A maioria dos brasileiros recorreu a trabalhos informais no primeiro semestre deste ano para conseguir sobreviver por causa da lenta retomada da economia e do emprego formal. Entre janeiro e junho, 64,4% dos trabalhadores fizeram bicos para equilibrar as suas finanças. É uma fatia bem maior do que a registrada no mesmo período do 2017, quando 57,4% foram atrás de trabalhos extras, aponta um estudo do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas.
Fazer bico para fechar as contas do mês ganhou importância especialmente entre as classes de menor renda. Neste caso, a pesquisa revela que 70% da população mais pobre foi em busca de trabalhos informais e eventuais para bancar o orçamento doméstico. “O bico é mais frequente nas classes de menor renda porque essas famílias não têm margem de manobra e já vivem no aperto”, diz a economista-chefe do SPC Brasil, Marcela Kawauti. Se alguém da casa fica desempregado, essa perda de renda afeta os demais membros da família que não têm como ajustar o padrão de vida para baixo, pois estão no limite. Por isso, recorrem a bicos.
O avanço da participação da renda informal dentro do orçamento doméstico já vem ocorrendo há algum tempo. Um pesquisa da consultoria Kantar Worldpanel, que visita semanalmente 11,3 mil domicílios no País para tirar uma fotografia do consumo, mostra que entre 2014, antes da crise, e 2017 a fatia da renda informal na receita total das famílias saiu de 15,3% para 16,6%. Nas classes de menor renda, a participação dos bicos na renda total foi bem maior: subiu de 20% para 24% no mesmo período.
“A fatia do salário na renda doméstica diminuiu ao longo da crise por causa do desemprego elevado e as pessoas da casa buscaram alternativas, como os bicos, para completar a renda”, diz a diretora da consultoria, Maria Andréa Ferreira Murat.
A dificuldade de retomada do emprego aparece em dois indicadores. No trimestre encerrado em maio, havia 13,2 milhões de desempregados no País, de acordo com o IBGE. É um número praticamente estável em relação ao trimestre anterior.
Para Marcela, o aumento da dependência do bico é sintoma de que a população não está sentido a ligeira melhora da economia. Tecnicamente o País saiu da recessão em 2017. A pesquisa mostra que 77% dos entrevistados não veem melhora na economia. E a metade diz que as condições pioraram.
A pesquisa foi realizada na última semana de junho. Ouviu 886 pessoas residentes em todas as capitais brasileiras, com idade igual ou superior a 18 anos, de ambos os sexos e de todas as classes sociais. A margem de erro é de 3,3 Pontos porcentuais para um intervalo de confiança de 95%.
80% cortam o orçamento contra crise
Além de buscar fontes alternativas de renda fazendo bicos, oito em cada dez brasileiros realizaram cortes no orçamento no primeiro semestre deste ano para driblar a crise, revela um estudo do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL). As maiores reduções de gastos ocorreram nas refeições fora de casa, no consumo de artigos de vestuário, de itens que não são de primeira necessidade nos supermercados, como carnes nobres, congelados, bebidas e iogurtes, e gastos com lazer.
A economista-chefe do SPC Brasil, Marcela Kawauti, ressalta que ajuste do orçamento doméstico foi além do corte de gastos e da busca de receitas. Entre o primeiro semestre de 2017 e o mesmo período deste ano, aumentou a parcela de brasileiros que precisou vender algum bem para conseguir dinheiro. Mesmo assim, cresceu a fatia dos que ficaram inadimplentes. Segundo a Serasa Experian, birô de análise de crédito, havia em junho 61,8 milhões de consumidores inadimplentes no País.
Buscar bicos e cortar gastos, esses dois movimentos juntos mostram que o quadro para as finanças pessoais piorou neste ano. Marcela lembra que a taxa básica de juros está no menor nível da história, mas ela não recuou para o consumidor na mesma proporção. A inflação também está bem comportada. No entanto, as pessoas reclamam dos preços, pois tiveram queda na renda em razão do desemprego elevado que persiste.
“O desemprego elevado leva as pessoas a procurarem mais bicos”, diz Marcela. E como essa renda é incerta e menor do que a formal, a inadimplência cresce, explica. A economista ressalta que tudo é consequência da economia fraca.
Produtividade. O avanço da informalidade como fonte renda é uma saída para as pessoas pagarem as contas, mas compromete a retomada sustentável da economia a médio prazo, alerta a economista. “A informalidade reduz a produtividade.” As pessoas com renda informal, geralmente menor do que a formal, não se sentem confiantes para consumir itens de maior valor, normalmente financiados. Também diante do recuo do consumo, empresários adiam investimentos e contratações.
‘Até conseguir bico está mais difícil’, diz desempregado
Faz dois anos que Djalma Alexandre da Silva, de 61 anos, está desempregado. Durante 11 anos e três meses ele trabalhou como porteiro num edifício residencial. Com a instalação da portaria eletrônica, ele e outros colegas foram demitidos. De lá para cá, Silva vive de bicos. “Pinto, faço manutenção de jardim, essas coisas… O pessoal vai me chamando para eu trabalhar por dia e eu vou”, conta.
Nos dois últimos meses, ele cobriu férias na portaria de um prédio. Mas o contrato de trabalho era temporário e o serviço acabou. “Estou desempregado de novo e tenho que correr atrás de bicos.”
Quando trabalhava como porteiro com carteira assinada, Silva ganhava R$ 1.300. Agora com bicos, tira entre R$ 1.200 e R$ 1.300. “Mas é sem registro”, pondera o ex-porteiro, lembrando que, neste caso, não tem segurança alguma se sofrer um acidente de trabalho. Também não tem direito a férias nem a décimo terceiro salário. “A gente faz bico porque não tem outro meio.”
Desde que ficou desempregado e passou a viver de trabalho informal, quem está garantindo as despesas da casa é a sua mulher. Ela também 61 anos, mas está aposentada e recebe R$ 1.100 por mês. Quando Silva consegue trabalho, a renda da família sobe e gira em torno de R$ 2 mil. Ele tem um filho adulto que mora com e ele e a esposa. Mas tem que pagar pensão e a prestação do carro. “Meu filho ajuda nas despesas quando dá.”
Dificuldade. Silva diz que a vida piorou muito desde que deixou de ter um emprego formal. E do começo do ano para cá, não sentiu nenhuma reação na economia. Até encontrar bicos está mais difícil, revela.
Ele consegue serviços temporários ligados à construção civil com um empreiteiro. “O serviço de empreitada diminuiu muito, a concorrência é grande. A gente só trabalha, quando o empreiteiro pega serviço”, conta.
Além de fazer bicos, o ex-porteiro compra produtos em oferta para economizar e conseguir fechar o mês. Diminuiu o consumo de água, está economizando luz nem usa mais o telefone. Começou a andar mais de ônibus para não gastar com gasolina, que está muito cara, diz ele.
No momento, Silva deve mais de R$ 1 mil num cartão de loja, usado para comprar uma TV que ele não conseguiu pagar. “Faz mais de ano e a loja cobra juros todo dia”, lembra. Até agora, o ex-porteiro não conseguiu renegociar a dívida, pois não tem condições de fazer uma proposta. “Estou esperando um emprego fixo primeiro.”