Estratégia de encaminhamento compulsório de bebês divide especialistas

O encaminhamento compulsório de bebês da maternidade para abrigos em Belo Horizonte divide especialistas ouvidos pela reportagem. Alguns entendem que a proteção à criança deve ser a prioridade. Outros veem suposto abuso de poder e discriminação nas atitudes do juiz Marcos Flávio Lucas Padula, da Vara da Infância e da Juventude da capital mineira.

A advogada Silvana do Monte Moreira, especializada em casos de adoção, considera legítimo o acolhimento compulsório das crianças em situação de vulnerabilidade. Segundo ela, o acolhimento deve durar enquanto são realizados os estudos necessários para determinar se a mãe é usuária contumaz de droga, se tem uma rede de apoio. “É preciso lembrar que muitas mulheres têm as crianças e fogem do hospital, deixam nome e endereço falsos pela necessidade imediata de usar a droga”, afirma a advogada. “Muitas crianças nascem com síndrome de abstinência e precisam ser medicadas com drogas pesadas.”

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Opinião oposta tem a defensora pública Eufrásia Maria Souza das Virgens, da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro. Segundo ela, o afastamento de bebês de mães em situação de rua e usuárias de droga é recorrente e nacional – não estando restrito apenas a Belo Horizonte. “Nosso temor é de que, sob o argumento de proteção, a criança acabe sendo afastada da família nos primeiros meses de vida e encaminhada para um abrigo onde pode passar a vida inteira. Tem sido nossa preocupação garantir o direito da criança à convivência familiar.”

“A questão central nessa história toda é que essa medida vem sendo adotada como se fosse uma solução”, destaca Paulo Silveira, do Movimento Respeito é Bom e Eu Gosto, que atende população de rua, usuários de drogas e pessoas com distúrbios mentais. “É o Estado que não cumpre o seu papel de recolher essa menina, essa mulher, que pode ter sido estuprada em casa e pode ter ido para a cracolândia para se proteger do agente violador e acaba virando usuária de drogas. O Estado não permite que ela diga não à gravidez, mas também não permite que diga sim à maternidade.”

Já o desembargador Siro Darlan, que já esteve à frente da Vara de Infância e Juventude do Rio de Janeiro, prefere o caminho do meio. “O princípio que deve reger todas as ações em relação à criança é o interesse superior da criança. Com quem essa criança vai ficar melhor? Essa é uma tarefa muito difícil. É mais fácil julgar o julgador.”

‘Algumas posições beiram a insanidade’, diz juiz da Vara da Infância de BH

O juiz da Vara da Infância e da Juventude de Belo Horizonte, Marcos Flávio Lucas Padula, afirma que há uma campanha de “calúnia e difamação” contra a instância que comanda. Em face da comoção que foi criada, diz, ele mesmo decidiu suspender em agosto a Portaria n.º 3. “Entendi que era o caso de rever a redação”, diz. Para o magistrado, está havendo “uma demonização do Judiciário e uma vitimização dos pais”.

Está havendo um encaminhamento excessivo de bebês para o acolhimento compulsório em Belo Horizonte?

Está havendo uma campanha de calúnia e difamação contra a Vara de Infância feita por pessoas de posição política radical sobre a questão, com uma série de ofensas e agressões que não têm nada de real. Estou muito aborrecido, muito chateado, afinal, são 22 anos como juiz da Infância.

Mas está havendo esse acolhimento compulsório?

O acolhimento é sempre compulsório, só pode existir por ordem judicial. Trata-se de uma medida de proteção, prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Não fui eu que inventei. Estão falando como se fosse uma medida autoritária ou discricionária, e não é. O fato de a criança ir para o acolhimento não quer dizer que automaticamente será adotada.

As denúncias dão conta de que as mães não estão sendo ouvidas e que não há direito de defesa.

Não é verdade. Colocamos até carro para que os pais venham e os encaminhamos para a Defensoria Pública. Mais direito de defesa do que esse não há.

Movimentos sociais acusam a Vara da Infância de agir de forma discriminatória. O que o senhor tem a dizer?

Falam como se fosse uma questão socioeconômica, como se estivéssemos visando às minorias. Nossa preocupação é proteger a criança em um momento de grande vulnerabilidade. Muitos bebês nascem com sequelas graves por causa do crack. Estão falando como se os pais fossem sempre vítimas, como se não pudessem ser responsabilizados. Não quero ser alarmista mas, se for assim, caminhamos para um genocídio de crianças.

Por que o senhor suspendeu a Portaria n.º 3?

Porque estavam nos acusando de fazer pressão psicológica sobre os profissionais de saúde (dos hospitais, que devem acionar a Justiça). A Portaria apenas regulamentava uma praxe que já existia há mais de 20 anos, muito antes de eu chegar a Belo Horizonte. Em face dessa comoção, entendi que era o caso de suspender e rever a redação do texto.

Outro problema apontado na Portaria é o fato de citar especificamente pessoas que vivem na rua e dependentes químicos.

Algumas posições beiram a insanidade. A quantidade de crianças que vemos nascer com sequelas graves, com pais incapacitados de dar assistência imediata… Mas somos chamados de fascistas, nazistas, começa uma demonização do Poder Judiciário e uma vitimização das mães e dos pais. Para pacificar a questão, estamos repensando a redação da Portaria para termos algo no meio termo, que fale em vulnerabilidades, mas não especificamente em população de rua ou dependência química. Mas temos que ter cuidado para não cairmos num posicionamento que coloque as crianças em risco.

Diante de tantas denúncias, que providências o senhor tomou?

Pedi a uma colega que revisasse os processos dessas mães que estão sendo citadas. Foi tudo revisto, inclusive o caso da Aline. Não há irregularidade. Tem muitas mulheres que são ótimas mães hoje, mas ficaram sete anos presas, por exemplo. A criança não podia ficar sete anos na prisão. Se não tem ninguém da família para ficar, entregamos para uma família substituta. E aquele momento não tem volta.

‘Me obrigaram a entregar o meu filho’, diz mãe ativista

Zion nasceu em 24 de maio de 2011. Aline chegou à Santa Casa de Belo Horizonte acompanhada da mãe. Levava o enxoval e os exames do pré-natal. “Tinha parado de usar droga e não estava na rua, estava na casa da minha mãe.”

Depois do parto, não pôde amamentar o filho. “Eu tinha leite, mas me deram remédio para secar”, conta a mãe, que ficou 12 dias na maternidade com o bebê. “Um dia, achei que estava de alta, fiquei tão feliz. Então uma funcionária da Santa Casa disse que um carro me levaria até o tribunal, que o juiz iria apenas me fazer algumas perguntas. Quando entrei lá, me obrigaram a entregar meu filho.” O recém-nascido foi para um abrigo, onde Aline podia visitá-lo uma vez por semana.

Na casa da mãe, enquanto Aline conta sua história, sua filha Ágata, de 4 anos, brinca de boneca. O caçula, João Pedro, de 6 meses, acorda de um cochilo no colo da avó e sorri.

Por recomendação da Justiça, Aline fez um tratamento no Centro Mineiro de Toxicomania. Mesmo assim, a guarda de Zion não lhe foi concedida. Nem à sua mãe. Disseram a Aline que ela apresentava “instabilidade mental, emocional e financeira”. O tio, tenente reformado da Polícia Militar, tampouco podia, por ter 82 anos. A situação se complicou quando a Defensoria Pública perdeu os prazos para responder ao juiz. E não houve tempo de apresentar outros membros da família. “Um dia recebemos um telefonema dizendo que ele (Zion) tinha sido adotado”, diz Aline. Desde então, ela se tornou uma militante da causa, participando de todas as audiências públicas que foram realizadas, recolhendo assinaturas, contando sua história. Embora o caso tenha transitado em julgado e a criança viva há seis anos com a família substituta, Aline alimenta ainda esperanças de recorrer à Corte Internacional de Direitos Humanos.

“Eu não quero tirá-lo de sua família. Sei que ele já está acostumado, não quero que sofra. Mas quero conviver com ele de alguma forma, quero sentir o abraço dele.” Aline abaixa os olhos e ajeita uma fileira de borboletas, feitas por ela mesma com exames de raio X descartados.

Em defesa

Borboletas semelhantes, também feitas por Aline, adornam um armário na pequenina sala da defensora pública Daniele Bellettato. “Elas já estavam aí quando eu cheguei”, conta a defensora, que começou a trabalhar em Belo Horizonte no início do ano. Foi ela que impetrou um habeas corpus coletivo para que bebês saudáveis não sejam retidos nas maternidades públicas.

“O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) estabelece que o acolhimento institucional é a última medida de proteção a ser aplicada, mas aqui em Belo Horizonte estava sendo usada como a primeira”, explica. “Quando a criança ia para o acolhimento, o processo corria em sigilo, a mãe não era ouvida, não tinha direito à defesa. Era feito um relatório pela casa de acolhimento e o direito da mãe de ver a criança era suspenso.”

Foi o que aconteceu duas vezes com Grazi, de 35 anos. “Eu perdi dois bebês. Na primeira vez, me deram alta e ela ficou no hospital. Acabou morrendo. Na segunda, entrei em desespero quando vi que ia acontecer tudo de novo”. Grazi voltou para a rua e para o crack. E engravidou novamente. Hoje, vive com a filha Sofia, de 1 ano e 9 meses, no Abrigo Municipal Granja de Freitas. Mas isso só foi possível graças ao projeto da prefeitura Abordagem de Rua, que dá apoio às grávidas e as encaminha para abrigos familiares. “Muita gente mora na rua, mas, se tiver uma oportunidade, pode mudar de vida”, diz Grazi.

Justiça tira bebê de famílias em ‘situação de risco’

A Vara da Infância e da Juventude de Belo Horizonte tem dois meses para explicar o encaminhamento compulsório para abrigos de 120 recém-nascidos sob o argumento de estarem em “situação de risco”. O problema foi atestado pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos das Crianças e Adolescentes (Conanda), da Secretaria de Direitos Humanos do governo federal, e chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e ao Alto Comissariado de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). No início do mês, foi tema de audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília.

Em quatro anos, quase quintuplicou o número de bebês separados de suas mães nas maternidades públicas da capital mineira, por ordem da Vara da Infância e da Juventude, e enviados para abrigos. Foram 29 casos em 2013; 72 em 2014; 140 em 2015; e 132 em 2016. Filhos de mães em situação de vulnerabilidade social, os bebês foram, em muitos casos, colocados na sequência para adoção. A escalada dos números chamou a atenção de funcionários da Secretária Municipal de Saúde.

Aline Paula de Oliveira, de 28 anos, conta que foi separada de seu primogênito, Zion, de 6 anos, ainda na maternidade, por ordem da Justiça, por ser dependente química. “Não me deixaram nem amamentá-lo. Eu não estava drogada (na época do parto). O sonho de ser mãe tinha me feito reduzir o consumo de crack.” O garoto foi dado para adoção e hoje a mãe sonha em poder revê-lo.

As denúncias de afastamento compulsório começaram em 2011 em Belo Horizonte. Em 2014, a orientação, até entãoinformal, foi formalizada pelo Ministério Público de Minas, com a publicação de duas Recomendações (n.º 5 e 6), que orientavam “médicos, profissionais de saúde, agentes comunitários, gerentes e responsáveis por unidades básicas (…)” a avisar à Vara da Infância e da Juventude sempre que uma mulher em “situação de risco” fosse dar à luz. O objetivo era saber se a mulher queria dar o filho para adoção e apurar se havia negligência ou se a mãe era usuária de drogas.

Em 2016, as recomendações viraram a Portaria n.º 3. Assinado pelo juiz da Vara da Infância e da Juventude de Belo Horizonte Marcos Flávio Lucas Padula, o texto foi modificado e passou a prever “apuração de responsabilidade criminal” contra quem não a cumprisse. Seriam investigadas a ocorrência de infrações do artigo 132 do Código Penal (expor a vida ou saúde de outrem a perigo direto e iminente, com pena de detenção de três meses a um ano) e do artigo 236 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA (impedir ou embaraçar a ação de autoridade judiciária, membro do Conselho Tutelar ou representante do MP no exercício de função, com pena de detenção de seis meses a dois anos).

Foi do próprio Padula a maioria das decisões de afastamento compulsório de bebês. Diante dos protestos, o magistrado suspendeu em agosto deste ano a vigência da Portaria n.º 3.

A explosão no número de casos, envolvendo em geral mães pobres, pretas e pardas, desencadeou acusações de higienismo e preconceito contra a Justiça e de suposto atropelo no processamento regular das adoções. Com as recomendações e, depois, com a Portaria, o Conselho Tutelar (responsável pelas investigações familiares) teria sido afastado das ações. “Não é crime usar droga, não é crime morar na rua”, diz a presidente do Conanda, Fabiana Gadelha, que esteve em Belo Horizonte em setembro e considerou haver irregularidades. “Não há nada na lei que diga que essas mulheres não tenham o direito de dar à luz e sair da maternidade com seus filhos.”

Padula nega irregularidades. Diz que há “uma campanha de calúnia e difamação” contra a Vara que comanda há anos.

A retirada compulsória de bebês nas maternidades tornou-se mais visível em Belo Horizonte por causa das recomendações e da Portaria, mas não é restrita à capital mineira. Todas as pessoas ouvidas pela comissão do governo federal que investiga os casos de BH relatam que a retirada ocorre em todo o País.

Definição

Uma das dificuldades de avaliar o encaminhamento compulsório de bebês a abrigos é a definição de “situação de risco”. Abrange de moradores de rua a pessoas com problemas mentais, passando por dependentes de drogas e vítimas de violência doméstica. Nenhuma dessas condições, por si, pode determinar a separação de mãe e filho. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), somente abuso, maus-tratos e abandono podem afastá-los. Mesmo assim, toda a família extensa da criança – avós e tios, por exemplo – deve ser escutada e considerada como potencial responsável. Além disso, é assegurado o direito pleno de defesa da mãe. Ou seja, ela precisa ser ouvida.

Procurada, a Secretaria de Saúde de Belo Horizonte afirmou, em nota, que “defende a união familiar até que se comprove a incapacidade da mãe ou do familiar mais próximo de cuidar da criança, ou que se comprove a possibilidade de a criança sofrer danos no convívio com a mãe”.

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