam mais se o teto será alterado, mas o que será colocado no seu lugar. As campanhas dos pré-candidatos à Presidência também já defendem mudanças no mecanismo – incluindo o petista Luiz Inácio Lula da Silva e o próprio presidente Jair Bolsonaro (PL), que aparecem na frente nas pesquisas de intenção de voto.

Principal âncora da política fiscal do País, o teto limita o crescimento das despesas do governo de um ano para o outro à inflação. Criado no governo Temer, foi visto como base para a retomada dos investimentos e da credibilidade das contas públicas.

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Mas só no atual governo, a regra já foi alterada cinco vezes. Duas dessas alterações, em menos de sete meses, abriram espaço a gastos maiores em pleno ano eleitoral: com a PEC dos Precatórios, em dezembro do ano passado, e agora com a PEC “Kamikaze”. Isso aumentou a percepção de risco fiscal a partir de 2023, e levou investidores a cobrar juros mais altos para comprar títulos do governo, além de se refletir nas cotações do dólar.

O aumento das despesas com o Auxílio Brasil, que passou de R$ 400 para R$ 600 até o fim do ano, é chave para entender por que o funcionamento do teto está em xeque. Embora aprovado para ser temporário, é dada como certa entre os técnicos a manutenção do novo valor no próximo governo, porque não haveria ambiente político para corte de despesas do Orçamento. O gasto com o benefício no ano inteiro chegaria a R$ 150 bilhões, no mínimo – valor próximo de todo o espaço que o governo tem para despesas não obrigatórias, incluindo investimentos. Outro fator que está na conta é a pressão por reajuste dos salários dos servidores, que estão congelados.

Na sexta-feira, Bolsonaro disse que a regra foi criada para estancar “hemorragias” de governos anteriores. Esse é o mesmo argumento usado nos bastidores pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, que se queixa de não poder usar o excesso de arrecadação para aumentar investimentos públicos. Já lideranças do Centrão cobram uma flexibilização junto com a discussão do Orçamento de 2023 – o primeiro do próximo governo.

Para o diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, Daniel Couri, a PEC “Kamikaze” é mais um motivo para que o próximo presidente discuta a mudança no teto. Ele destaca que a permanência do Auxílio Brasil em R$ 600 não cabe dentro do pouco espaço que existe hoje para as despesas que não são obrigatórias. Seria preciso cortar mais R$ 50 bilhões de gastos de outras áreas. “Na discussão da PEC, não vi ninguém questionado isso. O teto não foi um problema, o que mostra a sua fragilidade.”

GASTOS ALÉM DA INFLAÇÃO

O Ministério da Economia já trabalha em projeções que consideram uma mudança no teto de gastos para permitir um crescimento real (acima da inflação) das despesas de 1,5%. O objetivo é abrir espaço fiscal a novos investimentos públicos, uma cobrança do presidente Jair Bolsonaro para um eventual segundo mandato.

Pelas projeções, esse ajuste só aconteceria a partir de 2027, mas uma alteração na regra poderá ser antecipada, como admitem fontes do governo à mídia, no cenário atual de pressão por mudanças. No início de junho, em entrevista ao SBT, Bolsonaro foi taxativo ao afirmar que a regra poderá ser mudada depois das eleições.

“Algumas coisas você pode mexer no teto de gastos, como já proposto pela própria equipe do (ministro) Paulo Guedes. Mas a gente vai deixar para discutir isso depois das eleições”, disse Bolsonaro à época.

Duas premissas guiam os estudos: um cenário de queda da dívida pública e aumento real da despesa inferior à variação do PIB. Ou seja, uma trajetória que permita o aumento real de gastos quando a dívida estiver caindo para abrir espaço a investimentos públicos.

As discussões estão ocorrendo em paralelo à regulamentação da emenda constitucional 109, conhecida como PEC Emergencial. O texto prevê a introdução de uma meta para a dívida pública no arcabouço das regras fiscais do País. Nesse modelo, nem o teto nem a meta de superávit primário (que é resultado das receitas menos despesas) deixam de existir. Os técnicos consideram importante a manutenção de uma regra para controle das despesas.

A equipe técnica do Ministério da Economia trabalha para apresentar a proposta de regulamentação em agosto. A ideia é que a dívida pública passe a ser a principal âncora da política fiscal brasileira. O texto autoriza medidas de ajuste para as contas públicas alcançarem a trajetória desejada e o planejamento de alienação de ativos para a redução da dívida, como é o caso das privatizações de empresas e venda de imóveis.

PRESIDENCIÁVEIS

A mudança do teto de gastos também é defendida pelos outros pré-candidatos à Presidência. Mesmo a campanha da senadora Simone Tebet (MDB-MS), que a princípio defende a manutenção da regra atual, não descarta uma antecipação da revisão – prevista para 2026.

Líder nas pesquisas de intenção de voto, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já avisou que vai revogar o teto de gastos. O economista Guilherme Mello, da Fundação Perseu Abramo e que colabora na elaboração do programa de governo do partido, diz que a discussão segue na linha de revogar o teto e construir um novo arcabouço fiscal para dar credibilidade e previsibilidade às contas públicas. A proposta, segundo ele, é selecionar melhor os gastos, privilegiando os “de boa qualidade”.

“Tudo isso segue vivo. A aprovação da PEC (‘Kamikaze’) demonstra a completa perda de credibilidade do arcabouço atual, e como ele deixou de cumprir as funções”, afirma Mello. “É uma regra (do teto) que não é respeitada.” Apesar das discussões, o PT ainda não divulgou os detalhes do seu plano para as contas públicas.

Das campanhas já na rua, a do ex-governador Ciro Gomes (PDT) é a que mais detalhou até agora os planos para mudar o teto de gastos. O deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE), que trabalha no programa econômico de Ciro, afirma que a proposta é ter um teto para as despesas correntes do governo. Os gastos com investimento ficariam de fora.

Esse teto seria corrigido pela inflação mais metade do crescimento do PIB. “Se o PIB cresceu 2%, é inflação mais um 1%”, explica Benevides. Pela proposta, a evolução dos investimentos estaria vinculada às receitas. “É assim no mundo”, afirma o deputado, que já foi secretário de Fazenda do Ceará e implementou no Estado o teto para as despesas correntes. “O investimento não pode estar dentro do teto de gasto”, acrescenta ele.

Responsável pelo programa econômico de Simone Tebet, a economista Elena Landau defende a manutenção do teto de gastos caso a senadora do MDB vença as eleições. “O teto ainda existe, apesar de estar todo esburacado pelo próprio governo”, afirma. “O teto nasceu para estancar a sangria do governo Dilma, e nisso ele funcionou. Ele é importante para que a sociedade entenda que é preciso fazer escolhas. Só que o governo e o Congresso vêm se recusando a fazer essas escolhas, dando um ‘jeitinho’ com a PEC dos Precatórios, a PEC Eleitoral (‘Kamikaze’) e o orçamento secreto”, diz.

Ela não descarta, no entanto, a possibilidade de antecipar a revisão do teto, prevista para 2026. “A depender do que o (o atual) governo deixar de herança para 2023, a gente pode ter de antecipar essa discussão. A ideia é manter o teto, e fazer com que ele seja respeitado novamente. Agora, se não for o teto, que seja alguma âncora de despesas públicas”, afirma a economista, que também defende a recriação do Ministério de Planejamento e Orçamento. “Você só consegue ter o Orçamento sequestrado da maneira que foi porque o governo não tem planejamento, e aí vai criando puxadinhos.”

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