Que o desemprego levou muita gente recorrer à atividade de motorista de aplicativo não é novidade, mas o cenário que se desenha é que muitos trabalhadores de outras áreas, alguns de nível superior, têm se sustentado com a renda que ganham. Trocaram o horário fixo por uma jornada flexível, a chefia por um modelo de negócio como autônomo e a oportunidade de conhecer pessoas e lugares. No ABC, segundo o sindicato da categoria são cerca de 10 mil profissionais, pelo menos 10% destes são mulheres. Para o coordenador do Observatório de Políticas Públicas da USCS (Universidade Municipal de São Caetano do Sul), Jefferson José da Conceição, o crescimento do exército de motoristas, é um fenômeno que encaixou bem a oferta e a demanda.
“Essa é uma combinação perfeita de oferta e demanda como poucas vezes se vê na economia. De um lado você tem uma demanda por mobilidade crescente, por conta das deficiências do transporte público e dos custos para se manter um veículo, e de outro tem a oferta de pessoas habilitadas e que têm carro, com dificuldade de se colocar no mercado”, analisa.
Motorista de aplicativo há cinco meses, José Roberto Vilas Boas, de 54 anos, viu neste trabalho uma forma de garantir o sustento da família. Até o ano passado Vilas Boas era empresário, tinha empresa de representação de armações de óculos, mas a crise o fez acumular prejuízos, foi quando decidiu encerrar o negócio. Hoje ele ganha 20% a mais trabalhando como motorista. “Como empresário estava muito ruim, dando murro em ponta de faca, mas quando comecei a dirigir gostei muito e hoje não me vejo em outra atividade”, relata.
Vilas Boas diz que se encanta com os lugares que conhece por conta do trabalho e mais ainda pelas pessoas e histórias de vida que conhece, tanto que pretende fazer um blog para publicar alguns relatos de passageiros. “As pessoas sabem que, provavelmente, nunca mais vão te ver e acabam se abrindo; a gente acaba sendo até psicólogo”, relata o motorista que mora em Santo André.
Flexibilidade de horário
O próprio presidente do Stattesp (Sindicato dos Trabalhadores com Aplicativos de Transportes Terrestres Intermunicipal do Estado de São Paulo), Leandro da Cruz Medeiros, é formado em administração e gestão pública. “Muitas pessoas formadas estão indo para o mercado e como não conseguem emprego entram como motorista de aplicativo, ou para complementar renda ou mesmo como atividade principal, eu mesmo conheço vários, tem engenheiro e advogado”, comenta.
O crescimento vertiginoso do contingente de motoristas criou também problemas de segurança, de saúde por jornadas mais longas de trabalho e a falta de um seguro de vida. “Hoje o motorista de aplicativo está em todo lugar, cumpre uma lacuna deixada pelas cidades, ao entrar aonde o transporte público não chega, onde os taxistas comuns se recusam a ir, nas comunidades carentes. Por outro lado estão expostos à falta de segurança. As empresas ganham muito, mas não oferecem nada. O sindicato tem uma pauta de reivindicação, mas as empresas não nos recebem”, diz Medeiros.
Vilas Boas conta que muitos moradores de bairros carentes se sentiram incluídos a partir do transporte por aplicativos. “Eu já levei pessoas muito humildes para casamentos, pessoas que se sentiram bem por terem acesso a um transporte de qualidade, que puderam chegar a uma festa em um carro novo e com motorista, coisa que elas jamais pensaram, me sinto orgulhoso por isso. Outra coisa que os aplicativos fizeram foi ajudar muitos pais a sustentarem suas famílias. Com 54 anos, onde conseguira emprego?”, indaga.
Outro que está feliz com a mudança do ramo de atuação é J.P.S, ex-analista da Petrobras, que mora em Santo André e passou a trabalhar como motorista de aplicativo. Pai de duas crianças e há dois anos no volante a serviço da Uber e da 99, o andreense conta que está contente, porque antes, por causa do trabalho entre o Rio de Janeiro e Curitiba, ficava muito tempo longe da família. Hoje, no volante de um EcoSport seminovo, consegue levar e buscar os filhos na escola e no clube, às vezes almoçar em casa, e fazer os seus horários. “Ligo o aplicativo às 4h de segunda a sábado, trabalho bastante, mas vale muito a pena, se soubesse teria entrado nisso antes”, comenta o motorista, que consegue ganhar mais de R$ 10 mil por mês.
O professor da USCS chama a atenção para falta de conhecimento por parte do governo desta realidade. “As pesquisas não mostram essas mudanças. Essa massa de rendimentos dos autônomos não é conhecida, mas é muito menor do que se essas pessoas estivessem trabalhando em suas profissões. A tecnologia veio para ficar, mas o que não veio para ficar são profissionais ganhando menos que ganhariam em suas profissões”, analisa Jefferson da Conceição.