Uma SP como se não houvesse coronavírus

(Foto: Benzoix e freepik)

O mecânico aposentado entra na padaria, pergunta se já é possível usar o balcão e pede um pão com manteiga na chapa. O homem tira a máscara com cuidado, mas não sabe o que fazer com ela. Ameaça deixar em cima do balcão. Pensa mais um pouco e, na dúvida, apenas puxa sua proteção para debaixo do queixo. “Nessa quarentena, o que eu mais senti falta foi poder fazer isso todas as manhãs”, disse Jorge dos Santos, de 68 anos, antes do pãozinho aterrissar na frente dele.

Por trás da refeição matinal de Santos, estão o desejo de normalidade e a vontade de retomar uma rotina pré-covid. Ele não burlou nenhum protocolo, não fez nada de errado, mas esse tipo impulso (necessidade, em alguns casos) confunde a paisagem e provoca a sensação que a pandemia chegou ao fim. Quem sai para uma volta na cidade de São Paulo pode cair na armadilha de que tudo já passou e que o coronavírus não é mais uma ameaça à saúde pública.

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Embaixo do viaduto do Glicério, na zona sul da cidade, amigos ocupam uma quadra poliesportiva e disputam uma partida de futebol – como se estivessem protegidos pelo protocolo da Fifa. Na quadra, ninguém de máscara, muitos estão sem camisa e na hora do gol tem vibração e abraços. Sem entrevistas depois da pelada, um dos atletas apenas pergunta em tom de reclamação: “A gente não tem direito de se divertir?”. Os jogos de futebol são considerados de alto risco de contágio pelos órgãos de saúde.

No parque do Ibirapuera, a necessidade de diversão, lazer ou de uma “respirada” fez ressurgir pequenos piqueniques entre familiares e amigos. Na grama, com evidente preocupação de manter certo distanciamento dos demais frequentadores, a família Fontes tenta relaxar. “Em um lugar aberto, nos sentimos mais seguros. Acho que poder ficar em um parque nos ajuda a controlar a ansiedade”, disse Aline Fontes, 33 anos, que estava com o marido (Danilo) e os gêmeos (Evelin e Luan).

Menos preocupados com distanciamento, estão os skatistas que frequentam a Praça Roosevelt, outro marco da cidade. O desejo de diversão é o mesmo, mas os cuidados são menores. Uma cena típica do lugar: garotos dividindo garrafinhas de água depois das suas manobras radicais. Todos tomando no bico.

Quem sai de bike (as ciclofaixas retornaram recentemente) também vai perceber o quanto é difícil os ciclistas conseguirem manter certo distanciamento entre eles. Além disso, muitos abdicam das máscaras durante as pedaladas. “Para mim é impossível pedalar de máscara”, comenta o técnico em informática, Luiz Tavares Junior, 33 anos.

O movimento nos salões de beleza e barbearias parece querer voltar a uma certa normalidade. A vontade de “ajeitar o cabelo” ou “caprichar na barba” já fala mais alto do que o medo de pegar covid-19. O Estadão passou por diversos salões, todos com clientes e, aparentemente, cumprindo os protocolos de funcionamento.

“O ser humano é vaidoso. E não tem problema. Se você se sente seguro, não está errado em cortar um cabelo, fazer uma unha. Afinal, já foi liberado”, comenta uma advogada que, na cadeira do cabeleireiro, pediu para não ser identificada.

No centro da cidade, o desastre social atropela os cuidados com a saúde. O número de moradores em situação de rua parece crescer. E nesse universo de fome, desemprego e descaso não existe máscara, álcool em gel ou distanciamento social nas ruas.

Nas ruas de comércio, os homens-sanduíche estão de volta, o aposentado da plaquinha “compro ouro” também está lá – assim como toda sorte e diversidade de ambulantes.

Artistas de rua e pastores também provocam pequenas aglomerações. Nas lotéricas do centro, filas para uma fezinha. Máscaras no queixo e gente concentrada em escolher os seis números na Mega. A necessidade de sobrevivência parece tentar achatar a curva da covid-19 na marra.

Claro, o lado mais evidente dessa cidade em que a pandemia parece ter acabado são o happy hour e a vida noturna. Com a flexibilização, os clientes começam a voltar aos cafés e às mesas de bares. “Poder tomar um café com um amigo, falar do trabalho, falar bobagem. Isso é vida. Tomando todos os cuidados, é possível fazer isso”, comentou o empresário Carlos Júlio Leonel, 48 anos.

A vontade de sociabilização é natural, mas, às vezes, transborda. Em pontos com muitos bares, como a Vila Madalena, o maior problema é do lado de fora dos bares. Muitos jovens com garrafinhas de cerveja long neck, rodinhas de amigos, abraços e beijos. Em tardes ou noites de futebol, a situação é ainda menos controlada. A cada gol, o distanciamento social e os cuidados desaparecem. É mais um 7 x 1.

Mas nem só lazer e “respiração” fazem a cidade se fantasiar de normalidade. O trabalho também nos empurra de volta à rotina. Ao pegar a avenida Radial Leste, principalmente depois das 17h, o trânsito já é parecido com aquele encontrado antes do vírus. A mesma situação pode ser flagrada nas principais vias de São Paulo. Nos pontos de ônibus ou nas estações de Metrô, o conceito de home office parece distante, quase uma piada.

A regra é que todos usem máscaras no transporte público – e ela parece estar sendo seguida pela maioria da população. Mas não é difícil se deparar com a situação de pessoas que tiram a máscara tão logo descem do ônibus ou deixam uma estação de metrô. A desculpa é a famosa “respiradinha” ou a vontade de “um cigarrinho” depois do expediente.

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