Anish na cidade

O convite para o escultor Anish Kapoor inaugurar o paulistano centro de exposições da Cidade Matarazzo, em 2020, coincide com um momento angustiante para o artista. Há algumas semanas, desiludido com os rumos da Grã-Bretanha sob o comando da primeira-ministra conservadora Theresa May, ele declarou que o Brexit “é uma tentativa de ressuscitar o passado colonial britânico”. Para Kapoor, o Brexit não é sinal de poder, “mas de uma sociedade dividida”.

Também recentemente, Kapoor estava a caminho do seu analista quando dois racistas comentavam às costas do escultor: “Ele nem deve falar inglês direito”. Kapoor ficou furioso: cidadão britânico, ele estava sendo julgado por sua cor e origem.

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Detalhe: Kapoor é comandante da Ordem do Império Britânico, ganhador do prêmio Turner, o mais importante da Inglaterra, e uma de suas obras, Cloud Gate, instalada em 2004 no Millenium Park de Chicago, com 100 toneladas, é hoje provavelmente a escultura pública contemporânea mais popular – e de maior peso – no mundo.

Se a reluzente Cloud Gate desperta no público o desejo de fazer selfies por refletir os prédios da praça em sua superfície, outras esculturas de Anish Kapoor provocam ódio.

Em 2015, uma de suas obras, Dirty Corner, amanheceu nos jardins de Versalhes com inscrições antissemitas. Na ocasião, o então presidente François Hollande mostrou sua solidariedade, mas pediu que ele retirasse as pichações. Kapoor, no entanto, resolveu mantê-las como denúncia da intolerância. “Afinal, acabei cedendo e cobri as inscrições com folhas de ouro, ato simbólico de regeneração da obra, mas também um tanto irônico pelo uso do ouro em plena Versalhes.”

Mesmo a escultura Cloud Gate, aparentemente sem peso ideológico, foi usada de modo inapropriado por uma entidade que defende o porte de arma por cidadãos americanos e congrega mais de 6 milhões de associados, a National Rifle Association (Associação Nacional de Rifles, que teve entre seus presidentes o ator Charlton Heston).

Num vídeo encomendado pela entidade, a Cloud Gate é mostrada num flash de segundos, seguida por cenas de protestos políticos, mas bastou para que o pacifista Kapoor movesse um processo contra a NRA. Ganhou. Agora, qualquer agência de publicidade que filmar a obra terá de pedir autorização e pagar direitos a Kapoor.

Além dessa ação inaudita, Kapoor tem hoje seu nome associado de forma permanente a uma cor que patenteou. Ele desejava criar uma tinta preta mais escura que o mais tenebroso dos abismos e consultou um fabricante se era possível chegar ao “preto mais preto encontrado no universo”.

Resultado: conseguiu seu intento. Hoje é detentor da patente da tinta, que absorve 99,9% da luz. É tão abissal que um cidadão português caiu dentro de um “buraco negro” de Kapoor, julgando ser uma ilusão de ótica. Isso aconteceu em agosto do ano passado, na Fundação Serralves.

A obra, Descent into Limbo, apresentada pela primeira vez em 1992, na Documenta de Kassel, Alemanha, foi montada na primeira exposição do escultor em Portugal. Os visitantes recebiam na entrada um papel alertando para o perigo de queda no buraco, mas um espectador, acreditando se tratar de uma pintura na superfície do chão, foi parar no hospital.

A obra, experimento formal sobre luz e escuridão, traz elementos presentes também nos espelhos côncavos de Kapoor, que conduzem o espectador a outras dimensões. “O visitante português, ainda que alertado, desejou conhecer essa outra dimensão e caiu, imaginando ser a arte uma ilusão”, comenta o escultor, lamentando sua desconfiança. Na maioria das vezes, as experiências de Kapoor com formas curvas espelhadas e buracos no chão ou nas paredes seguem o princípio da expressão latina ‘abyssus abyssum invocat’ (o abismo chama outro abismo). “Talvez seja mesmo essa a missão do artista, a de levar o espectador ao território do desconhecido”, diz, iniciando uma discussão sobre o real e o ilusório. “O Big Bang é físico ou uma projeção psicológica?”, pergunta o escultor, simpatizante do budismo.

Sobre as obras que devem integrar a exposição de Anish Kapoor na Cidade Matarazzo, o curador Marcello Dantas, responsável pelo espaço, adianta que todas deverão ser produzidas no Brasil. “Não deve ser nada fálico, pois todos os monumentos que vemos são verticais, verdadeiras afirmações do poder masculino, e eu quero resgatar as deusas”, revela Kapoor, citando o pintor Barnett Newman, para quem existia uma obra específica para cada espaço.

“Ele usava a palavra hebraica ‘makom’ para se referir ao presente e o devir de cada pintura.” Trata-se de um lugar, mas também simboliza a presença divina, conclui o escultor.

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