Um dia depois da sessão de gala do Festival de Veneza – e antes, portanto, do Leão de Ouro -, o diretor norte-americano Todd Phillips se disse aliviado, mas ainda ansioso. “Quando se faz uma produção chamada Coringa, há sempre um nível enorme de expectativa”, afirmou. “Mesmo que tenhamos deixado claro que não era um filme de quadrinhos. De jeito nenhum queríamos enganar as pessoas e levar a pensar que era um longa de ação e que o Batman ia aparecer”, completou. Batman de fato não aparece, mas a família Wayne, sim. “Quisemos brincar com o cânone, por exemplo, apresentando Bruce Wayne ainda criança e seu pai, Thomas.”
É impossível assistir a “Coringa” sem fazer um paralelo com os dias de hoje. “É um filme humanista, e acho que precisamos de mais desses. Então, se você assiste e vê como um espelho do que está havendo no mundo, certamente nos Estados Unidos e provavelmente no Brasil, não acho ruim”, disse o diretor, mais conhecido pela franquia de comédias “Se Beber, Não Case!”
Phillips se disse empolgado com as diversas interpretações do longa-metragem. “Um amigo, por exemplo, achou que o Coringa era o Trump”, contou. “Quero deixar claro que não estou afirmando isso. Eu e o Joaquin (Phoenix) temos certa dificuldade de falar do que o filme trata. Há muitos modos de ver Coringa. E para mim isso é legal, embora seja frustrante para algumas pessoas. É o que tentamos fazer”, falou, referindo-se a poder abrir diversos temas de discussão.
E eles são muitos, da pressão pela felicidade constante ao abismo entre ricos e pobres, da invisibilidade de tantos que não se encaixam nos moldes à doença mental sem que haja tratamento adequado, e a busca pela fama e pela adoração.
Antes mesmo de sair de Veneza, o filme, que tem chances de emplacar algumas indicações para o Oscar, foi debatido. Para alguns, Coringa passa o pano para os “incels”, os homens, em geral brancos e de classe média, que exigem atenção do mundo e das mulheres e, se não conseguem, promovem tiroteios em massa. Se o Coringa virar um herói de pessoas assim, não seria a primeira vez. “É uma terrível má interpretação do filme”, explicou Phillips. “Mas pode acontecer e não há como controlar.”
Elogiado astro do primeiro filme sobre o arqui-inimigo do Batman, Joaquin Phoenix tentar entender a cabeça de pessoas como Arthur Fleck, o comediante perturbado e fracassado que depois se torna o macabro Coringa. “Não deveríamos fazer isso, compreender gente que não compartilha nossos valores e opiniões?”, questionou o ator que foi muito aplaudido após a exibição de “Coringa” no Festival de Veneza, além de ser unanimemente elogiado pela crítica. “Quero que as pessoas tenham uma reação visceral, mas certamente não posso ditar como as pessoas vão assistir a um filme”, revelou o astro que emagreceu 23 quilos para viver o personagem sombrio. Como ele afirmou, as discussões são importantes. E reiterou: “O Coringa é um vilão”.
Recriado por vários atores, ‘Coringa’ é agora vivido pelo ator Joaquin Phoenix
A seleção de “Coringa”, de Todd Phillips, para a competição do 76.º Festival de Veneza era um indício de que não se tratava de um filme baseado no universo dos quadrinhos como tantos outros que vêm inundando as salas de cinema. E, de fato, o longa prescinde de grandes cenas de ação e efeitos especiais épicos para se inspirar mais nos dramas de Martin Scorsese dos anos 1970 e 1980. Mas foi com certa surpresa que o Leão de Ouro foi recebido.
Com estreia prevista para 3 de outubro no Brasil, “Coringa” abriu a venda antecipada de ingressos na quinta-feira, 19.
No Festival de Veneza, a presidente do júri, Lucrecia Martel, que está bem longe de fazer cinema comercial, elogiou os riscos que a produção correu e a reflexão que faz dos anti-heróis como vítimas do sistema. Mas “Coringa” não seria o que é, um filme com capacidade de sacudir Hollywood na direção de mais ousadia, sem a interpretação de Joaquin Phoenix, que não se baseou em nenhuma das versões anteriores – de Cesar Romero, Jack Nicholson ou Heath Ledger e muito menos a de Jared Leto.
“Sou pouco conectado à indústria do entretenimento”, disse o ator em entrevista exclusiva ao jornal O Estado de S. Paulo, em Veneza. E jurou não ter ideia da quantidade de fãs que a história tinha. “Começaram a me perguntar da pressão dois dias antes do início das filmagens, e eu disse: ‘Não me digam isso agora!'”, contou. “Era tarde demais, mas no começo eu estava na ignorância completa. Ainda bem.”
Phoenix ama uma reação forte aos filmes que faz. “Seja qual for”, contou. “A indiferença é que me incomoda.” Às vésperas de completar 45 anos, o ator afirmou categoricamente que não pode, no entanto, levar em conta a opinião de ninguém ao fazer um papel. “Nem a do diretor. Para mim, trata-se de uma exploração e uma experiência pessoais. Faço só para mim.”
Mas quem é este Coringa? Arthur Fleck é um comediante frustrado que trabalha como homem-placa, vestido de palhaço. Mora com a mãe, que insistia que seu destino era ser feliz e fazer os outros rirem, e depende de remédios para seus problemas de saúde mental – ele tem uma condição que faz com que ria descontroladamente. Sendo pobre e esquisito, Arthur é invisível para a sociedade. Quando alguém o enxerga, é em geral para humilhá-lo. Só que, um dia, ele se vê com o poder nas mãos.
Este Coringa não tem o jeito brincalhão de Romero, nem é transformado em vilão depois de cair num tanque de substâncias químicas como no caso de Nicholson. Não tem um desejo de ver o circo pegar fogo como o Coringa de Ledger, nem sabe-se lá o que Jared Leto estava fazendo. Arthur às vezes inspira pena. “Gosto que o filme peça ao espectador que pelo menos tenha empatia por alguém que é o vilão e que faz coisas horrendas. Às vezes, rotulamos uma pessoa como má, como se fôssemos incapazes dos mesmos atos.”
Leia a seguir outros trechos da entrevista:
Você falou de divisão, e as sociedades mundiais parecem muito divididas. Acha que falta vontade de ouvir opiniões contrárias às nossas?
Sim, claro. Não há muito debate saudável. Eu me lembro dos programas de notícia de antigamente. Hoje, eles são uma competição de quem grita mais alto. Há questões difíceis que precisamos discutir. Mas, se ficarmos gritando uns com os outros, não vai ter solução. Ficamos viciados nisso, dá mais audiência, mas isso está saindo caro.
Mas mesmo no caso de pessoas que são detestáveis ou simplesmente fazem coisas horríveis?
É um desafio. O Coringa é uma pessoa complexa. Mas há momentos em que se pode simpatizar com ele, ou pelo menos ter alguma empatia. Mas não se engane: ele é um vilão. Eu o interpretei como um vilão. O Coringa é a própria definição do narcisismo, que é a expectativa de que seus sentimentos devem ser validados pelos outros e que todos precisam prestar atenção porque ele é a pessoa mais importante do mundo. Agora, ele não é político. Só quer adoração. O narcisismo é muito perigoso.
Hoje que você tem uma vida muito privilegiada consegue manter-se atento à dor dos outros?
Não quero parecer estar me vangloriando, mas sempre fui muito sensível. Quando leio um jornal, não estou só absorvendo informação, mas vivenciando a vida de alguém e isso me afeta profundamente. Acho que é de mim, nasci assim.